Solidariedade: «Se a Cáritas não chegar, ninguém lá chega», diz nova presidente da direção nacional

Rita Valadas tomou posse na última quinta-feira para um mandato de três anos como presidente da Cáritas Portuguesa

Foto: Misericórdia de Lisboa

Em entrevista à Renascença e Ecclesia, destaca o simbolismo de a escolha ter recaído sobre uma mulher e projeta os desafios que se levantam, num cenário marcado pela pandemia, com alertas para quem se aproveita dos mais vulneráveis para retirar benefícios políticos.

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Como recebeu este convite do episcopado português?

Muito honrada e muito espantada, devo dizer. Nunca foi coisa que me tivesse passado como possibilidade e foi uma grande admiração…

 

Tem um passado ligado à Cáritas, formação na área da Solidariedade…

Sim. A questão não está na dignidade ou no lugar, tem a ver com um preconceito meu: apesar de ter estado na Cáritas entre 2006 e 2011, com o professor Eugénio Fonseca, e de saber que a primeira presidente da Cáritas foi uma mulher, sempre entendi que havia um certo preconceito em ter uma mulher neste lugar.

 

A escolha de uma presidente quer ser um sinal de valorização do papel da mulher na Igreja? Em declarações à Ecclesia, D. José Traquina, presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social destacou o facto de a Cáritas Portuguesa “ter também uma figura feminina” na liderança. Parece-lhe que é um sinal forte, que é aqui deixado?

Nunca me tinha questionado sobre esse particular, mas passei a confrontar-me com isso quando percebi que eu própria tinha este preconceito. Na tomada de posse, o senhor D. José Ornelas (presidente da CEP) foi claro em relação a isto: era importante que a Igreja desse um sinal da presença da mulher, do perfil da mulher para ser mãe, ter colo, ter um olhar mais cuidador. Acho que foi a palavra cuidado que ressoou mais em mim.

Eu sinto-me, naturalmente, honrada por ser a mulher que representa este olhar. Um junto equilíbrio do género é sempre uma coisa interessante, mas nunca me tinha confrontado com essa questão.

 

Esse cuidado, ligado ao sentido prático, pode ser importante para a própria Cáritas?

Curiosamente, se nós virmos e analisarmos o pessoal, as pessoas que colaboram com a Cáritas são muito mais mulheres do que homens. Não é ao nível das direções e isso é talvez um sinal dos tempos, porque durante muito tempo, à volta da Igreja, os homens eram as pessoas que tinham mais disponibilidade ou, supostamente, podiam estar mais afastados do lar por causa dessa missão que as mulheres mães tinham na família.

Eu encaro isso com muita naturalidade, mas, como digo, acho que é um sinal que dignifica muito a Igreja. Acho que muita gente se vai sentir alinhada com esse pensamento. É muito bom para mim e espero conseguir confirmar que foi uma boa aposta.

 

Com o impacto da pandemia são de prever novos pedidos de apoio, novas formas de pobreza, maior dificuldade no terreno?

Como em todas as crises. E esta é uma crise especial, é uma crise que nos obriga a confrontar-nos com um tipo de desastre para o qual não estávamos preparados, nos tempos de hoje. Porque a sociedade nacional, mundial, já se confrontou com muitas pandemias, mas para os nossos tempos, ninguém estava preparado…

Não é propriamente a questão da saúde que provoca todas essas consequências, é tudo o que vem ligado às questões económicas, aos encerramentos, falta de emprego. Isso sim, traz muitas pessoas para novos pedidos, o que também aconteceu em 2008. Nessa crise, a Cáritas teve um papel muito importante, porque acudiu a uma situação que era atípica: foi uma crise económica que afetou a classe média e a classe média-alta. Agora temos uma crise mais democráticas, mas que ataca particularmente as questões do emprego.

Pessoas que não estavam habituadas a ter de depender de terceiros, para sustentar a família e garantir o seu dia a dia, vêm a nós e vêm com situações bastante aflitivas. Não são pessoas que estejam habituadas a uma subsidiodependência, a ter de pedir. Isso é uma coisa que nos convoca e que é análoga, nestas duas situações. Não é a partir de agora que vai surgir, mas quanto mais tempo durar esta situação, mais pessoas vai afetar.

 

A Covid-19 traz desafios específicos ao trabalho da Cáritas, marcado pela proximidade? Com as limitações impostas pela crise sanitária…

A Cáritas, a Igreja em Portugal, é a instituição mais capilar que existe. Não só se apercebe e tem uma noção muito clara do que está a acontecer nos territórios como também tem uma capacidade de intervir e de estar próxima. Agora não tão próximo, como é da natureza da Cáritas, mas porque temos uma obrigação de distância, que nos confronta com a questão dos afetos, das relações, e nos obriga a esta mais longe do que gostaríamos de estar. Ainda assim, é óbvio que a Cáritas está próxima.

 

E receia que, por esse facto, haja muita gente que não tenha acesso a ajuda, por causa desse distanciamento?

Acho que isso é possível, não creio que haja alguém que tenha estudado esse assunto, mas se a Cáritas não chegar, ninguém lá chega. A aposta é tentar olhar para os escondidos, realmente, para aqueles que não sendo naturais deste processo, precisam de ajuda e estão escondidos por vergonha ou outras questões.

 

A Cáritas tem vindo a deixar uma marca de credibilidade na resposta às emergências. É uma área prioritária? É possível também olhar para fora do país, no atual contexto?

A Cáritas tem sempre essas duas dimensões. Tem sempre a dimensão de aceitar o olhar de fora, para o que se passa cá dentro, e olhar para fora. Na rede da Cáritas Europa e da ‘Caritas Internationalis’, nós temos um olhar alargado, sempre atento, já que, infelizmente, esta não é a única crise que existe no mundo, existem muitos outros problemas que se juntam. A Cáritas tenta equilibrar os seus vários olhares, nas diferentes missões, e faz isso com os seus parceiros na Europa e no mundo.

 

Sabemos que a Cáritas está a trabalhar numa base de dados com informação sobre pedidos de apoio no país. É importante identificar claramente quais são as situações de necessidade?

A informação é sempre um trunfo na ação. A questão não é se ela está escrita e onde, mas saber se a conhecemos e o que fazemos para resolver.

Quando há situações destas, de grande crise, há sempre o risco da sobreposição de recursos, que nós temos de evitar. Pede-se, não só à Cáritas, mas a todas as pessoas que agem sobre os territórios, que isso não aconteça. Ninguém consegue resolver nenhuma crise sozinho e os recursos de todos têm de ser colocados à fruição dos mais vulneráveis.

 

Para uma melhor resposta é fundamental o máximo de informação. Reconhece alguma falta de coordenação entre as instituições que estão no terreno no apoio aos mais desfavorecidos? Como melhorar essa interação?

Acabei de tomar posse e ainda que conheça a Cáritas e nunca me tenha afastado completamente, não me parece que seja útil, neste momento, falar da especificidade dos programas ou criar alguma confusão, em relação a isto.

A facilidade com que, em Portugal, se age sobre as situações dos vulneráveis, confundindo e sobrepondo recursos, é uma realidade, que não é só de agora. É uma realidade permanente, tanto assim que estas questões da informação e de como é que gerimos os recursos, quem tem acesso, é uma realidade que acontece agora como aconteceu quando foram os fogos de 2003, quando o importante era identificar quem é que estava em situação de grande necessidade. Debatemo-nos sempre com esta questão.

Quando penso nesta crise, que espero que esteja a encontrar o seu caminho de saída, penso sempre que nós precisamos de descobrir o que é a resiliência em crise. A resiliência do país. Nunca sabemos o que vem por aí, ninguém estava à espera de que houvesse uma pandemia, ninguém estava preparado para isto… Ainda assim, a nível da Proteção Civil, temos trabalhado as questões das intempéries, das secas, dos fogos, etc., mas não temos agido nem estávamos preparados para ter uma crise deste tipo. Mas o futuro é isso que nos traz.

O que temos de trabalhar, a partir de agora, é uma situação de crise, estamos em emergência, agiremos sobre a emergência com todos os riscos que alguma sobreposição pode ter. Mas nós temos de pensar, de facto, como é que vamos agir no futuro, preparando-nos para uma crise, seja ela qual for.

Estas perguntas que hoje são colocadas são as mesmas que forma nas outras crises: estamos a usar bem? O que é que podíamos fazer melhor?

 

E há uma sensibilidade muito grande da opinião pública…

Sim, e faz sentido. Porque há muito quem sofra de um sentimento de injustiça, em relação à sua própria situação, olhando para outros que sente que estão em menos dificuldade, mas que são mais beneficiados. Temos de saber enfrentar este tipo de situações, para a próxima vez…

 

Até porque têm um potencial muito grande de populismo, também, que essas injustiças sejam potenciadas por quem quer ganhar capital político com elas…

Há aqueles que trabalham a favor dos vulneráveis e com os vulneráveis, para a resolução dos seus problemas, e aqueles que exploram a vulnerabilidade. Há sempre quem serve e quem se serve.

 

Foto: Misericórdia de Lisboa

Falávamos ainda há pouco das redes em que a Caritas está inserida: a Caritas Europa, a ‘Caritas Internationalis’, que é uma confederação presente em mais de uma centena e meia de países. Há um momento específico desta crise sanitária da Covid que vai ser muito marcante e pela qual o futuro nos vai julgar, que é questão da vacinação e da forma como as vacinas chegam ou não às populações mais desfavorecidas, cá e, sobretudo, no resto do mundo. Esta rede que a Cáritas tem instalada deveria ser ativada, para que toda a injustiça que já existia antes desta crise não seja agravada por um momento que é absolutamente decisivo para a superar?

Seria muito presunção da minha parte ter essa resposta. Eu acho sempre que quem está mais próximo deve ser chamado a participar; sempre em qualquer situação. Tenho algumas dúvidas em relação a esta situação concreta, porque aquilo de que nós estamos a falar – com toda a minha ignorância – isto é só pensamento…. se as condições de manutenção desta vacina para ser aplicada são tão rigorosas, eu temo que – ou nos ensinam como se manuseia e utiliza, ou teremos dificuldade. Nós temos rede de existência equipamento em muito lado e acho que por exemplo os médicos que pertencem a esta enorme rede do terceiro sector podiam ser chamados a participar. Eu sou responsável pelo plano de contingência num lar de idosos e eu não imagino como é que vou levar ao centro de saúde uma parte importante das pessoas que lá residem. Se as pessoas dos lares são as primeiras… mas eu não sei se tenho condições para manter a vacina a menos 70 graus.

 

A pergunta ia nesse sentido: que sejam escutas as preocupações de quem está no terreno…

Exatamente… nós podemos rentabilizar os recursos, mas temos de perceber como é que isso se faz sem erros. Porque incumprir numa coisa destas é um erro muito grave, que depois não se pode imputar se não houver um esclarecimento. Mas sim, a rede que nós temos estará interessada em que este seja um bem que chega o mais próximo possível.

 

Considera real esse receio de que o acesso universal esteja de alguma forma prejudicado? Aliás, alguns países já começaram a vacinação e outros há mais pobres que ainda não sabem quando podem contar com a vacina…

Eu tenho tantas dúvidas em relação a este tema. Sou uma mulher de fé, mas em relação a isto tenho muitos medos. Há coisas que eu me pergunto a mim própria: as pessoas que tiveram Covid não deveriam ser consideradas numa fase diferente da vacinação? Porque, se essas pessoas estiverem protegidas, nós poderíamos estar já a dar o próximo passo com as pessoas que não tiveram a infeção, ou vírus, e que poderiam ser beneficiadas.

Mas isto é um movimento muito difícil, porque a propósito de informação eu também não tenho a certeza se os registos em relação às pessoas que têm Covid estão absolutamente fáceis de usar, nesta perspetiva. Dizem-me que sim, que a vacinação em Portugal vai ser universal, mas eu tenho quase a certeza de que, a menos que haja um movimento de doadores que as faça chegar aos países com mais dificuldade, será difícil esse acesso. Mas tem de ser um pacote produto/aplicação, senão não vejo que seja possível. E acho que se deveria estar a trabalhar isso.

 

Os novos corpos sociais tomaram posse no dia Internacional dos Direitos do Homem. Isso tem uma carga simbólica, e é também de certa forma um desafio, vendo que 70 anos depois é um projeto que continua por cumprir na sua totalidade?

Claro que é muito simbólico. Não posso deixar de me sentir bem por ter acontecido nesse dia. Sinto-me, aliás, muito grata em relação à forma como a tomada de posse dos órgãos sociais da Cáritas aconteceu. Foi das coisas mais bonitas que aconteceram ultimamente, para mim. E foi toda cheia destas simbologias. Foi perfeitamente reservada, não estamos em tempo de outra coisa, nem se pretende nenhum tipo de ostentação. Mas foi cheia de simbologia e muito cuidada por parte do presidente da Conferência Episcopal e do presidente da Pastoral Social.

Agora, que nós nos confrontamos com isso, confrontamos. Mas também nos confrontamos com estamos, em 2020, ainda a pôr no topo das nossas obrigações acabar com a pobreza, acabar com a exclusão e todas estas grandes frases plenas de vontade e ambição… e uma grande humildade, por não sermos capazes de ter resolvido o problema.

Foto: Cáritas

O Governo criou uma comissão de coordenação para elaborar, até 15 de dezembro, a estratégia nacional de combate à pobreza. A Cáritas espera que se faça a diferença, desta vez?

A Cáritas espera. A Cáritas também foi chamada a participar. Houve aqui alguma dificuldade entre datas e não estou informada sobre esse particular, mas eu acredito que as pessoas envolvidas estão apostadas em fazer a diferença. Se vão ser capazes ou não, não sei.  Mas acho que todos os esforços, especialmente se não for investir muito dinheiro em criar uma estratégia, se for uma estratégia que utiliza os recursos já existentes e o conhecimento que existe sobre os diferentes tipos de pobreza – porque não há só um tipo de pobreza- eu acredito que sim.

Quando comecei a trabalhar, foi exatamente ao abrigo do segundo programa europeu de luta contra a pobreza. Custa-me muito que, em 2020, ainda estejamos a falar disto, e custa-me muito ainda mais que nós não saibamos, ou não tenhamos sabido até agora, resolver este problema.

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