Sociabilidades crentes na eclesiosfera católica

Alfredo Teixeira

Mesmo se a sociabilidade paroquial já não condensa a diversidade das identidades na eclesiosfera católica, ela permanece como um laboratório privilegiado para a observação das mutações do catolicismo na sociedade portuguesa. Na passagem de regimes de sociabilidade «comunitária» para regimes de sociabilidade «societária», as formas práticas de articulação do crer e do pertencer conheceram significativas mutações. Se a paróquia é comunidade, teologicamente definida como resposta a um chamamento que a precede, tal condição não deve conduzir ao esquecimento da complexidade da sua textura humana. Do centro para as periferias do campo católico, de um catolicismo confessante até às franjas de um catolicismo cultural, diversificaram-se os modos de exprimir a identidade crente, diferenças bem patentes nas práticas paroquiais.

Podemos falar de um primeiro tipo de sociabilidade católica, marcada pela ocasionalidade e pela sazonalidade – as duas características não são redutíveis. Incluem os praticantes dos rituais paroquiais, concernentes ao próprio, aos seus familiares, aos seus amigos, ou motivados por razões de civilidade ou representatividade social. Mas outras práticas podem estar em causa, numa altura em que a instituição paroquial católica diversifica os modos de inscrição social. Trata-se de uma sociabilidade de intercepção: os diferentes dispositivos paroquiais cruzam-se com itinerários diversificados de praticantes marcados por motivações muito individualizadas ou por uma religiosidade familiar (que pode subsistir com vincada autonomia).

Devemos falar também de uma sociabilidade paroquial regular enraizada num dos contextos de interacção mais identificadores da geografia confessional cristã: as assembleias dominicais. Este contexto, onde se tecem os laços característicos deste tipo de sociabilidade, pode conduzir a solidariedades regulares, umas dizendo respeito à preparação da acção litúrgica, outras decorrendo da própria acção litúrgica (como os espaços de convivialidade prévios ou consecutivos). Outras podem ser eminentemente «seculares». Este tipo de sociabilidade paroquial aproxima-se da figura clássica dos católicos observantes, mas num quadro social novo. Estes praticantes estão presentes com regularidade nas assembleias dominicais, no quadro de uma iniciativa individual ou familiar, porque aí se sentem bem, porque descobrem nessa prática algo de importante para a sua realização pessoal, porque essa prática é representada como resultado da coerência com que se representam a si próprios. A sua prática é auto-representada preponderantemente a partir de uma lógica electiva e menos segundo o império do dever. Este carácter electivo parece acompanhar as marcas de uma «identidade de resistência», no sentido proposto por Manuel Castells, na medida em que estes praticantes tendem a valorizar daquilo que os distingue (ou até os discrimina) na cultura dominante – neste contexto, desenvolve-se uma nova consciência católica marcada por alguns dos traços da experiência social das minorias.

Num terceiro registo, podemos falar de uma sociabilidade de tipo associativo. Encontramos aqui um conjunto diverso de grupos, equipas, organismos com objectivos específicos, com lógicas de acção específicas (catequese, evangelização de adultos, preparação dos rituais identificadores, animação litúrgica, visita aos doentes, acções nas escolas do ensino básico, etc.). Há um segundo círculo associativo constituído por «movimentos eclesiais». Mesmo se possam dar origem a sociabilidades específicas, têm uma relação simbiótica com o habitat paroquial. Pode, ainda, falar-se de um terceiro círculo constituído por aqueles cuja actividade se desenvolve em contextos de cooperação com o meio social envolvente. Situam-se na interface que organiza a comunicação da instituição paroquial com o seu território, como é o caso dos dispositivos paroquiais de acção social. Estes são os crentes que, de forma mais acentuada, vivem a paróquia como centro de actividades, como suporte simbólico para aquilo que identificam como sendo a espiritualidade que sustenta a sua acção e como experiência de comunitarização de valores.

É necessário falar de um quarto tipo de sociabilidade, patente nos quadros de acção dos órgãos institucionais paroquiais. Refira-se, a título de exemplo, o Conselho Pastoral Paroquial, órgão consultivo e de concertação, e o Conselho Económico, órgão de gestão, ou as equipas (por vezes, secretariados) de «animação pastoral». Encontramos aqui os crentes mais implicados na organização paroquial. Estes crentes mantêm fortes relações entre si, podendo apresentar um elevado nível de conhecimento interpessoal. Mas não constituem um conjunto homogéneo. Podem identificar-se, neste grupo, muitas clivagens quanto às lógicas e objectivos da acção que orientam a vida paroquial: entre os que defendem formas de comunidade paroquial mais exclusivistas ou mais inclusivistas; os que põem à cabeça as questões sociais e a relação com o meio e os que vêm na comunidade paroquial um abrigo espiritual; os que apostam na organização da paróquia cultual e os que dão prioridade aos dinamismos de recristianização. Este é o terreno em que os fiéis leigos se encontram frequentemente em situações diversas de cooperação com os clérigos. O protagonismo destes leigos tende a pronunciar-se nas situações em que se diversificam as dinâmicas paroquiais, se afirmam responsabilidades especificamente laicais ou ainda – em razão diminuição do clero disponível – se exigem novas missões num contexto de recomposição do sistema paroquial.

Traduções dessa identidade socialmente descompactada, estes regimes de sociabilidade católica não se transcrevem em posições religiosas imutáveis. Podem descrever polaridades que organizam trajectórias e itinerários determinados biograficamente – uma micro-história da identidade crente.

Alfredo Teixeira, teólogo e antropólogo (UCP)

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