A Conferência Anual da Comissão Nacional Justiça e Paz colocou em diálogo empresários e trabalhadores cristãos na defesa de “salários justos contra a pobreza”. Américo Monteiro, da Liga Operária Católica (LOC -MTC), que apresentou a visão dos trabalhadores, é o convidado desta semana da Renascença e da Agência Ecclesia.
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
A realidade que estamos a viver, em que se acentua o custo de vida, com uma inflação muito elevada, torna ainda mais urgente a discussão dos salários?
Torna se urgente pela discussão que se está a ter. A discussão tem decorrido é que todos perderemos todos perderemos poder de compra…
Não é o que diz o ministro das Finanças…
Ele fará as suas análises, mas é o óbvio, é evidente que qualquer aumento que não supere os 8% é perda de poder de compra.
Aqui coloca-se uma preocupação: da própria União Europeia vem a indicação de que os salários poderiam subir um bocadinho mais do aquilo que o Governo está a pensar fazer. Isso exige muita reflexão, muita discussão, porque noutros anos, em que as condições não eram más, em termos de inflação, os trabalhadores, a maioria dos trabalhadores, tiveram aumentos inferiores à inflação. Ora, com a inflação a este nível e a perda de salários que foi decorrendo durante os anos de crise que vivemos, tem de se pensar nisto de uma outra forma. A exigência tem de ser maior, é evidente. ETodas as instituições, todos os poderes, têm de olhar para isto de forma a corresponder àquilo que são as exigências do momento.
E o justo seria um aumento da ordem dos 8%?
Acima dos 8%, porventura por perdas havidas em anos anteriores, deveria ser mais à volta dos 10%. Isto para equilibrar aquilo que os trabalhadores – aqueles que têm vencimentos e que trabalham – têm perdido ao longo dos anos. Num ano tão duro como este, convinha haver alguma melhoria e não só a atualização ou não só perto da atualização. E parece-me que estamos um pouco longe da atualização necessária.
E o que é que é um salário justo perante a realidade que aponta para uma percentagem da ordem dos 30% de pessoas com contrato de trabalho e que vivem na pobreza?
Essa é outra questão. Mais do que os salários, nós vivemos numa sociedade muito injusta e, portanto, como todas as entidades sabem – e como a nossa entidade mais alta, o Papa Francisco, nos diz – é preciso uma distribuição da riqueza mais concreta. Nós não podemos estar a analisar os custos do salário hoje, numa empresa, aos mesmos níveis de há 20 ou 30 anos, que era um outro tipo de realidade, em que as empresas tinham muito mais mão de obra, etc.
Temos de nos atualizar na reflexão e ver que hoje as coisas evoluíram muito, é preciso que a riqueza seja mais bem distribuída. O grande chavão é 1% da população no mundo tem quase 80% da riqueza do mundo… é um chavão e é uma realidade, infelizmente, que devia ser combatida por quem tem poder para isso, colocando determinado tipo de impostos, de exigências, para que a distribuição fosse maior. Mas é verdade que nas próprias sociedades, em cada país por si só, as diferenças também são gritantes. É necessário que os poderes instituídos tenham capacidade para distribuir a riqueza de outra maneira. Há tantos projetos, tantas dinâmicas aí pelo país, dinheiro a ser investido, etc. É necessário, quando se trabalha isso, que se exija que mais dinheiro chegue a quem trabalha, para que os trabalhadores, toda a população, tenham uma vida mais digna e mais compatível com os tempos de hoje.
O Salário Mínimo Nacional é agora de 760 euros, mais 55 do que em 2022. É um passo para ajudar a superar a pobreza em que muitos trabalhadores se encontram?
O salário mínimo nos últimos anos tem dado um bom salto. Há que reconhecer isso. Sabemos que os estudos feitos, por parte do Estado, àquilo que é o rendimento que tira as pessoas da pobreza é muito inferior àquilo que deveria ser o real. O rendimento que deveria ter cada trabalhador teria de ser um pouco superior ao salário mínimo nacional, para que o nível de pobreza baixasse bastante no nosso país. Há que reconhecer que o salário mínimo nacional tem puxado os salários mais baixos para cima, mas nós temos um problema muito grave em Portugal, que é a escassez de negociação coletiva.
Os trabalhadores que não estão enquadrados no salário mínimo nacional e na contratação coletiva, que cada vez são mais – os trabalhadores qualificados, os trabalhadores com uma carreira nas empresas -, estão a ganhar salários muitíssimo baixos. Ora, se não há negociação coletiva, que é o que passa acima do salário mínimo nacional, quer dizer que só o aumento do salário mínimo nacional não chega…
É bom para os que têm os salários mais baixos, para os que estão a começar as suas profissões têm dado alguma ajuda de atualização, mas ao nível da negociação, isto é, mais com as entidades patronais e as entidades até do próprio Estado, que negoceiam os contratos coletivos de trabalho, isso não tem funcionado. Tem sido uma percentagem muito baixa de negociação, de contratação coletiva, e por valores muito baixos, uma vez que a disponibilidade para negociar melhores condições tem sido muito fraca no nosso país.
Ou seja, estamos a ter ou deixar de ter uma espécie de salário médio em Portugal. E recordo que, por exemplo, dados da Segurança Social de Outubro passado dizem que mais de 2 milhões de trabalhadores ganhavam em outubro até 800 euros…
Sim. A questão é essa: quer dizer que metade dos trabalhadores por conta de outrem em Portugal ganham um salário até 800 euros. Na situação de custo de vida que temos, da habitação, da alimentação, do salto que estas coisas deram, é um salário muito baixo. E isso acontece porque, nos espaços onde deveria haver negociação, digamos, para aproximar esses salários ou puxar os salários para outros níveis, não tem havido disponibilidade, não tem havido acordos. Mesmo os acordos que têm existido trouxeram alguma regressão de direitos, de condições de trabalho, etc., que nos tempos de hoje já não deveriam estar a acontecer.
Isso faz-se através de mais negociação coletiva…
Tem de ser, só pode ser através disso. Não tem lógica estar a ser por imposição, por decreto-lei. Isso não se faz acima do salário mínimo nacional, portanto, tem de haver vontade do lado das entidades patronais. Tem de haver reflexão para que atualizemos hoje o valor que as empresas têm de atribuir ao fator trabalho, porque os tempos são outros, as empresas têm muito menos trabalhadores a produzir muito mais, a dar muito mais rendimento. Ora, tem de haver melhores salários para que quem está no local de trabalho se sinta motivado, interessado, para levar também as empresas para a frente.
Os últimos dados dizem-nos que a emigração de portugueses para o estrangeiro regrediu um pouco, relativamente ao que vinha acontecendo. Perante esta situação, e se não houver essa melhoria salarial, receia que volte a aumentar o número de emigrantes na procura de mais conforto?
Nós sabemos que hoje o tipo de emigração que temos é muito diferente do de há alguns anos. São pessoas qualificadas no ensino português, e em especial ensino público, que depois vão dar os seus conhecimentos noutro país, às vezes em condições inferiores às dos naturais desses países.
Sabemos que, na Europa e por outros sítios no mundo, a questão da migração é sempre um problema de falta de reconhecimento, de igualdade com as pessoas. Mas apesar de tudo, em termos de valores de salários, justifica esse esforço.
É normal que tenha baixado, por várias razões. Hoje, o desafio é para que se aplique a sabedoria, os conhecimentos, no próprio país, mas é evidente que as pessoas têm aspirações a níveis de vida que depois não conseguem e, portanto, vão dar esses contributos para outros países. Por essas razões económicas ou, em especial, por razões económicas.
Por estes dias assistimos à luta dos professores por melhores condições. E não está em causa apenas a questão salarial. O protesto envolve também as carreiras e as condições para o exercício da profissão. Que exemplo precisamos do Estado empregador, para a realidade das empresas?
Aquilo que, para mim, é uma preocupação maior, de facto, é a efetivação das pessoas. Um operário quase não compreende como é que um professor pode estar 10, 15 anos, todos os anos, sem saber para onde vai dar aulas e a ir para locais do país distantes do seu local de residência, deixar filhos deixar o seu cônjuge.
Claro que, dos salários, todos nos queixamos. Numa altura destas, com o nível de vida, de custo de vida que temos, mas há outras condições em que era necessário dar a volta à situação.
quilo que nos diz leva-nos ao cerne da pergunta que é: como é que o Estado dispõe de pessoas que estão ao seu serviço como se fossem quase peças dispensáveis, que vai escolhendo conforme as necessidades?
O problema é que isso é uma prática de que nos lembramos desde sempre. Por que é que isso não tem solução melhor ou não tem, por exemplo, maior rapidez na aproximação das pessoas do seu local de residência? Noutros tempos isso acontecia, mas o avanço da sua carreira levava a que, com alguma rapidez, alguns anos se aproximasse do seu local de residência.
Hoje isso não acontece porque se fica uma, duas dezenas de anos como precário, como a ver o que é que vai sair a seguir. E isso, de fato é um assunto sério e preocupante. Conheço pessoas que fazem a experiência de dar um ano de aulas onde sejam colocados e, depois, chegam ao fim do ano, notam que lhe cresceram os filhos longe, que perderam o espaço de afetividade, de convívio, que a vida assim não é vida de futuro e têm de prescindir de trabalhar, pelo menos nessa área. E, portanto, a solução não é só a questão dos salários, há outras questões que são exigentes e que merecem preocupação e resolução.
Continuando agora nesta temática e até olhando para outras profissões, gostava de o confrontar com uma outra assimetria que se vive no país, onde um trabalhador numa determinada região tem um salário superior a outro de uma outra região, e por outro lado com a disparidade cada vez mais acentuada dos salários…. É uma preocupação também da LOC?
É uma preocupação, mas desde muito jovem que, estudando sobre isso ou procurando, nós sabemos que, consoante a região em que se vive, se podem ter melhores condições ou menos condições. Há setores, há regiões que têm outro tipo de compensação pelo esforço, porventura pelos trabalhos mais técnicos, produções muito mais rentáveis, e permitem outros níveis de vida. Eu cheguei a trabalhar numa empresa que teve 5 mil trabalhadores. Hoje essa empresa produz muito mais, com cerca de mil trabalhadores. Quem gere estas empresas não pode estar a pensar, que nestas condições, se continue a aplicar só no valor do trabalho, em termos de salários, cerca de 14, 15%. Porventura é preciso repartir melhor. Para não serem só os acionistas a ganhar fortunas com este tipo de empresas.
No fundo, quando é para o lado dos trabalhadores, que são quem produz os bens, não vem o rendimento suficiente e justo. Essas coisas têm de mudar. Sabemos também que em Portugal há a realidade das micro e pequenas empresas, que são em grande maioria, e é preciso também criar condições para que estas empresas sejam viáveis, tenham condições de rendimento, para que os trabalhadores não sejam tão diferenciados daqueles que trabalham em sectores mais produtivos, mais bem pagos, etc.
A LOC está atenta à situação muito precária de muitos trabalhadores migrantes. É esta economia mata como bem alerta o Papa Francisco. Ou é uma das economias que mata?
Eu dizia estes dias, numa conversa, que infelizmente nós não temos a influência, a proximidade que gostaríamos de ter com os trabalhadores migrantes que estão no nosso país e que, de facto, sofrem situações muito complicadas. Ultimamente, tivemos a história de muitos timorenses que vieram e que depois vão para zonas de produção intensiva agrícola e que acabam os trabalhos sazonais e ficam, digamos, perdidos numa terra que não conhecem, sem rendimentos, etc.
Portanto, o que nós achamos é que deve haver exigência junto de quem recorre a esse tipo de trabalhadores. Para nós são trabalhadores como os portugueses e devem ter os mesmos direitos, devem ser considerados como tal. E se os empregos são sazonais, tem de haver outras compensações que ultrapassem isso.
É evidente que nós consideramos que não é só por haver falta de trabalhadores que se vão buscar esses trabalhadores. É porque são mais baratos. É porque trabalham mais tempo em piores condições, menos exigentes…
Têm menos consciência dos seus direitos, eventualmente….
E têm menos poder de reivindicação.
Está a enquadrar a questão numa espécie “escravatura”?
Podemos dizer assim. Nós sabemos que a escravatura destes tempos não são a escravatura de há 100 anos, não é? Mas não deixa de ser um tipo de exploração que hoje não é concebível. Não se pode aceitar.
Os trabalhadores que vêm – muitos, nós sabemos, através de redes de angariação destes trabalhadores que lhes retêm os passaportes – estão sem liberdade de circulação, estão a pagar a obrigações que se comprometeram com os passadores que os trouxeram do estrangeiro, e isso sim é a escravatura de hoje. Porque quando um trabalhador não tem a sua liberdade, não tem as condições mínimas dignas e neste caso na habitação, etc., pois nós sabemos o que tem acontecido…. isso é um tipo de escravatura que nenhum país deve aceitar que ocorra. E, portanto, deve preocupar se com isso. A LOC preocupa-se com essa situação.
É importante esta conferência que houve no sábado, que juntou várias organizações católicas – Justiça e Paz, LOC, os empresários e gestores, entre outras – seja um momento que ajude a assumir um compromisso comum, que ajude a dignificar ainda mais o trabalho?
É uma conferência anual da Comissão Nacional de Justiça e Paz, mas como membro do compromisso social-cristão, que é um grupo de organizações católicas cristãs que se reúnem de forma periódica para falar das questões sociais e do trabalho, fomos desafiados a participar e a fazer parte desta conferência conjunta. Resultou um manifesto, que vai ser divulgado de seguida, que deixa algumas linhas de compromisso e de desafio, junto destas problemáticas de que temos estado a falar: das migrações, dos salários baixos e, até, dos contributos para as instituições de solidariedade social – que, sendo contributos às vezes baixos por parte do Estado, também dificultam depois que os salários sejam melhores. As pessoas cuidadoras de gente, que passaram uma vida de trabalho depois, às vezes continuam a ganhar salários muito baixos, a ter uma situação de vida muito complicada. E, portanto, este desafio de discutirmos o salário justo contra a pobreza é o nosso contributo das organizações da Igreja como desafio a que todas as áreas da sociedade se preocupem com a questão dos salários justos, mas também da disparidade de salários. Esse problema também surge. Havendo tanta gente a ganhar salários baixos, havendo pessoas a ganhar salários que não são aceitáveis pela diferença nos dias de hoje.
É importante que o discurso político de quem diz representar o pensamento católico seja mais centrado nas preocupações sociais e de combate à pobreza, assumindo os problemas dos mais necessitados em vez de diabolizar, tantas vezes, quem é pobre?
Eu acho que tem razão na pergunta. E nós, como membros da Igreja, como movimento de Igreja, temos esta preocupação, que chamo aqui à liça em termos de discussão. No próprio Sínodo, que está a decorrer e a preparar-se, as questões laborais quase não aparecem. Agora, no documento ao nível Continental, não aparece. E às vezes refletimos e tentamos colocar essas questões.
Na própria Igreja, nas suas dinâmicas normais os trabalhadores estão muito afastados. Afastados da participação, das dinâmicas da Igreja. E depois na participação, como qualquer outra pessoa. Para nós é um desafio grande que a Igreja acolha estas preocupações das pessoas, por profissões. É nossa preocupação que a vida das pessoas passe pelas questões da própria Igreja e que, a partir da vivência de cada um, as preocupações da Igreja em responder, em ajudar a refletir e levar as pessoas ao discernimento de uma vida em busca de melhores valores, em busca de proximidade, de solidariedade, de respeito pelo outro, etc. Isto passará muito por cativarmos as pessoas através das suas circunstâncias. E, portanto, a Igreja deveria acolher, atender e preocupar-se mais com este tipo de realidades, com a questão do trabalho. A Igreja instituição, mas através dos seus membros dos quais a LOC faz parte. Nós não consideramos que somos pouco ouvidos. Consideramos que a nossa mensagem passa pouco. Dentro das coisas da Igreja, nas dinâmicas da Igreja e na sociedade também não passa tanto como isso. Não é nada de novo, não é nada de fora. É uma dinâmica com um processo, um método próprio de trabalho que leva à consciencialização de cada um para assumir o seu compromisso de vida. Na vida familiar, na vida do trabalho, na vida da Igreja, na vida social, dar o seu contributo como cristão para pela transformação do mundo. É o nosso esforço.