Sociedade: «Violência entre crianças é muito mais do que uma brincadeira»

Roma acolhe a primeira edição da Jornada Mundial das Crianças, convocada pelo Papa, uma iniciativa que também é celebrada a nível local em cada diocese. Em Portugal, a semana fica  marcada pela indicação de um aumento de crimes contra crianças. Para refletir sobre estes temas, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia Carla Ferreira, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)

Foto: RR

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Comecemos pela Jornada Mundial das Crianças, para além da dimensão mais religiosa e até formativa, a iniciativa dará também visibilidade a uma abordagem aos problemas com que a sociedade se confronta em relação às crianças.

Essa também é a nossa expectativa nestas iniciativas, independentemente da sua natureza: passar a mensagem de que todos nós temos um papel absolutamente fulcral na proteção das crianças e jovens e na garantia de que estas pessoas possam ter um desenvolvimento salutar. E, portanto, nesse aspeto, todas as instituições, todas as pessoas devem ser chamadas a refletir sobre o lado menos positivo da infância, que também acontece, e pensarmos de que forma é que poderemos fazer algo mais e melhor para detetarmos e agirmos em conformidade.

 

E que opinião têm sobre a possibilidade de se passar a organizar uma Jornada Mundial das Crianças, idêntica à Jornada Mundial da Juventude? Oferece às crianças uma voz própria em questões que lhe dizem particularmente respeito?

As iniciativas que possam ser realizadas, como a Jornada Mundial da Juventude, e transpô-la aqui para a edição das crianças, digamos assim, iniciativas que sejam agregadoras numa mesma missão, num mesmo espírito, serão sempre positivas. E se a estas iniciativas pudermos acrescentar a dinâmica de pensar e ajudar também as crianças a reconhecer-se como sujeito pleno de direitos, com direito a crescer na liberdade e direito a crescer em segurança, diria que temos aí uma receita muito boa para podermos fazer esse trabalho conjunto.

 

A dimensão mais difícil destas realidades está relacionada com os maus-tratos, mas há outros fatores que é importante refletir: um deles é o tema da pobreza, da pobreza infantil. Como é que se entende a dificuldade de Portugal quebrar estes ciclos após 50 anos de democracia?

Eu diria que tudo isso se pode resumir a questões que têm a ver com as políticas públicas. Às vezes existem, a questão é depois terem o acompanhamento devido, faz sempre falta esta necessidade de olharmos para as situações do quotidiano e percebermos que tem de existir aqui uma ação concertada. Muitas vezes, aquilo que vemos nesta matéria é que cada pessoa vai tentando solucionar à sua maneira; isso é bom, porque temos todo este espírito de solucionar, mas falta depois uma estratégia que seja nacional e transversal. Uma coisa é certa, não se deve conceber que num país desenvolvido como Portugal, em pleno século XXI, haja crianças a passar fome. Isso é algo que nem devia sequer estar na equação, mas sendo essa a realidade, então nós temos de agir proactivamente, como eu acredito que todos ajamos quando sabemos de uma situação dessas, mas teríamos de ter aqui uma estratégia mais concertada.

 

Mas existe uma estratégia nacional de combate à pobreza…

Existe a estratégia, a questão é, em termos de política efetiva e da aplicação da política. A dúvida que eu deixo, não sendo a nossa área de intervenção mais especializada é se nacionalmente podemos dizer que todas as crianças têm exatamente a mesma capacidade de acesso às respostas, ou se algumas têm mais capacidade porque estão numa determinada região, por exemplo no Litoral, e outras têm menos porque estão no Interior.

 

Entre 2022 e 2023, a APAV registou mais de 10 mil crimes contra menores, um aumento de 18% em apenas um ano. Uma parte dos números justifica-se com a maior atenção dada a este tipo de violência?

Eu diria que sim, essa é também a nossa convicção enquanto APAV: este aumento não é necessariamente um aumento da criminalidade propriamente dita, até por várias razões. Primeiro porque muitos destes crimes que nós registamos, nestes dois anos, não aconteceram necessariamente nestes dois anos: nós não nos podemos esquecer que estamos a falar de crianças, estamos a falar de seres em desenvolvimento e que, portanto, são pessoas que muitas vezes só se conseguem aperceber de que foram vítimas de violência alguns anos depois de ela ter acontecido. Segundo, porque nós não temos a real noção, ninguém tem a real noção da criminalidade que efetivamente acontece, nós temos uma noção da criminalidade que é reportada e diria que é a ponta do icebergue. Portanto, acreditamos que este crescendo é a tal consciencialização crescente da sociedade, do seu papel como agente promotor da segurança e do bem-estar das crianças, mas deve continuar a preocupar-nos um aumento desta natureza, só naquilo que são os pedidos de ajuda.

 

E, portanto, não é possível falarmos da real dimensão do problema, até porque há uma outra questão associada que, às vezes, tem a ver com o medo da própria denúncia, não é?

Também, sem dúvida. O medo da denúncia é real e eu diria que é real em todas as faixas etárias. Nas crianças, mais do que o medo da denúncia, muitas vezes temos o desconhecimento e aqui são vários patamares de desconhecimento: temos o desconhecimento de que aquilo que estão a passar é um crime, muitas crianças não têm esta noção, sobretudo as mais novas; também o desconhecimento de como agir, agora que percebi que estou a ser vítima de um crime; o receio de pensarem “e agora o que é que me vai acontecer?’. Podemos estimar a real dimensão, mas será sempre uma estimativa muito incerta, porque há estatísticas que nos falam que apenas conhecemos um em cada três crimes, mas nalguns crimes, se calhar, até conhecemos menos. É uma estimativa muito, muito incerta, estamos claramente a conhecer muito pouco daquilo que efetivamente acontece.

 

Daquilo que sabemos, a maior parte dos crimes continua a estar associada à violência doméstica e aos crimes sexuais?

Sem dúvida. Daquilo que podemos registar, no nosso relatório estatístico, seis em cada dez crimes são de violência doméstica, no caso dos crimes sofridos contra crianças, naturalmente. E três em cada dez são crimes de natureza sexual, portanto, maioritariamente as crianças continuam a ser vítimas destas formas de violência, sendo que não nos podemos esquecer que a violência doméstica, de uma forma um bocadinho autoexplicativa, acontece entre portas e acontece pelas pessoas que são as figuras de cuidado. No caso da violência sexual, cerca de 50% das situações acontece, de facto, por pessoas que são familiares da vítima e dos outros 50%, diria que 40% a 45% acontecem por pessoas que elas conhecem. Estas são aqui as grandes predominâncias da criminalidade nesta matéria.

 

Que tipo de apoio presta a APAV?

Isso depende muito da situação e aquilo que eu queria ressaltar, desde já, é que estamos a falar de um apoio que é gratuito e confidencial. Depois, caso a caso, as situações são analisadas com cautela e olhando para vários vetores. Podemos prestar desde apoio psicológico, acompanhamento em diligências processuais, esclarecimento sobre direitos a articulação com outras entidades, por exemplo, nas matérias da educação, do apoio social, entre outros, mas isto tudo decorre de uma análise muito cuidada, quer dos riscos que aquela criança possa estar a correr naquele momento, quer também das necessidades que emergem daquele pedido em específico.

 

Nós temos tido mais notícias de casos de violência, um aumento da intolerância em contexto escolar. A APAV tem essa perceção, também?

As notícias, diria, refletem uma pequena parte. Aquilo que nós temos percecionado enquanto APAV é que a comunidade escolar está mais atenta às situações de violência que acontecem, quer dentro da própria comunidade, quer fora. É muitas vezes a comunidade escolar que acaba por ser o ponto de partida, para que estas crianças possam vir a ter o apoio e que necessitam. Há uns meses tivemos um caso mediático de um professor numa escola, no Norte, e foi a escola precisamente que agilizou esse pedido de ajuda. Recentemente tivemos outras notícias de alguma intolerância, mesmo entre partes, violência entre pares. É importante salientar que a violência entre as próprias crianças é muito mais do que uma brincadeira e pode ter repercussões muito significativas.

 

É preciso superar aquele discurso do “isto sempre aconteceu” e “são coisas de crianças”?

Sem dúvida, porque se não superarmos esse discurso vamos estar no discurso que tínhamos há 70 ou 80 anos de que “pode bater-se nas crianças para as educar”, de que “as crianças estão só a brincar, é uma brincadeira”. Se não superarmos esse tipo de discursos também não vamos evoluir enquanto sociedade, com certeza. Mas aquilo que vemos muitas vezes é associar-se, sobretudo à violência entre pares, a algo que é entre miúdos e que ninguém se deve intrometer, porque é uma forma deles desenvolverem as suas capacidades. Isso não é verdade.

Aquilo que nós estamos a ensinar às crianças, com esse tipo de validação, é dizer-lhes que o comportamento violento é certo e é uma forma adequada de resolver problemas, e estamos a criar pessoas que usam a violência como resolução de problemas.

 

E notam o aumento desse tipo de situações? 

Temos tido situações de bullying, mas as situações que nós temos eu acredito que são também muito pouco reportadas, precisamente porque ainda há esse discurso de normalização da violência, quer da parte das próprias famílias, quer da parte também da comunidade que está em redor. E é esse discurso também que tentamos contrariar todos os dias.

 

E também da própria escola? 

As escolas às vezes tendem a achar que algumas situações são toleráveis. Há outras que não, que já apontam a tal linha vermelha que não se deve passar. Eu acho que se as escolas tiverem a formação, os profissionais de educação tiverem a formação necessária e maior sensibilidade, até porque isso não é uma coisa que nasça necessariamente connosco e, portanto, temos de estar aqui abertos para estes momentos formativos; e se houver essa maior sensibilidade acredito que também estarão muito mais predispostos a agir, porque trata-se de mudar crenças e é isso que nós também queremos trabalhar.

 

Ao nível da prevenção do fenómeno, o que é que falta fazer do vosso ponto de vista? 

No início deste ano foi lançado um documento que se chama a Estratégia Nacional para os Direitos das Vítimas de Crime e nesse documento um dos pilares que está assente é a existência de um programa de prevenção de forma estruturada, programa de prevenção da violência. E isso é algo que nós subscrevemos na íntegra, porque de facto nós podemos prevenir certas formas de violência, sim, e que devemos fazê-lo, mas também não nos podemos esquecer que nós, para chegarmos ao particular de podemos prevenir a violência doméstica, ou de podemos prevenir a violência sexual, temos de começar pelo geral, que é prevenir o uso da violência e fazer com que não seja usado a violência de forma recorrente nas relações interpessoais. E fazer também com que não seja normativo uma criança de sete ou oito anos injuriar um colega porque acha que é uma forma carinhosa de tratar. O plano está feito, eu diria que é preciso haver aqui uma aplicação transversal e efetiva de uma estratégia nacional, mais uma vez, para que não haja um Portugal a três ou quatro velocidades e haja uma aplicação nacional desse trabalho.

 

Por exemplo, na situação dos abusos sexuais, temos o recente trabalho realizado ao nível da igreja, aliás com a colaboração da APAV. Mas, e a sociedade tem refletido seriamente o problema?

É essa a questão, ou seja, nós estamos se calhar a olhar para a situação da igreja como estamos a olhar para a situação das escolas e nós temos de pensar isso numa perspetiva geral. Nós ainda continuamos, consciente ou inconscientemente, com maior ou menor frequência, a dar mostras de que algumas situações de violência são justificáveis e nós não podemos esquecer que as crianças aprendem pelo exemplo, muito pelo exemplo. E se nós temos em casa uma família que até diz que a violência não é aceitável, mas depois vê uma notícia na televisão que tem a ver com uma situação de violência e diz que até fizeram bem; nós estamos a dizer à criança que a violência é positiva. E, portanto, nós temos de pensar na prevenção como não sendo apenas algo que tem de ser direcionado para as crianças. Tem de ser direcionado também para quem está em redor delas, porque senão estamos a pôr a tónica nas crianças na prevenção exclusivamente e estamos a esquecer de quem está em redor que tem um papel absolutamente fulcral como ponto de partida de muitos pedidos de ajuda.

 

No caso dos abusos, a sociedade tem muito a fazer ainda? 

Eu diria que já fizemos um bonito caminho até aqui, já fizemos um caminho muito importante, já fizemos um caminho que nos levou a tirar conclusões significativas, já fizemos muito trabalho, mas não está tudo feito de todo.  Não está tudo feito quando nós no nosso quotidiano recebemos situações de crianças que são abusadas durante praticamente toda a sua infância e isso tem de fazer-nos refletir, porque quando falamos de abusos sexuais nós não podemos esquecer que estamos a falar de situações que normalmente são continuadas no tempo. Não está tudo bem e nós temos de pensar que enquanto sociedade temos de fazer algo melhor, quando eu recebo uma situação de uma criança que tem 15 anos e que foi abusada desde os 4. Isto tem de nos levar a refletir, e isso acontece, e é isto que tem que nos levar aqui a alguma reflexão. Isto não é utópico. Nós podemos de facto ter um papel muito ativo nisto. Não é um problema que seja só dos outros, nós há uns meses lançamos uma campanha que lembra que não há crianças imunes à violência. Qualquer criança que existe pode ser vítima de violência, só aquelas que não existem, que são criadas por inteligência artificial, que foi o modo dessa campanha, é que não podem ser.

 

No início falávamos da pobreza, eu pergunto-lhe também, até porque se está a aproximar o Dia da Criança, o dia 1 de junho, em que toda a gente vai falar do tema, vai falar da infância. Perante o atual cenário de crise económica, há o risco de voltarmos a ter de enfrentar em Portugal especificamente o problema do trabalho infantil, ou é uma situação que já se vai verificando? 

Eu diria que espero que esse risco não exista, porque nós também temos uma sociedade muito mais consciente agora, relativamente às questões e às implicações que existem no trabalho infantil. A minha expectativa e a nossa expectativa é que isso não exista, porque se isso existisse significa um retrocesso, e é aquilo que nós não queremos, é um retrocesso nos direitos, nas liberdades e nas garantias das pessoas. Portanto, espero que não, embora o risco possa existir, se de facto entrarmos aqui numa espiral complexa, mas também espero que aquilo que nós aprendemos até agora, enquanto sociedade e o quanto já evoluímos, acabe por pesar nessas eventuais decisões.

 

Outro tema que tem grande impacto na vida das crianças é a violência doméstica, mesmo quando não são vítimas diretas, mas vivem num ambiente marcado pelo trauma e pelo medo. A sociedade está a fazer o suficiente? 

 

Não costumamos usar muita a terminologia das vítimas diretas, porque neste momento para a lei, o simples facto de a criança estar num ambiente doméstico, considera-a automaticamente vítima, como se fosse diretamente agredida. E é importante que as pessoas tenham esta noção, porque é altamente nefasto para uma criança crescer num ambiente de violência, ainda que esteja, entre aspas, apenas a assistir.

Eu diria que, relativamente à violência doméstica, nós temos uma consciencialização muito mais clara, e para a sociedade é muito mais claro que não é viável que uma criança possa estar a crescer neste ambiente. Já há uma maior intolerância também, porque em termos públicos e em termos da sociedade em geral, tem havido uma tónica muito substantiva na violência doméstica. Portanto, eu diria que esse caminho é um caminho relativamente trilhado. Ainda temos muitas vezes é discursos que nos preocupam de achar que as crianças não estão a prestar atenção ao que está a acontecer em redor delas.  Não ouviu, não viu, não estava em casa, mas as crianças sabem e, portanto, é importante termos esta noção de que as crianças sabem bem do que está a acontecer, mesmo que não estejam a olhar para o que está a acontecer.

 

A este nível, são precisas parcerias que ajudem a sensibilizar, por exemplo, já desde a fase do namoro?

Essas parcerias já vão existindo e nós temos programas muito bem estabelecidos, um pouco por todo o país. Nós temos os trabalhos feitos quer por nós, que vamos regularmente às escolas e às comunidades fazer esse trabalho de sensibilização, e só entre 2022 e 2023 foram cerca de 42 mil participantes em ações nossas, no caso crianças e jovens, mas também já existem outros trabalhos feitos, como por exemplo os programas da Escola Segura, da PSP, os programas de proximidade da GNR e, portanto, esse trabalho já vai sendo feito mesmo as próprias equipas de saúde, as CPCJ.

Eu diria que essa sensibilização, voltamos à questão de a prevenção ter de existir como um todo. Nós temos que começar muito cedo, e quando eu digo muito cedo é com as crianças com cerca de 3 anos de idade, e isso é possível, a prevenir e a ensinar a existência de situações de violência, que não é tolerável a violência e a quem é que elas podem pedir ajuda. E desde muito cedo, se formos cultivando essa semente, se calhar vamos ter um bonito fruto no fim.

 

A solução para as vítimas passa muitas vezes por deixar tudo e procurar recomeçar a vida num outro lugar. Pensando sobretudo nas mães com crianças, não seria necessário repensar esta, vou dizer, dupla penalização? 

É de facto uma dupla vitimização porque estamos a falar de alguém que foi vítima se calhar durante vários anos, que tem crianças e que de repente tem de largar tudo e ir para outra cidade. Não é para ir para a porta ao lado, é ir para outra cidade, para outra parte do país.

Aquilo que nós temos visto também, e justiça seja feita, é também uma maior atenção nesse sentido para que as ações que se tomam sejam cada vez mais ações que visem promover o afastamento da pessoa que praticou o crime, em detrimento de se afastar a vítima. E que cada vez mais esta solução da saída de casa sem nada, ou praticamente sem nada, seja o último rácio. Mas eu diria que ainda não estamos totalmente aí, que se vai fazendo aquilo que é possível consoante as situações, mas ainda não estamos totalmente lá.

 

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Agência ECCLESIA

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