«Sociedade não pode desistir de caminhar no sentido da vida» – D. Manuel Clemente

O cardeal-patriarca de Lisboa é o convidado da entrevista semanal conjunta Renascença/Ecclesia, no dia em que a emissora católica de Portugal celebra o seu 85.º aniversário. Uma conversa que passa pela atualidade nacional e internacional, da guerra na Ucrânia à Jornada Mundial da Juventude de 2023

Foto: RR/Miguel Rato

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 Esta é uma rádio que já acompanhou muitas gerações, e também fez parte da sua vida. Teve aqui um programa durante vários anos. Tem saudades de fazer rádio?

Tenho, tenho, porque era um contacto não presencial, mas muito direto, através da rádio, com muita gente. Recordo-me que a certa altura se fez uma contagem e para um programa ao domingo de manhã – que demorava uma hora, entre as 10h e as 11h, e que eu fazia com a Francisca Favilla e o Óscar Daniel – chegámos a ter audiências de 100 mil pessoas, a uma hora tão inóspita! E quase 20 por cento dessa audiência era constituída por gente entre os 18 e os 25 anos, o que também não é nada habitual a essa hora de domingo.

Tínhamos, além da referência ao Evangelho de cada domingo –  o programa chamava-se ‘O Dia do Senhor’ – alguma atualidade eclesial e, numa terceira parte, eu respondia a questões que as pessoas iam pondo, e foi muito interessante. Gravei esse programa aqui em Lisboa desde os meus tempos de bispo auxiliar, começou em 2001. Depois quando fui para o Porto, em 2007, ainda continuou e durou até 2013. Foram 12 anos, todos os domingos.

Era muito curioso porque, quando cheguei ao Porto, como bispo – era uma zona que conhecia mal – chegava a alguma aldeia e diziam-me ‘ainda há bocadinho estive consigo’. Onde? ‘Na rádio, todos os domingos’…

 

Ia tendo ecos dessa audiência…

Era muito interessante esse contacto que o programa permitia com muita gente.

 

Que importância atribui à existência de órgãos de comunicação social com matriz católica – como é o caso de Renascença e da agência Ecclesia -, para a própria Igreja?

A importância vem da convicção que temos – falando em termos pessoais, mas também com objetividade – de que a visão cristã das coisas, o Evangelho na vida, continua a ser tão importante como é desde há dois mil anos a esta parte. E há apetência da parte do auditório, que às vezes nem sequer é confessional ou religioso, no sentido estrito do termo, mas que se interessa pelas coisas que o Evangelho traz, direta ou indiretamente. Daí que tenha toda a importância e conveniência, principalmente como serviço à sociedade, porque aquilo que entendemos que é bom e positivo, também é obrigação oferecê-lo aos outros.

 

Preocupa-o a crise que tem atingido o setor da comunicação social, que se acentuou com a pandemia e que também atinge os media ligados à Igreja?

Claro que nos preocupa a todos, e felicito aqui a rádio Renascença pela maneira como, com a administração do D. Américo Aguiar e dos seus colaboradores, tem conseguido ultrapassar essas dificuldades. Porque aquilo que não é estatal vive do apoio que a sociedade lhe dá, e sociedade neste caso tem a ver com a economia, e a economia tem a ver com publicidade, e se falta essa base, o andamento normal das coisas e a permanência dos custos é um problema. Mas, tem-se conseguido enfrentar e resolver positivamente.

Acompanho com atenção o trabalho que aqui se faz, da parte da administração e de todos os colaboradores. É uma crise, além daquilo que a pandemia trouxe, o que agora esta guerra traz também tem reflexos económicos fortíssimos, além dos humanitários, que se vão reverter no custo de vida da população. Tudo o que tem a ver com dinheiro, circulação de dinheiro e com apoio que daí pode vir, agora fica mais dificultado.

Esta crise, que tem mais a ver com essa parte económica, financeira e de manutenção e gestão, depois liga-se a outra, que podemos considerar uma crise de crescimento em termos de comunicação: é que não comunicamos hoje como antes, já não digo há 85 anos, quando começou a rádio Renascença, mas até há menos tempo… A maneira de comunicar, de estar presente na vida das pessoas, com todo o progresso tecnológico que se verifica, é outra.

 

Essa é uma questão permanente para quem reflete neste setor: o desafio que as redes sociais trazem, onde a informação circula rapidamente e muitas vezes sem obrigações éticas. A guerra na Ucrânia veio mostrar a importância que tem uma informação rigorosa e credível, para que o público possa acompanhar o que está a acontecer?

Tem uma grande importância, porque sabemos que realidades tão negativas como as guerras e os conflitos também têm uma vertente de propaganda fortíssima, que entra quase na logística. Daí que tenhamos de ter uma cautela redobrada – até porque o acesso direto às fontes fica dificultado, e às vezes até impossibilitado – para termos uma informação o mais consistente possível, verdadeira, no sentido de corresponder à realidade e aos factos, e que é muito importante para que as pessoas possam ser informadas e pensar devidamente. Aliás, há um debate agora acerca da veracidade de muitas das informações que chegam, da contaminação que podem ter com propaganda de um lado ou de outro, e como isto tudo depois dificulta nos termos uma visão clara das coisas, para podermos ter uma decisão correta em termos de opinião pública.

 

Por isso é que também é importante ter repórteres nos locais, que possam ir confrontado esses vários lados.

É muito importante, e quantos mais melhor, e até com diferentes posturas, porque a realidade pode ser observada de muito lado.

 

Como historiador como é que olha para o que está a acontecer na Ucrânia?

Como a História mostra, assim numa amplitude maior de visão dos acontecimentos, estamos mais uma vez numa fronteira complicada.

Esta Europa do Atlântico aos Urais é tudo menos homogénea. Há aquilo que acontece na Europa latina, nestes países com os quais temos relação mais direta, e até linguística – Península Ibérica, França, Itália -, e depois na Europa mais alargada, que inclui outras proveniências, germânicas e de outras origens, com as quais temos relações muito antigas, quase desde a fundação do nosso país, como a Alemanha e a Inglaterra.

É curioso que para pessoas que são da minha geração – nasci em 1948, ainda na primeira metade do século passado -, quando falávamos em Europa, ela acabava na Alemanha, praticamente, porque logo a seguir à II Guerra Mundial estabeleceu-se a cortina de ferro e o que se passava para lá da Alemanha, nós sabíamos que era Europa, nos mapas estava nesse continente, mas o sentimento de Europa não era tão direto. Também sabemos que a partir dos anos 50 a construção da União Europeia é toda ela da Alemanha para cá, e assim foi até aos anos 80, à queda dessa fronteira…

 

Isso também justifica as intervenções sucessivas de João Paulo II a dizer que a Europa tinha de respirar com os dois pulmões…

Ou não fosse ele polaco! Aliás, um dos grandes contributos que a eleição de um Papa polaco trouxe – e não nos esqueçamos que foi em 78, ainda a uma dúzia de anos da queda do bloco soviético – não só à vida europeia, mas também à vida mundial, foi trazer essa outra parte da Europa para o centro da cristandade católica. Agora temos a outra fronteira, que vai além destes países, que é a fronteira com a Rússia, que também tem andado para lá e para cá muito tempo ao longo da história, concretamente esta zona da Ucrânia, mas também outras, como a própria Polónia, que teve várias repartições ao longo dos séculos.

Depois ainda há a fronteira que vem da velha distinção do Império romano do Oriente e do Ocidente, que é a que passa pelos Balcãs. Tudo isso, que parece uma antiqualha, não é, e vem ao de cima com muita frequência nestas alturas mais conflituosas, ou porque realmente ainda existem essas clivagens, ou porque elas são aproveitadas para fazerem autolegitimações daquilo que se quer fazer.

 

Temos visto neste conflito líderes religiosos, cristãos, a usar esse fundo histórico, teológico e ideológico, para justificar a intervenção na Ucrânia. Onde é que está Deus neste conflito?

Está em todo o lado, como sabemos, partimos do Catecismo: Deus está na terra, no céu e em toda a parte. Agora, concretamente na nossa tradição cristã, em que olhamos para Deus com os olhos que Jesus Cristo nos dá, esse ‘todo o lado’ significa ‘em toda a gente’, porque acreditamos que a encarnação de Deus em Jesus Cristo o alarga a cada pessoa. Não há outra perspetiva cristã senão ter esta amplitude de visão. Mais uma razão para não podermos admitir coisas deste género, como estão a acontecer, porque a guerra nunca é uma maneira de resolver conflitos.

A guerra defensiva pode-se perceber em algumas circunstâncias, com certeza, defender o que é seu, tanto quanto se possa defender e com o mínimo de estragos possível do outro lado, mas uma guerra ofensiva, uma invasão e destruição de um país, isto é completamente inaceitável.

 

Acredita que será possível uma visita do Papa a Kiev?

O Papa Francisco pronunciou-se sobre isso agora na sua visita a Malta, e aludiu àquilo que ele tem, e a Igreja, e que pela Igreja a sociedade tem ao seu dispor, que é a experiência diplomática da Santa Sé.

Há esta particularidade de que a Santa Sé está presente em quase toda a geografia mundial, com representações diplomáticas, mesmo em países que não são de maioria católica, mas gostam de ter essa presença, e tem esta especificidade de ser a única diplomacia cujos agentes são de todos os países. Os diplomatas de um país são desse país, os diplomatas da Santa Sé são dos cinco continentes, têm uma grande experiência acumulada e ao mesmo tempo uma grande capacidade de aproximação das circunstâncias que vêm dessa pluralidade dos seus membros. Ainda agora, o enviado do Papa à Ucrânia é um cardeal polaco, mais próximo de toda essa realidade e cultura. Esteve aqui também em Lisboa (quando veio presidir em Fátima à Consagração da Ucrânia e da Rússia ao Imaculado Coração de Maria) e tive ocasião de conversar com ele, sobretudo de o ouvir, e essa sensibilidade quase de origem ajuda muito.

O Papa respondeu que a diplomacia da Santa Sé está a fazer todo o possível, não só para travar este conflito, mas também para se tornar presente e ajudar, e para verificar se é oportuna uma visita papal. Porque resta saber se é oportuna, não basta aqui ter a boa intenção…

 

Saber que efeito poderá ter esse envolvimento mais pessoal do Papa. Voltamos à propaganda, e à possibilidade de a visita ser aproveitada por uma das partes…

Isso será, certamente.

 

Por isso é preciso ponderar?

Ter muito cuidado, porque aqui a boa vontade não chega. É sempre indispensável, mas é preciso depois o acerto, e aí a diplomacia – e uma tão treinada como é a da Santa Sé – ajuda com certeza.

 

Como é que vê a onda de solidariedade que se gerou em Portugal para responder a esta crise da guerra?

Vejo-a de uma maneira muito positiva, e é mais um caso em que a sociedade antecede o Estado, o que é natural, e é melhor que seja assim até. Foram tantas as iniciativas que logo apareceram e se concretizaram. Estou a lembrar-me de paróquias na nossa diocese, mas aconteceu com outras, que em colaboração com autarquias, bombeiros e misericórdias organizaram idas lá, trouxeram e já instalaram as pessoas, e antes organizaram essa receção. Depois, no caso da Igreja católica, há as nossas redes Cáritas, quer diocesanas quer a Cáritas Portuguesa, e outras parcerias que temos como a PAR, de apoio aos refugiados.

A sociedade andou muito mais depressa do que as próprias estruturas oficiais, o que é natural, porque a parte estrutural é estrutural, implica já institucionalização, ter instaladas as respostas, isso demora sempre algum tempo. Agora, a sociedade não esteve à espera do Estado nesse sentido de organização e administração, pelo contrário, até impulsionou a que as estruturas oficiais trabalhassem de acordo.

 

Referiu a Cáritas, que a fez uma campanha especial para a Ucrânia, que em cerca de um mês 506 mil euros. Uma contribuição bastante grande…

Sim, sim. Aparecem nestas alturas generosidades que não estaríamos a contar que fossem assim tão grandes. Mas, mais uma vez, como há pouco falávamos da diplomacia, é preciso também competência, ver como é que se canaliza todo esse apoio de uma maneira correta e com futuro, não esquecendo que desta vez não é um caso de imigrantes. São refugiados, um movimento de massas, de fuga, que vêm como podem vir, trazendo o que podem e à espera, para já, de terem sossego e paz, mas com certeza que a sua ideia é, assim que possam, voltar às suas terras e casas, recuperar as suas convivências, a começar pela família que lá deixaram.

Não esqueçamos que houve, e há, grande dificuldade para saírem os homens, por causa da defesa do país, por isso vem a parte feminina da família, e as crianças e os idosos, mas a vontade que têm é de reconstituir o seu quadro de vida, tanto quanto possível e o mais depressa possível. Portanto, é diferente um refugiado de um imigrante, embora depois haja conexões, refugiados que se tornam imigrantes, e por aí fora. Também temos casos desses. Que haja disponibilidade, boa vontade, colaborações, tudo bem, mas ao mesmo tempo dar a isto o melhor seguimento possível.

 

E o grande esforço será depois na reconstrução da Ucrânia.

Para lá, mas para aqueles que cá ficarem também garantir que isto se faça da melhor maneira possível, e sem gastar mal aquilo que pode ser bem gasto.

 

Vamos iniciar a Semana Santa, este ano já sem restrições nas celebrações. É importante poder retomar a tradição, sobretudo nesta altura da Páscoa, que é tão importante para os cristãos?

É muito importante, para os cristãos e até para a sociedade como tal, em relação a isto que nos diz mais diretamente respeito, a celebração da Semana Santa, como a outros momentos de convívio e confraternização que fazem parte da vida social das pessoas. Todos nós precisamos disto.

As pessoas da psicologia e áreas conexas têm-nos alertado muito: a pandemia – como as outras pandemias e pestes que assolaram a humanidade – passa, como tudo passa, mas o que sobra na vida e memória das pessoas, isso demora mais tempo a passar, daí que seja muito importante retomarmos estes ritmos de convivência. E estas convivências que começaram por ser litúrgicas para os cristãos – estou a falar do Natal, da Páscoa, dos padroeiros das terras, etc – acabam por ter uma projeção na sociedade como um todo, mesmo em pessoas que já não o fazem confessionalmente, mas aproveitam essas alturas para se reunirem e reencontrarem, e isto é muito importante para a vida social.

Para nós, em termos de Semana Santa, claro que é importantíssimo. Aliás, toda a liturgia cristã há dois mil anos começa à volta deste núcleo pascal, a começar pela celebração do domingo, o dia da Ressurreição, depois a pouco e pouco começaram a celebrar-se também os dias anteriores da Paixão, e com o tempo também se instalou o costume quaresmal dos 40 dias. Mas, isto depois fez sociedade, agregou pessoas, criou ritmos à volta de alguém que, como acreditamos, é muito central para sermos outra coisa, quer em termos pessoais quer em termos comunitários, que é Jesus Cristo. Daí que seja muito bom que o possamos fazer, com cautela, porque a pandemia ainda não passou. Tenhamos muito cuidado com as regras, em espaços fechados termos a máscara, manter o distanciamento possível, regras que julgo que em grande parte até ficarão.

 

O papel da Igreja Católica no momento da suspensão das celebrações comunitárias, e na implementação de regras muito claras, foi importante não só para as comunidades católicas, mas para a própria sociedade, para que houvesse um clima de paz social na superação da pandemia?

Eu creio que foi mesmo muito importante. E não sou só eu, isso tem sido unanimemente verificado, até analistas não confessionais sublinharam esse papel, até porque nós começamos antes (do país confinar)…

 

E houve contactos com o governo, sistemáticos.

Houve, mas ainda antes dos contactos… eu estava nessa altura ainda na presidência da Conferência Episcopal, reuni imediatamente e tivemos a consciência de que era para travar logo. Porque havia muita coisa marcada, estávamos no princípio da Quaresma, com aqueles ritmos de celebrações e procissões, e percebemos que dada a gravidade da situação, e até o desconhecimento do que aquilo acarretaria – nunca tínhamos sido surpreendidos desta maneira, pelo menos nas nossas geraçães mais próximas -, era necessário travar qualquer oportunidade de contágio e isso significava celebrações, procissões, catequeses, reuniões. Passámos rapidamente para uma Igreja mediática, mas foi com certeza um contributo importante, e como tal tem sido reconhecido.

 

Esta experiência de dois anos que todos vivemos também teve reflexos e provocou alterações na prática religiosa. Isso preocupa-o? Houve muita gente que se afastou e ainda não voltou? Os jovens?

Ainda é cedo para fazermos essa avaliação. Porque há aqui muita coisa que é natural, ou seja, as pessoas se foram tão restringidas nos seus ritmos habituais, também não passam imediatamente para uma conduta diferente, e estamos a falar não numa realidade de semanas, mas de dois anos, com interrupções e voltas atrás. Tudo isto cria uma certa resistência à normalidade. Por um lado há vontade, por outro há receio. E não esqueçamos que a nossa população portuguesa é muito envelhecida, temos quase um terço da população acima dos 60 anos, e muitas pessoas com dificuldades de mobilidade, para sair de casa.

 

Dificuldades que também se agravaram com a pandemia…

Exatamente. Portanto, há aqui um conjunto de fatores. Em relação à iniciação cristã dos mais novos, as catequeses foram muitas vezes interrompidas, as atividades de férias, tudo isso ficou entre parentesis. Retomar isso não é imediato. Há vontade? Há, vamos ver como é que isto agora se vai recompondo. Mas creio que também pode trazer, e nalguns casos trará, mais consciência daquilo que se estava a fazer, não apenas porque era costume, mas porque realmente faz falta e a comunidade é o meu lugar, concretamente a comunidade cristã. Há aqui qualquer coisa que vai de certa maneira recuperar-se e de outra transformar-se, espero que para melhor.

 

 

Em fevereiro de 2019, participou na cimeira mundial convocada pelo Papa para definir novas estratégia na prevenção e combate ao abuso sexual de menores. Em Portugal foram criadas comissões diocesanas e uma comissão independente, que está a recolher testemunhos, sobre estes casos. Pensa que este é o caminho correto, a ser seguido?

Nem vejo outro. Quando temos pela frente um problema, a primeira coisa que temos de fazer é enfrentá-lo. Para já, temos de saber detetá-lo, saber o que é, a sua dimensão, e é isso que estamos a fazer.

Depois, montar estruturas de resposta, de acolhimento das pessoas que foram ofendidas, de resposta a essa problemática, e sobretudo de prevenção. Como sabemos, sem alijar responsabilidades, isto é algo que nos toca a todos, como sociedade, as estatísticas estão aí, não é? Da nossa parte, estamos a fazer aquilo que nos compete e, com certeza que outros o farão também, porque isto só se pode resolver no geral. Ninguém nasce na Igreja, as pessoas aparecem na Igreja, mas não nasceram nem foi lá que a sua vida se estruturou, de certa maneira. Tem de ser encarado como um problema da sociedade; naquilo que nos compete, temos de o encarar, também, e responder da melhor maneira.

Foi aquilo que se fez, com a rápida instalação das comissões diocesanas – nas 21 dioceses do país há comissões estabelecidas, compostas por especialistas no campo da psicologia, judicial, várias pertenças, mas todas elas trazendo a sua competência profissional – e depois, agora, criando uma coordenação nacional, para que o trabalho das comissões diocesanas possa ser ainda mais apoiado. Além disso, tivemos a iniciativa de criar uma comissão independente, para fazer um estudo, histórico, de há muitas décadas, para que se possa enquadrar e perceber melhor a questão, porque realmente é uma questão.

Creio que não poderíamos fazer de outra maneira e aquilo que estamos a fazer está certo.

 

Alguma coisa do que foi sendo divulgado até agora, nomeadamente pela comissão independente, o surpreendeu?

Infelizmente não. Até porque, como digo, o tempo histórico é muito largo. Alguns dados que a comissão independente tem apurado vão na linha de outros que se apuraram noutros países, ou seja, é uma questão que estava muito presente, sobretudo, até aos anos 90 e que a partir daí – até por uma outra consciência que a sociedade, no seu conjunto, foi tomando em relação a esta problemática e que não tinha, até aí – foi diminuindo. O que tem aparecido, em relação a Portugal, aparece em relação aos outros países.

Como se tem dito, e eu também o digo, em muitos destes casos não se espera grande espetacularidade, porque as pessoas querem ser ouvidas, não querem ser expostas, já sofreram que chegue.

 

O compromisso da Igreja é o total esclarecimento dos casos?

Com certeza, exatamente. A grande maioria deles já está prescrito, passou muito tempo, mas a Igreja segue o seu caminho, concretamente escutando e apoiando quem tenha sido ofendido.

 

 

Em termos políticos temos um novo Governo e um novo Parlamento, onde já se sabe que a eutanásia vai voltar a ser discutida e votada, por iniciativa do Bloco de Esquerda. Como é que comenta essa intenção?

Comento, mais uma vez, remetendo à sociedade. Sabemos que, em relação à vida, há um enorme contraste face àquilo que o Evangelho propõe – é a atitude de Jesus Cristo, que está em todas as fronteiras da vida, não dispensa nenhuma quer em relação às doenças que na altura eram incuráveis, como os leprosos, quer em relação a qualquer situação em que a vida estivesse em causa, Jesus está sempre do lado da vida. Nós hoje sabemos, como nunca soubemos, onde é que essa vida começa. Agora não falo de eutanásia, falo da conceção, do que deveríamos fazer e não fazemos suficientemente em relação à vida em gestação. Ela não está nem legalmente protegida, com a permissão do aborto nos termos em que se faz, nem prevenida: realmente, há muitos problemas em relação a algumas conceções, que não foram queridas, que surgem em relações que não são do tipo do amor nem humanas. Como sociedade, deveríamos estar presentes nessas situações, para dar uma resposta no sentido de dizer: “A vida que aí está é uma vida que, para nós, também é preciosa, também conta. Para ti é um problema, estamos aqui contigo, vamos resolver todos juntos esse problema”. Para nós esse é um valor, que prezamos, é o valor da vida, mas temos de apoiar aquelas situações em que tudo isso é muito complexo.

Nunca tivemos tanta evidência que, desde a conceção, há um contínuo vital que, se não for barrado, vai dentro do útero materno, e depois, ter o seu seguimento. Nunca tivemos tanta evidência disto como agora, aliás, não é a primeira nem a segunda vez que vou a casa das pessoas e elas começam a mostrar as fotografias dos filhos, e com quatro meses já têm nome e tudo. Nunca houve tanta consciência disso e tão pouca coincidência, em termos de resposta social a esta problemática. Porque existe, mas não resolve, na minha opinião, juntando a um mal outro mal, que é o desaparecimento daquela vida.

 

E a questão coloca-se na eutanásia, quando se propõe a morte como solução para um sofrimento intolerável?

Não é a mesma coisa, obviamente.

 

Falamos relativamente à atitude da sociedade…

Em relação à atitude da sociedade, sim, o descomprometimento. Até porque nós sabemos, com a prática dos cuidados paliativos, onde eles são realmente oferecidos – e sei disso, por experiência própria, em termos de companhia, nalguns casos -, essa última fase da vida que está limitada, porque a doença vai ter o seu desfecho, tanto quanto é previsível, pode ser vivida serenamente. Se for acompanhada. Recordo-me, ainda não foi assim há tantos meses, que fui visitar uma pessoa conhecida, que nem era crente, e estava numa unidade de cuidados paliativos, e tinha toda a sua agenda ocupada com várias coisas que queria terminar.

Porque tinha esse cuidado paliativo, fazia das três, quatro semanas que tinha como previsão de vida umas semanas preenchidas. E outros casos…

 

É possível? Esses momentos de serenidade e paz são possíveis?

Não estão acessíveis, esse é que é o problema, o desafio que nós deveríamos ter e temos – continuaremos a ter, independentemente do aspeto legal, porque nem em relação ao aborto nem em relação à eutanásia, caso se venha a aprovar, a sociedade pode desistir de caminhar no sentido da vida e de ser consequente. Não são batalhas perdidas, a causa da vida é uma frente constante. Aliás, tem consignado o apoio de vários credos, que se têm pronunciado, isto sem falar nos pronunciamentos dos sucessivos bastonários da Ordem dos Médicos e outras instâncias da sociedade. Este é que é o ponto: temos de caminhar, de maneira consequente, no sentido da promoção da vida em todas as suas fases. Não estamos a dizer que a vida tem de ser necessariamente a daquele figurino que a publicidade mostra, com capacidades de eterna juventude, por aí fora, não: é a pessoa como ela é, com a sua fragilidade.

 

É favorável a que se realize um referendo sobre a Eutanásia?

O referendo, neste aspeto, tem muito de episódico e de falível. Não sei se é a melhor maneira. O que os referendos podem servir como ocasião de esclarecimento, ou seja, há mais pessoas a pronunciar-se sobre o assunto, mais elementos que chegam, desde que se consiga manter a serenidade, o respeito mútuo, o verdadeiro diálogo e não monólogos à força. Tem-se verificado que são oportunidades de esclarecimento, agora que resolvam… Tivemos dois referendos ao aborto, com resultados diferentes, mas o problema continua.

 

Lisboa prepara-se para acolher no próximo ano a Jornada Mundial da Juventude. Os preparativos estão a correr como previsto? O que é que mais o preocupa?

É um desafio enorme e temos 16 meses, ou seja, é já depois de amanhã. Foi adiado, por causa da pandemia, mas agora é em 2023, vamos fazer o melhor possível e, como o Papa também tem referido, é uma grande oportunidade para a sociedade, para a juventude mundial, de refrescamento, para utilizar a sua linguagem, esperemos que já numa altura pós-pandémica. Que a juventude mundial, em torno daquilo que a mensagem cristã lhe ofereça, rejuvenesça, e com ela rejuvenesça também a sociedade.

 

E sente os jovens portugueses mobilizados para este momento?

Esta Jornada, a iniciativa, partiu daí. Posso dizê-lo com conhecimento direto: neste momento, sou o bispo em funções mais antigo, e logo desde a primeira vez que fui à Conferência Episcopal, em novembro de 1999, comecei a reparar que havia esta ideia. Até porque muitos já tínhamos participado. Depois, começamos a fazer contas e a questionar a possibilidade de se fazer algo aqui, com este tamanho, porque começaram a ganhar grande número de participantes, no princípio eram dezenas de milhares, depois centenas de milhares, milhões… começou tudo a ser mais complicado e acredito mesmo que, lá para Roma, não seja muito fácil encontrar candidaturas, sobretudo nalguns países onde gostaria de o fazer, mas não há possibilidades.

O que acabou por impulsionar mais a iniciativa, não só de Lisboa, mas da Conferência Episcopal no seu todo, de se propor esta Jornada em Portugal veio, sobretudo, da movimentação juvenil. Não sei se as pessoas se dão conta do que acontece neste triângulo, por exemplo: Missão País, que envolve milhares de estudantes universitários, no intervalo entre os dois semestres, que vão durante uma semana para determinada localidade, participar na vida da população, quer da comunidade cristã quer das pessoas em geral, fazendo encontros, refletindo; os Núcleos de Estudantes Católicos, nas universidades, que já são dezenas, pelo país; e depois as atividades de voluntariados, como os campos de férias que fazem para outros adolescentes, mas também em relação à pandemia, muitos deles com iniciativas para substituir o pessoal dos lares, que foi afetado pela Covid. Há aqui uma dinâmica juvenil, alguns deles agregados em movimentos ligados a institutos religiosos ou espiritualidades, como as Equipas Jovens de Nossa Senhora, e foi desta gente, em grandíssima parte, que veio o impulso de irmos para a frente.

 

Acredito que seja uma preparação vivida com muita emoção. O Papa já manifestou a sua vontade de estar com os jovens, em Lisboa, e de visitar Fátima, nessa viagem. O programa está perto de ser definido, tem havido muitos contactos nesse sentido?

Sim, o programa já está mais ou menos estabelecido. Esta Jornada já vem dos anos 80, o programa basicamente tem aquele grande encontro numa quinta-feira; depois, o grande momento coletivo, na sexta-feira, é a Via-Sacra pública; no sábado é a vigília que dura toda a noite, porque as pessoas ficam no local, até à Missa de encerramento e envio no domingo de manhã. Isto depois é complementado com centenas de catequeses que se fazem nessas manhãs, durante a Jornada; é prefaciado por encontros nas dioceses, na semana anterior, e imagino que no verão do próximo ano, a partir de julho, comece a chegar gente, até se concentrarem depois em Lisboa, na primeira semana de agosto. O programa em si está mais ou menos estabelecido, o Papa gosta sempre de complementar a sua presença, sabemos que aqui irá a Fátima, já manifestou essa vontade e todos nós temos todo o gosto que o faça, e às vezes ele ainda junta mais outras coisas, uma visita a um ou outro local que ele ache mais importante ir, como sinal da presença da Igreja. Ainda há uma certa margem de manobra, mas os dias são aqueles, a Jornada é aquela semana [1 a 6 de agosto de 2023].

 

Há entusiasmo para este grande evento que Lisboa vai receber?

O entusiasmo transborda. Julgo, tenho dito isto, que aquilo que já está em campo, ou seja, o tecido que se montou com os Comités Paroquiais, Vicariais e Diocesanas, até ao central, o Comité Local, tudo isto tem instalado no terreno de todo o país uma organização e movimentação juvenil que vai ficar e criar uma rede de Pastoral Juvenil renovada em Portugal, não tenho dúvidas. Quem ganha este balanço não quer ficar parado…

 

Muito obrigado por conversar connosco nesta ocasião especial, os 85 anos da Renascença.

85 anos de uma rádio que não se chama Renascença por acaso. Naquela altura, em Portugal, havia muita vontade de renascer, até havia revistas com esse título, portanto, havia um sentimento de relançamento do país em que a Igreja quis participar, com esta feliz iniciativa do Monsenhor Lopes da Cruz.

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Agência ECCLESIA

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