Sophia, uma poetisa de «causas»

Entrevista a José Manuel dos Santos, orador oficial na cerimónia de trasladação dos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen para o Panteão Nacional

O escritor José Manuel dos Santos vai ser o orador oficial na cerimónia de trasladação dos restos mortais de Sophia de Mello Breyner Andresen para o Panteão Nacional. O diretor cultural da Fundação EDP e amigo da família da escritora fala à Agência ECCLESIA da sua obra e do legado que deixou à sociedade portuguesa

 

Agência ECCLESIA (AE) – O que é que esteve na base desta proposta de trasladação dos restos mortais da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen para o Panteão Nacional?

José Manuel dos Santos (JMS) – Eu entendo que algum declínio que todos nós sentimos e que nos preocupa nas democracias ocidentais é acompanhado de uma dessimbolização da própria democracia, é preciso dar aos símbolos a sua força, o seu valor e a sua função de exemplo.

E este ano passam 40 anos do 25 de abril e 10 anos da morte de Sophia, uma grande poeta e cidadã, que por isso reúne em si um valor simbólico que deve ser apontado à nossa comunidade, a todas as gerações mas também às novas gerações que ganham em ter conhecimento dessa lição, que foi essa vida e que é, continua a ser, essa obra.

 

AE – É justo dizer que as novas gerações poderão conhecer o nome, mas não o associam ao percurso que a poetisa teve?

JMS – Creio que a Sophia tem uma situação um pouco singular, toda a gente a conhece por causa das histórias para crianças.

Ela é uma grande autora de histórias para crianças, e portanto toda a gente que leu a “Menina do Mar” ou “O Rapaz de Bronze” ficou encantada com aquela capacidade extraordinária de usar uma linguagem acessível a todos e com aquela beleza, aquela vibração.

E por isso todas as pessoas, de todas as gerações, conhecem o nome de Sophia, se não leram as histórias, os filhos ou os netos leram, e isso é um convite a que conheçam o resto da obra de Sophia.

A poesia de que foi autora é elevadíssima, extraordinária, e também a vida, uma vida que ela quis sempre ligada à sua própria obra.

Ela dizia que escrevia para salvar a vida, portanto a conceção que ela tem da poesia não é de uma carreira literária, não é de um lugar proeminente na sociedade.

Ela dizia: a poesia é para mim uma arte do ser. E por isso eu escrevo para estar em concordância com a realidade e com o universo.

E desse ponto de vista, é também justo esta ligação entre aquilo que foi o seu comportamento humano e o que foi a sua obra, a sua vida.

 

AE – E é isso que é importante propor nos dias de hoje, daí a importância desta cerimónia?

JMS – Sim, esta cerimónia tem enorme importância porque estamos a falar de alguém que é, a vários títulos, exemplar. Não é fácil reunir numa só pessoa esta exemplaridade, uma grande escritora, uma grande mulher, uma grande portuguesa, uma grande cidadã.

Neste tempo, em que todos nós estamos preocupados com o que está a acontecer, ela representa uma possibilidade de podermos olhar um pouco acima das nossas preocupações, não para as ignorarmos mas para arranjarmos a força que nos permita ultrapassar os obstáculos e as dificuldades que todos estamos a viver, em Portugal claramente mas também no mundo em geral.  

 

AE – Faz esta análise através da obra poética de Sophia e daquilo que dela emana, mas também a partir do contacto que teve com a própria poetisa.

JMS – Sim, eu vi uma continuidade entre aquilo que ela era, que ela escrevia, e aquilo que ela pensava, fazia.

Era de facto uma personalidade fascinantíssima, cuja linguagem não tinha lugares comuns, frases feitas, concessões, e portanto conversar com ela era quase como ouvir a poesia dela, dita de outra maneira.

Ela dizia que a poesia não precisava de festa de anos, porque precisava de ser dita, ouvida, todos os dias. E praticava este princípio, havia uma continuidade absoluta entre o seu viver e o seu escrever.

E isso é também aquilo que se pode assinalar com este ato da trasladação para o Panteão, em que, de alguma maneira, se vai pôr a memória de Sophia à altura daquilo que ela deu, que ela soube dar à sua vida e à sua obra.

 

AE – Tem memórias, acontecimentos concretos a partir do contacto com ela, que possam exemplificar a discrição que faz dela?

JMS – Havia nela sempre uma preocupação e uma disponibilidade para aquelas causas que considerava justas. Antes do 25 de Abril, ela teve um combate politico-cívico muito importante, disse em várias entrevistas que tinha chegado à política pelo cristianismo, pela leitura do Evangelho e por esse conceito de justiça fundamental que há nele.

E a seguir ao 25 de Abril, empenhou-se em ações políticas concretas, quando achou que essas ações eram importantes, quer no plano nacional quer internacional.

Ela foi deputada da Assembleia Constituinte, e aí a sua voz aí levantou-se sempre em defesa dos grandes valores da cultura. Mas foi também mandatária de candidaturas presidenciais, esteve por exemplo em ações de solidariedade na altura da luta do povo polaco pela liberdade e democracia.

Portanto, nunca virou a cara, embora parecesse uma pessoa um pouco despistada e desatenta.

Há muitas histórias sobre as suas distrações, chegava normalmente com um ar perdido e atrasado a todo o lado, mas depois quando abria a boca e falava era extraordinário sempre o que dizia.

Eu gosto de dizer que ela estava desatenta e distraída de tudo, menos daquilo que era importante.

 

AE – Todo o percurso de Sophia, toda a luta que ela fez até chegar ao 25 de Abril, não se apagou depois da revolução, o olhar crítico continuou também depois. Numa determinada entrevista, ela disse que o 25 de Abril trouxe coisas ótimas no plano político mas no plano cultural não, dando como exemplos a demagogia, o consumismo, a pressa, as propagandas.

JMS – Sim, ela logo em 1975, 1976, numa carta ao Jorge de Sena, diz-lhe: o que vai matar a nossa democracia é a sua incompetência cultural. E ela não fez isto como uma profetiza que está a anunciar o fim de uma coisa que a ela é indiferente. Pelo contrário, há aqui uma grande preocupação e um grande empenhamento para que isso não aconteça.

Em toda a sua vida há esse combate. O espirito crítico dela exercia-se sempre, a palavra dela levantava-se, ouvia-se sempre com sentido critico e construtivo, para corrigir o que ela achava que estava errado.

Há de qualquer forma, temos de reconhecer, um desencontro dela, que não é apenas dela, com aquilo em que as sociedades se foram tornando. Sociedades de consumo exagerado, sociedades de massificação, em que se sabe o preço de tudo e não se sabe o valor de nada.

E para isso há, quer nos poemas dela quer nas entrevistas que dá, sempre uma palavra, um alerta, um alarme sobre o que está a acontecer, algo que é também muito importante ter presente neste momento e neste ano.

 

AE – A própria consciência cristã dela brotava precisamente desse espírito. Ela hoje em dia encaixaria naquele título, que até muitos recusam, de católico progressista?

JMS – Sim, aliás antes da trasladação que vai depois permitir conceder à Sophia as honras de Panteão Nacional, vai haver simbolicamente a celebração de uma missa na Capela do Rato. E a Capela do Rato não foi escolhida por acaso, na vida dela tem um grande significado e simbolismo.

Sendo Sophia uma mulher com um ar frágil, e que como digo, parecia um pouco fora do mundo, ela tem um combate extraordinário na associação de solidariedade para com as famílias dos presos políticos. Com o marido Francisco Sousa Tavares, tem um combate constante pela liberdade, pela justiça, que ela considerou sempre, sempre inseparáveis.

 

AE – Próxima do final da vida, ela dizia que gostava que se realizasse a justiça social, a diminuição da diferença entre ricos e pobres. A justiça para os pobres era aquilo que mais a preocupava, dizia mesmo que o resto lhe era indiferente. Isto é um testemunho, uma herança muito forte.

JMS – É um testemunho fortíssimo, num tempo como o nosso tem que se fazer ouvir a sua voz. Ela era uma mulher que vinha de uma família privilegiada e considerou que esse privilégio não lhe dava o direito de humilhar ou de ter alguma superioridade em relação aos outros.

Pelo contrário, Sophia achou que esse privilégio lhe dava uma responsabilidade de lutar pela justiça e pelas condições de dignidade humana de todos. E isso também é uma lição extraordinária.

 

AE – Como se processou a aprovação desta iniciativa da trasladação do corpo de Sophia para o Panteão?

JMS – Eu lancei a ideia num artigo, esse artigo teve alguma repercussão e algum eco e os deputados na Assembleia da República acolheram essa sugestão, por unanimidade como se compreende, porque é uma figura em relação à qual não há nenhum reparo, de nenhuma natureza, a fazer.

Isto é extraordinário, porque há pessoas que conseguem uma espécie de unanimidade mole e passiva, porque se abstêm, porque se calam, porque não dizem o que pensam, porque navegam em águas de ambiguidade e de pouca clareza.

Ela sempre foi claríssima, a sua voz disse sempre o que era preciso ser dito, afrontou quem tinha que afrontar. No entanto fez isso com uma altura, com uma dignidade, com um sentido humano e cultural, com uma inteligência que levou a que mesmo aquelas pessoas que, num ou noutro momento podem ter sido objeto da discordância ou da crítica dela, renderem-se perante a superioridade com que ela fez sempre essa crítica, ou com que ela fez os reparos que tinha que fazer.

 

AE – Especificamente em relação ao programa de dia 2 de julho, o que é que foi preparado?

JMS – Vai haver uma Missa que tem um caráter mais privado, na Capela do Rato, seguida de um cortejo pela cidade. Depois o corpo de Sophia passará pela Assembleia da República, a caminho do Panteão Nacional, onde às 19h00 – é bom que as pessoas estejam um pouco antes – se vai proceder a uma cerimónia.

Nessa cerimónia terei a honra, o privilégio, de ser o orador oficial, por escolha da família, e irão falar também o presidente da República e a presidente da Assembleia da República.

 

AE – Que palavras é que vai dirigir às pessoas, em honra de Sophia?

JMS – Com um poder de concisão que lhe era grato, ela preferia sempre o que era conciso e claro, é uma das características dela e da poesia dela, vou tentar resumir o que a sua vida, a sua obra. Falar um pouco dos princípios que a inspiraram e da maneira admirável como ela os realizou.

Não esqueço a liberdade, a justiça, a poesia, acho que a lição dela é fundamentalmente essa, a poesia, a liberdade e a justiça – são boas razões para que os homens se possam olhar uns aos outros, olhos nos olhos, e ela ensinou-nos isso.

 

AE – Haverá mais algum outro momento especial que possa já ser desvendado antes das celebrações?

JMS – Sim, vão ser ouvidos alguns poemas ditos por ela, na voz gravada que temos dela, vamos ter música e uma coisa extraordinária numa cerimónia desta, vamos ter bailado.

A Companhia Nacional de Bailado vai interpretar duas peças, porque o bailado, a dança, atravessaram toda a vida e obra de Sophia.

As palavras da dança aparecem na sua poesia do último ao primeiro poema. Por exemplo, um excerto de um bailado que vai ser lá lançado é o Lago dos Cisnes, e há uma carta de Sophia para a mãe, quando penso que nos anos 50 viu o Lago dos Cisnes, e ela fala maravilhada com o que viu.

Portanto há essa memória, as cerimónias de entrada no Panteão não são cerimónias fúnebres, são de alguma maneira uma ressurreição simbólica.

De alguma maneira, o Panteão é o reconhecimento que a morte não prevaleceu contra aquelas pessoas, que elas estão vivas pelo seu simbolismo, pelo seu exemplo, pelo legado que nos deixaram, e no caso de Sophia, por maioria de razão ainda, pela sua obra.

Os grandes poetas não morrem, porque continuam a viver sempre que abrimos um livro e lemos o que eles nos deixaram ou escreveram para podermos ler.

Sophia está viva por todas essas razões, pela memória que temos dela, pelo legado exemplar que nos deixou e por essa obra extraordinária que vai desde os contos, histórias para crianças até a ensaios de uma inteligência extraordinária. Mas sobretudo a grande poesia que nos deixou, em que ela fala do universo, dos atos do quotidiano, dos combates políticos, fala de outros escritores, da maçã que a deslumbrou quando viu uma manhã, fala de tudo daquela maneira absolutamente extraordinária que era a dela.

 

AE – Nestes dias que antecedem a cerimónia no Panteão, tem-se lembrado de alguns momentos que partilhou com Sophia?

JMS – Sim, tenho-me lembrado de algumas vezes que estive lá em casa com ela, que lanchei com ela, que conversei, as viagens que fiz. Eu tive funções na Presidência da República durante 20 anos, era assessor cultural, fazia a ligação com os escritores, intelectuais, com os artistas, e portanto falava frequentemente com Sophia.

Acompanhei-a em muitas viagens que fez, a convite quer do presidente Mário Soares quer depois do presidente Jorge Sampaio, e há de facto memórias absolutamente extraordinárias.

A maneira como ela olhava as coisas, os comentários que fazia, a graça que tinha – era uma pessoa que tinha uma grande graça – as histórias que contava com uma grande ironia.

E isso fazia da Sophia ao mesmo tempo, como todas as personalidades com a dimensão dela, uma figura transparente e ao mesmo tempo misteriosa, havia sempre qualquer coisa nela que nos surpreendia.

 

AE – Que histórias peculiares é que guarda sobre ela?

JMS – Um dia o presidente Mário Soares estava em vésperas de partir para uma visita de Estado muito importante e estávamos a preparar a tradução dos discursos que iam ser feitos nos vários acontecimentos dessa vida, coisa que é sempre feita sob uma grande pressão. Um presidente tem sempre muito que fazer e normalmente já escreve mesmo sobre a hora e depois revê e depois é preciso mandar aquilo para tradução, para que quando se parta esteja já tudo bem organizado.

Estamos num dia desses, eu entrei no gabinete e percebi que o presidente Mário Soares estava ao telefone com a Sophia. O assunto era uma empregada doméstica da Sophia, que tinha saído por qualquer razão, e a Sophia estava um pouco atrapalhada porque não tinha empregada e ela não se orientava muito bem nas coisas domésticas.

E eu ouvi o presidente Mário Soares dizer – ó Sophia, eu vou tratar do assunto – não podemos esquecer que eram amigos e que tinham uma convivência, uma amizade e uma intimidade de muitos anos. Desligou o telefone e quando nós insistimos com as traduções ele disse: Não, não, agora vou ter de arranjar primeiro aqui uma solução para o problema doméstico da Sophia.

Isto é mais importante do que tudo o resto, porque ela diz-me que enquanto não tiver este problema resolvido, ela não escreve. E mais importante que tudo é que ela escreva, o meu dever como presidente da República é resolver este problema, dizia.

 

AE – E o que é que diria Sophia nos dias de hoje?

JMS – Continuaria a dizer o que disse, que o mundo em que vivemos não é um mundo justo, tornou-se até mais injusto do que já foi.

E mesmo a própria liberdade que ela cantou naquele poema maravilhoso do 25 de abril, a maneira como ela conta como esse poema lhe surgiu é uma história também extraordinária.

Ela diz que a despertaram no meio da noite e lhe disseram – há uma revolução na rua – e ela foi ouvir rádio.

Sophia tinha o rádio numa divisão da casa que tinha uns vidros que davam para o jardim, na Travessa das Mónicas. Ela ficou colada ao rádio a ouvir a evolução da revolução, a perceber também por telefone, como é que a revolução se ia construindo e tornado vitoriosa. À medida que isto se foi passando, que as horas foram passando, a noite foi dando lugar ao dia.

Daí ela no poema falar – “emergimos da noite e do silêncio”. E ela, num desses testemunhos, liga isto à Páscoa que tinha acontecido poucos dias antes na semana anterior à revolução.

Sophia diz que esta passagem da noite ao dia, das trevas à luz, foi para si uma nova Páscoa, como um milagre que Portugal viveu nas ruas, naqueles momentos. Esta é também uma memória extraordinária, que se percebe como os poemas de Sophia nunca eram qualquer coisa que não fosse autenticidade em estado puro.

 

AE – Portanto as palavras de Sophia nas décadas de 60, 70, continuam a fazer sentido hoje?

JMS – Acho que continuam a fazer muito sentido, porque ela faz uma espécie de ligação de todos os tempos e de todas as figuras. Ela tem um poema, por exemplo, dedicado a Catarina Eufémia em que tira tudo o que depois foi, digamos, cliché ideológico sobre essa figura, restituindo-lhe uma espécie de pureza e nudeza inicial.

Ela liga-a uma grande figura que admirava extraordinariamente, Antígona, que era a mulher que clamava sempre por justiça e que achava que havia uma justiça e um direito que se podia impor à própria lei. E isso é uma lição muito importante para o nosso tempo.

Eu gostaria ainda de dizer uma frase, fazendo uma citação dela, que diz assim: “É costume dizer só aos pobres portugueses: Tenham paciência. Eu acho que devíamos dizer: Não tenham paciência”.

E isso é extraordinário.

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Agência ECCLESIA

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