Homilia de D. José Policarpo no Dia Mundial da Paz
1. Esta Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, é a celebração litúrgica de um dos dogmas da nossa fé: Jesus Cristo, Filho de Maria é divino, também na sua humanidade. O Homem, Jesus de Nazaré, que Maria trouxe no seu seio e deu à luz, é Filho de Deus, é divino na totalidade da sua Pessoa, portanto também na sua natureza humana. Ao afirmar que Maria é, verdadeiramente, Mãe de Deus, a Igreja tornou clara a sua fé na divindade da humanidade de Jesus. Essa é a misteriosa verdade do insondável mistério da encarnação do Filho eterno de Deus.
Acreditar que o Homem Jesus de Nazaré é o Filho de Deus traz a relação de Deus com os homens e destes com Deus para o âmago das relações humanas, não apenas de cada homem com Jesus Cristo, mas dos homens entre si, a partir de Jesus Cristo. Isso é a Redenção, porque o pecado não adulterou apenas as relações dos homens com Deus, mas dos homens entre si. E estas só se transformarão em ordem à construção da fraternidade, da justiça e da paz, se no âmbito das relações humanas, em que entra Jesus Cristo, os homens se abrirem à dimensão transcendente do homem e da comunidade humana. Desde que um homem, nascido de uma mulher, é divino, todos os caminhos pelos quais a humanidade, ao longo da sua história, procuram construir uma sociedade digna do homem, têm de ser caminhos de diálogo e passam, necessariamente, pelo diálogo dos homens com Deus, em Jesus Cristo. O facto de Deus se ter feito Homem torna-se um elemento decisivo na construção da dignidade humana, dado inspirador da cultura e da civilização. Nenhuma das grandes causas da civilização, o desenvolvimento, a construção da justiça e da paz, pode desconhecer esta realidade nova da humanidade. E Maria, a mulher que ao dar à luz um Filho se tornou Mãe de Deus, fica igualmente comprometida com todas as grandes causas da humanidade. A Igreja exprimiu esta confiança radicada na sua fé, ao proclamar o “Dia Mundial da Paz”, na consciência de que a paz é o principal fruto de todos os esforços de civilização.
2. A Igreja tem consciência da sua responsabilidade em todas as grandes causas da humanidade, na busca da superação dos problemas com que esta se confronta em cada tempo, e os obreiros dessa contribuição da Igreja para o progresso da civilização são todos os cristãos, inseridos no realismo da cidade dos homens, eles que na sua fé dão densidade real a esse novo diálogo dos homens com Deus. A Igreja é necessária às grandes causas da humanidade. O Santo Padre Bento XVI afirmou-o claramente na sua recente Encíclica: “A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende de modo algum imiscuir-se na política dos Estados, mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do ser humano, da sua dignidade, da sua vocação”. O Santo Padre não fala de uma verdade teórica, mas de uma “verdade para cumprir”, isto é, para pôr em prática, porque a verdade que a Igreja aprende de Jesus Cristo identifica-se com a caridade, e o amor é o dinamismo que pode transformar a sociedade. E acrescenta: “Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável” (1).
E na sua Mensagem para este Dia Mundial da Paz, centrada nos problemas ecológicos, reafirma esta responsabilidade da Igreja: “A Igreja tem a sua parte de responsabilidade pela criação e sente que a deve exercer também em âmbito público, para defender a terra, a água e o ar, dádivas feitas por Deus Criador a todos, e antes de tudo para proteger o homem contra o perigo da destruição de si mesmo” (2).
Os meios de que a Igreja dispõe para realizar a sua missão na transformação da sociedade são vários. Antes de mais o seu ensinamento, expressão desse novo diálogo entre os homens e Deus, que aponta os caminhos dessa “verdade para cumprir” e que contribui significativamente para a formação de uma consciência colectiva dos caminhos a seguir para a construção da comunidade humana. Mas o meio de que dispõe, que pode ser o mais eficaz, é a acção dos cristãos no seio da sociedade, o que supõe que formam a sua consciência e se abrem generosamente a um ideal de humanidade que brota da sua fé em Jesus Cristo. A Igreja sempre considerou esse empenhamento dos cristãos na transformação da cidade dos homens, uma concretização da missão de anunciar e construir o Reino de Deus.
3. O primeiro desafio que nos lança essa “verdade para cumprir” é o saber olhar com verdade, o que supõe a objectividade de análise, para os problemas reais de uma sociedade concreta, num tempo determinado, na consciência de que, nesta época de globalização, os grandes problemas são comuns a toda a família humana, como o são, por exemplo, a salvaguarda do planeta Terra, a casa onde habitamos, a construção da paz, a vitória contra a violência, a promoção da justiça, de modo particular nos sistemas económico-financeiros e sociais. E se os problemas são globais, a busca de soluções tem igualmente de o ser, o que supõe aprofundar a consciência da responsabilidade de cada homem por todos os homens. A humanidade está, como nunca, perante o desafio de renovação de civilização.
Também entre nós os grandes problemas com que nos debatemos têm, inevitavelmente, essa dimensão global, o que exige a integração progressiva de Portugal na comunidade das nações. A opinião pública portuguesa tem sido mobilizada na atenção a prestar a problemas específicos: a crise económica, a violência crescente, a eficácia do sistema judicial, a corrupção, a luta contra a degradação do ambiente. Os meios de comunicação social exercem um papel decisivo nesta formação da opinião pública, o que lhes traz uma responsabilidade acrescida na busca objectiva da verdade. O que o Santo Padre lhes pede no campo da ecologia pode estender-se a todos estes âmbitos. Diz o Papa: “É preciso lembrar a responsabilidade dos meios de comunicação social neste âmbito, propondo modelos positivos que sirvam de inspiração” (3). Mas só será inspiradora de caminhos positivos para a resolução dos problemas da sociedade a informação que tenha a preocupação da verdade e da promoção do bem-comum.
Por vezes, parece esquecer-se, na busca de soluções, que estes problemas estão interligados, são causa-efeito uns dos outros e que exigem caminhos de solução de outra ordem e de outro âmbito. A propósito da ecologia, diz Bento XVI: “A salvaguarda da criação e a realização da paz são realidades intimamente ligadas entre si” (4). O mesmo se pode dizer da relação existente entre desmandos como a corrupção e a violência e a promoção da justiça. Administrar a justiça numa sociedade em que as pessoas e as instituições não procuram ser justas é tarefa árdua e complexa. Vale o princípio de que só homens justos podem promover a justiça. Para além da busca de soluções sectoriais, estamos perante um desafio de civilização, onde haja clareza de valores a promover e a defender. Trata-se de um paradigma de humanidade, lúcido na sua definição, possível na sua implementação. Neste rever dos paradigmas civilizacionais, a cultura em todas as suas expressões, tem um papel insubstituível. O pragmatismo dos problemas sofridos e da busca de soluções leva as sociedades, desde os seus responsáveis aos diversos corpos sociais, a perder esse pano de fundo comum a todo o progresso social que é a cultura num quadro civilizacional. Volto a citar o Santo Padre na Mensagem que dirigiu hoje ao mundo e cujo tema é o respeito pela criação: “A degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana (…). Não se pode pedir aos jovens que respeitem o ambiente, se não são ajudados, em família e na sociedade, a respeitar-se a si mesmos; o livro da natureza é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a ética pessoal, familiar e social” (5).
Se percebermos que a solução para todos estes graves problemas da sociedade exige uma profunda revolução cultural e civilizacional, talvez passemos a pôr o acento onde ele deve ser posto: na educação, na família, na comunicação social, nas estruturas culturais, no fundo, na formação para a liberdade, cujo exercício legítimo supõe sempre a responsabilidade da promoção do bem-comum. O exercício da liberdade deve ser inspirado, não pelos egoísmos de cada um, mas por um ideal generoso de humanidade. Espanta-me que se façam cimeiras sectoriais, sobre a preservação do ambiente, sobre a economia, sobre a crise financeira e que ainda não se tivesse dado o mesmo relevo a cimeiras de aprofundamento civilizacional. As próprias instituições que, no quadro internacional, têm essa finalidade, acabam por ser secundarizadas pela premência da busca de soluções sectoriais. Discutamos seriamente que humanidade queremos ser para legar aos nossos vindouros.
4. Num quadro de globalização, este debate tem de passar por um diálogo entre civilizações, onde a Igreja e as grandes religiões da humanidade têm a dar um contributo indispensável. Podem ajudar a fazer síntese entre valores perenes e inalienáveis para quem quer salvar a humanidade, e as expressões transitórias próprias de cada tempo e de cada povo: o respeito pela criação como dom de Deus e pela lei natural que não se pode agredir ao sabor de tendências ou necessidades de grupos específicos em tempo determinado; a generosidade que leva ao dom e à vitória sobre todos os egoísmos: a busca incansável da verdade, a prevalência do bem-comum sobre interesses individuais, valores que deveriam tornar-se património assumido por toda a humanidade.
Termino como o Santo Padre encerra a sua Mensagem para este dia, qual actualização da bênção de Aarão: “O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz” (Num. 9,26). “Convido todos os crentes a elevarem a Deus, Criador omnipotente e Pai misericordioso, a sua oração fervorosa, para que no coração de cada homem e de cada mulher ressoe, seja acolhido e vivido, o premente apelo: se quiseres cultivar a paz, preserva a Criação” (6).
Paróquia de Nossa Senhora da Purificação de Oeiras, 1 de Janeiro de 2010
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca