A poucos dias do Parlamento voltar a apreciar o diploma sobre a eutanásia, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia, Mariana Abranches Pinto, presidente da «Compassio», uma associação sem fins lucrativos que se dedica a tentar construir comunidades mais compassivas
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Sabemos que a Compassio não tem uma posição sobre a eutanásia e que o seu foco está no cuidado. Pergunto-lhe se estão a ser dados os passos necessários para que as pessoas não se sintam desprotegidas, perante situações de sofrimento extremo?
Acima de tudo, não estarem sós e serem acompanhados: a pior coisa é a solidão, o abandono das pessoas. Isso é o drama maior e acho que nós, Compassio, e as comunidades compassivas no mundo, em geral, tentamos capacitar para um cuidado mais compassivo, sabermos cuidar de uma forma mais compassiva. E tentar dinamizar as pessoas, para se envolverem no cuidado, porque nas grandes cidades acontece muito isto: um grande isolamento, uma grande solidão, apesar de tanta gente e de estarmos tão conectados.
A Compassio existe para recolocar a compaixão no centro das relações humanas, das comunidades, mas com foco nas pessoas em situação de fragilidade relacionada com a doença, o isolamento social e solidão, promovendo a ética do cuidar como um compromisso fundamental da sociedade.
Queremos muito voltar a uma sociedade em que a sua base seja a compaixão.
Fale-nos um pouco da realidade da Compassio? Quantos colabores ou voluntários tem? A quantas pessoas chega? E, já agora, com que idades e com que dificuldades associadas?
Nós somos duas pessoas, na equipa. É uma associação muito recente, temos fundos e vivemos de financiamentos e temos agora dois financiamentos a decorrer: um do orçamento colaborativo daqui de uma União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde e outro do BPI/Fundação ”la Caixa”. Conseguimos então contratar recursos humanos, o que para nós é essencial, porque realmente, sem pessoas contratadas a tempo inteiro, é muito difícil avançar com os projetos.
Trabalhamos em três eixos: tentamos sensibilizar e capacitar para esta cultura compassiva. Fazemos muitos workshops, do género ‘Socorro. A minha prima está doente. O que é que lhe digo? O que é que não digo?’, ‘Todos vamos morrer. 100% de eficácia’, ‘O que será importante para mim quando estiver a morrer?’.
O luto é um dos nossos grandes temas. Temos um workshop que se chama ‘O luto, é a coisa com penas’, ou seja, queremos muito falar destes temas que são tabus, atualmente: a morte, o sofrimento, o envelhecimento, a finitude da vida. Temos outro que se chama ‘Estou mortinho por chegar aos 78’. Pensarmos em conjunto nestas coisas e, com as pessoas, tentarmos trabalhar para uma comunidade mais compassiva. Como é que eu, ao meu redor, posso ser mais compassivo e posso contribuir para uma comunidade mais compassiva? E desmistificar estes temas, porque não se fala, e não falar é muito mau.
Por exemplo, fazemos também ideia de cafés. Ainda agora, na segunda-feira, tivemos um ‘Death Cafe’, foi mesmo bom: uma tertúlia sobre a morte em que há bolo, café, chá e nos juntamos à volta de uma mesa. para falar da morte. Sem querer chegar a lado nenhum, com aquelas pessoas que estão ali. Isto acontece dentro de um movimento Internacional, não é uma ideia nossa.
A morte costuma ser tabu, na nossa sociedade ocidental, mas a associação também vem trabalhando para tentar desmitificar o tema, com iniciativas estas de que nos falou. Têm tido um bom acolhimento?
Sim, nunca tivemos nenhum ‘Death Cafe’ sem ninguém e é engraçado, porque no site do movimento Internacional diz assim: mesmo que não apareça ninguém no ‘Death Cafe’, se um post no Facebook provocar uma conversa lá em casa, ‘que horror, que macabro!’, já é serviço, já está.
Mas nunca aconteceu ninguém aparecer num ‘Death Cafe’ e é realmente muito interessante, nenhum ‘Death Cafe’ é igual ao outro, porque as pessoas são diferentes, também. Nós, cada dia, estamos diferentes… E é muito interessante, tentamos muito que as pessoas não se interrompam, não deem conselhos, e falem na primeira pessoa: na minha situação, eu penso assim. Ouvem-se diferentes perspetivas, realmente.
Queremos depois é que isso provoque uma conversa lá em casa, com a mãe, com o pai, com os filhos. Esse é que é o objetivo final.
É essa a importância de falar da finitude?
Da finitude, a importância de falar disto. ‘Olha mãe, quando morreres, como é que queres ser enterrada? Queres ser cremada?’. E outras coisas, muito mais profundas do que só o ritual. “Como é que queres que seja o funeral?’. Falar destas coisas. Para quem fica, saber que faz o que a pessoa que morreu queria, dá uma grande paz, dá uma grande paz. Por exemplo, com o meu pai tive essa experiência, deixou tudo escrito de como é que queria e nós só tivemos de cumprir: foi uma grande parte.
A associação coloca a compaixão no centro das relações humanas, e em particular nas situações de fragilidade relacionadas com a saúde e isolamento social. Da sua experiência pode fazer um retrato da forma como quem precisa tem acesso aos cuidados paliativos?
Estamos longe, longe, 30% dos portugueses, penso, é que têm acesso a cuidados paliativos… Mas esse é o eixo das redes compassivas e eu gostaria de acabar de falar sobre o eixo da sensibilização: além do ‘Death Café’, também fizemos um mural, ‘Antes de eu morrer, eu quero’, que também é um movimento internacional. Foi um espetáculo, teve imenso sucesso, estávamos com um bocado de receio, mas as pessoas aderiram. O convite era completar a frase: ‘Antes de morrer, quero’…
O quadro era um quadro na rua, grande, completava-se com giz, todos os dias tínhamos de limpar o quadro, estava sempre cheio, cheio de frases, coisas disparatadas e coisas profundas também. Foi muito, muito bonito. Também fazemos outra coisa, vamos para a rua, com atividades com arte, chamar a atenção para a questão da vizinhança compassiva. Por exemplo, fizemos uma atividade no outro dia que era ‘ouve uma história, conta uma história’: havia um telefone, as pessoas pegavam no telefone e ouviam uma história de alguém relacionado com a Compassio sobre o luto, sobre o cuidado, cuidar de um pai acamado. Vários destes temas. A pergunta, no fim, era: ‘e tu, o que farias nesta situação?’ Muito para chamar a atenção destes temas.
Temos também os grupos de partilha, chamados ‘Casa’, que são dirigidos a pessoas em processo de luto, a pessoas com vivência da doença, e também vamos ter uma para cuidadores formais e outro para cuidadores informais. Queremos muito que as pessoas não se fechem em si e que partilhem, que tenham um espaço seguro onde possam falar com outros que passam por situações semelhantes. Nunca é igual, porque cada situação é completamente única e irrepetível, mas tem sido um caminho muito, muito bonito, este caminho dos grupos comunitários de partilha.
Por fim, ativar e dinamizar as redes comunitárias, para pessoas com doença e em situação de solidão e isolamento social, a que chamamos os ‘vizinhos compassivos’. O que nós queremos é que os serviços de saúde – aí estamos muito ligados aos cuidados paliativos – nos encaminhem pessoas que estejam em situação de doença e que tenham redes sociais enfraquecidas ou que sintam sós, porque às vezes também estamos no meio de muita gente e sentimo-nos sós. Se as pessoas aceitarem o projeto, nós vamos para lá, temos uma figura que é a mobilizadora comunitária, a qual vai tentar com a pessoa fazer um diagnóstico, a que nós chamamos o ‘mapa do cuidado e do sonho’. Vemos tudo que a pessoa já tem, os apoios, o que que falta e o que que deseja também, para este tempo de vida, e vamos à comunidade tentar colmatar o que falta. Aí queremos muito envolver as pessoas de proximidade, mas também outras instituições.
Essa é uma questão que parece importante sublinhar: a resposta é uma resposta comunitária, não é abandonar a pessoa à própria sorte…
Comunitária. Porque antigamente era assim, não é? Nós não queremos voltar ao antigamente, não sou nada saudosista, mas numa aldeia ninguém morria sozinho, todas as pessoas se envolviam, iam levar comida, iam ajudar com as crianças. Todas as pessoas se envolviam, de alguma maneira. Hoje isso não acontece. Não queremos voltar ao passado, mas queremos combater a solidão.
E há mesmo o risco se morrer sozinho num hospital, não é?
Num hospital e em casa, não é? Ouvem-se casos de pessoas que morreram sozinhas em casa, o que é uma coisa completamente inacreditável. Como é que na nossa sociedade, no século XXI, alguém pode morrer em casa e depois dá-se pelo cheiro ao fim de uns dias? Não pode ser. Não pode ser. Temos de fazer alguma coisa. Temos de estar mais atentos. Olha, aquela Senhora não apareceu; a minha vizinha do quinto andar já não aparece há três dias. O que é que se passará? O melhor é ir lá ver o que é que se passa. Conhecermos os vizinhos, tentarmos voltar a uma cultura de maior proximidade.
E é muito isto. Mas neste momento, e voltando à sua questão, temos poucos beneficiários porque também o projeto, sobretudo esta parte das redes compassivas começou em julho e isto é um trabalho de fundo. Vai demorar tempo, porque aqui há muitas questões culturais para desmistificar. Por exemplo, uma é: vizinhos cá em casa, nem pensar, nem pensar…. vizinhos aqui em casa, nem pensar. Portanto, as pessoas também têm uma relação de vizinhança difícil. E outra que me afeta muito, que me questiona muito, é esta frase que se ouve sempre: ‘Eu não quero incomodar ninguém’. ‘Eu não quero ser um peso para ninguém’. Estamos sempre a ouvir isto. Nos workshops, nas redes de vizinhança, estamos sempre a ouvir isto. Pois olhem, nós vamos ser um peso para alguém: As crianças, um bebé é um grande peso. O bebé dá um trabalho enorme, não é? É completamente dependente, pois nós nascemos completamente dependentes a precisar de cuidado dos outros. E no fim, se tivermos uma doença prolongada, se não for algo de repente, vamos novamente precisar de ser cuidados. Isto é a nossa realidade; aceitemo-la. E não é um peso. Eu amo a minha mãe. Eu vou cuidar da minha mãe, não é um peso. O Senhor José não é um peso. É uma realidade. Hoje é ele, amanhã sou eu. Quer dizer, a ideia é: nascemos frágeis, vamos morrer frágeis e no meio vamos cuidar uns dos outros.
Claro que há pessoas que nascem frágeis e vão ser frágeis a vida toda e vão ter de ser cuidadas e há outras que morrem a cuidar. E é muito bonito isto. Portanto, é preciso muito desmistificar esta ideia do: Eu não quero incomodar ninguém. Já incomodamos quando éramos bebés, e vamos incomodar outra vez.
Acho que é a questão central que coloca e que tem a ver com essa ideia do cuidado. E eu tenho aqui uma pergunta, a fazer-lhe sobre esta experiência de trabalho. Que grandes desafios é que se colocam além destes que nos tem estado a dizer a quem vive a experiência de sofrimento. A espiritualidade também tem lugar neste processo?
Sim. A espiritualidade é essencial e é um dos valores da Compassio; não a religiosa. A espiritualidade é muito mais vasta, não é? Tem muito a ver com o sentido de vida, com o procurar encontrar um sentido nas situações, procurar sanação, que é algo essencial, que é viver da melhor maneira possível, vivê-lo em paz e isso consegue-se.
Eu vejo isto frequentemente. Pessoas em situações de fim de vida, em situações de finitude e que encontram situação. Pode-se morrer sano, pode-se morrer em paz. Isto é uma procura. Esta espiritualidade é uma procura e nós também nos grupos de partilha, falamos muito desta procura de sentido. O Pablo d’ Ors (padre, teólogo espanhol) alude muito à diferença entre espiritualidade e religiosidade. A religião, é taça ou copo. O vinho é a espiritualidade, todos o que queremos é beber o vinho, depois, cada um escolhe a maneira como vai beber o vinho, e o copo, com que vai beber esse vinho. Mas também sem um copo, diz ele é muito difícil beber o vinho. Mas isso é outro aspeto. Por exemplo, também nos workshops tentamos falar destas questões da espiritualidade. Temos um workshop que se chama «Espiritualidade no hospital, isso existe?» É muito engraçado.
E o que é que respondem as pessoas?
Eu fui a uma consulta e ouvi duas médicas a falar. E uma disse à outra: Ah! sabes que esta noite há uma conversa sobre espiritualidade no hospital. E a outra disse: espiritualidade no Hospital, isso existe? Portanto, está a ver o que é que respondem. E é por isso que se chama assim. Mas claro que há espiritualidade porque onde houver pessoas humanas há espiritualidade. A espiritualidade é-nos inerente, quer queiramos ligar-lhe ou não. Mas nesse workshop tentamos muito que as pessoas entrem em contato com a sua espiritualidade. Através da música, de fazer silêncio, da expressão plástica, da natureza; entra em contato com a sua interioridade. A palavra espiritualidade também tem um grande preconceito, por isso, até nos workshops usamos muito a palavra interioridade, que contem menos preconceito e é a mesma coisa. Aceder ao meu mundo interior, ir ao meu mundo interior. E as pessoas têm forças quando vêm estas situações de doença, de sofrimento há forças internas que vêm. E as pessoas acedem a essas forças internas. E nos workshops também falamos muito disto.
A presença compassiva, o estar ao pé de alguém que sofre tem muito a ver com o silêncio, com a presença, com o escutar, que é muito mais do que dar conselhos, do que dizer palavras bonitas, palavras gastas. As pessoas se forem escutadas… o que cada um nós mais quer, seja em que situação for, mas nas situações de sofrimento de uma forma mais aguda, é ser escutado. É o meu sofrimento, é validado, ela ouviu-me, ela compreendeu-me. E isso alivia imenso o sofrimento.
Falou da importância da comunidade e da mobilização da com comunidade. Perguntava-lhe quão importante é a sociedade mobilizar-se para suprir em muitos casos as carências do Estado?
Eu acho importante porque o Estado sozinho não vai lá. É a sociedade civil que tem de se envolver. Tem de se envolver para colmatar o que falta. É muito isto. Cuidamos da nossa Comunidade, dos membros mais frágeis.
Recordamos, recentemente, o terceiro aniversário do primeiro confinamento. A pandemia condicionou a forma de viver o luto e de lidar com a morte. Pensa que vai deixar marcas no futuro?
Isso é melhor falar com os psicólogos, mas o que eu oiço dizer é que sim. Porque realmente foi horrível, as pessoas não poderem ver o corpo, estar num saco…. As histórias que se ouve obviamente que depois levam a um luto mais complicados.
Não se poder despedir, não poder estar com a pessoa, muitos não poderem ir ao funeral, porque depois também estavam com Covid. Isto deixa marcas que vai demorar muito tempo a sanar. Porque realmente todos esses rituais, a despedida, isso é essencial para estar em paz com a morte das pessoas. O ser cortada essa despedida e esses rituais que são tão importantes, é dramático.
Vamos terminar a nossa entrevista e para o fim deixava-lhe ainda duas perguntas. Uma primeira relacionada com a necessidade de melhorarmos os cuidados paliativos, e depois perguntava-lhe o que é necessário fazer para melhorar a qualidade de vida de quem está a morrer?
Acho devia haver mais que cuidados paliativos, não é? Por exemplo, aqui no Porto, só há muito pouco tempo é que há equipas comunitárias de cuidados paliativos. E eu não posso comparar a situação do Porto com muitas cidades do país, por amor de Deus. Acho que devíamos apostar mais nos cuidados paliativos que realmente é uma arte de cuidar de uma forma integral da pessoa. Eu sou completamente apaixonada pelos cuidados paliativos.
Ter mais acesso a cuidados paliativos e uma comunidade mais envolvida, mais capaz de cuidar. E também profissionais de saúde mais bem cuidados, que cuidem mais de si. Nós falamos também da importância da autocompaixão e do autocuidado para então poder cuidar melhor. Falamos muito disto. É mesmo muito importante, mas no fundo o que queremos muito é isto. Uma Comunidade que saiba cuidar melhor das pessoas, que se saiba autocuidar para então depois poder cuidar melhor das pessoas. E voltarmos a esta cultura de proximidade e, com base na compaixão. Ou seja, fazer tudo para aliviar ou evitar o sofrimento do outro e o nosso próprio também.