Daniel Serrão
Temos de ir ao princípio das coisas para entender a situação atual.
O Serviço Nacional de Saúde foi criado depois da evolução para a democracia como um serviço público, aberto gratuitamente a todos os cidadãos. Os seus custos seriam suportados pelo Orçamento Geral do Estado.
Absorveu o que existia e que era muito – Centros de Saúde, serviços médico-socais, hospitais públicos de ensino médico em Lisboa, Porto e Coimbra e hospitais das Misericórdias, um pouco por todo o país – e assumiu-se como o único prestador, geral e universal. Gratuito no momento do uso, para a pessoa; e pago pelos contribuintes.
Não vou aqui comentar a eticidade desta opção que transformou todos os cidadãos, ricos, remediados e pobres, em beneficiários do Estado. Mas foi reconhecido, desde o início, que sendo o Estado a pagar, as despesas do SNS ficavam cativas das disponibilidades financeiras do Estado e não do custo real das prestações aos cidadãos.
Um Estado rico pode ter um SNS bem apoiado financeiramente, um Estado pobre terá apenas o SNS que possa pagar. Um Estado em grave risco de rotura financeira terá um SNS financeiramente insustentável.
Por respeito à verdade que é devida aos cidadãos afirmo, sem receio de ser contraditado, que o SNS nunca recebeu do Estado o financiamento necessário para cobrir as despesas que tinha de fazer para atender gratuitamente os cidadãos que diariamente o procuravam. Que são milhões, por dia, em todo o território nacional. Causando milhões de euros de despesa diária.
Considerou-se desde o início que os cidadãos usavam, por vezes, o SNS sem terem verdadeira necessidade (vício que vinha do tempo das “Caixas”), por ser gratuito. E criaram o que foi chamado de taxa moderadora. A taxa moderadora tinha uma justificação ética: moderar o abuso da ida ao SNS. Não era uma forma encapotada de criar uma receita para o SNS que atenuasse as suas dificuldades de financiamento, que, como já afirmei, sempre existiram.
O SNS, como empresa de prestação de serviços, acumulou défices anuais que até serão muito dificilmente contabilizados, dadas as várias formas de engenharia financeira que, nestes mais de 30 anos, foram sendo montados pelos diversos Governos para “arrumar” os défices anuais, sempre crescentes, do Ministério da Saúde.
Infelizmente, no momento atual, esta situação de défices orçamentais e de dívidas a terceiros, estendeu-se a muitos outros setores do chamado Estado social, que ficou sem capacidade financeira para honrar os seus compromissos com os cidadãos. Nomeadamente o compromisso de lhes dar cuidados de saúde gerais, universais e gratuitos (ou tendencialmente gratuitos, seja o que for que signifique este tendencialmente).
Então, entre outras decisões para reduzir a oferta de serviços e controlar a procura, o Governo, sob a orientação dos financiadores externos (vulgo troika), está a usar o pagamento das ditas taxas moderadoras, não para moderar o consumo por parte dos utentes mas para obter algum financiamento.
Pode não haver outra solução. Mas que haja a coragem de explicar aos cidadãos que não é uma taxa moderadora mas um pagamento parcial das despesas que o cidadão faz quando é tratado no SNS. E que este copagamento seja relacionado com a despesa provocada com o uso do ambulatório ou do hospital e indexado aos rendimentos do cidadão. Por exemplo, se o detentor da maior fortuna em Portugal for tratado num hospital público e provocar uma despesa de cem mil euros pagará a totalidade. Se um sem abrigo estiver internado um mês, para tratamento de uma patologia grave, e provocar a mesma despesa, cem mil euros, não pagará nada. Entre estes dois extremos, os encargos serão distribuídos pelos utilizadores, caso a caso.
Com este sistema nenhum cidadão ficaria sem cuidados de saúde por não ter dinheiro para os pagar. O direito a cuidados de saúde necessários continua garantido a todos os cidadãos independentemente da sua capacidade financeira para os pagar. Mas, de acordo com a capacidade da pessoa, haverá lugar para o pagamento de uma parte dos custos. Os cuidados prestados terão sempre custos, que serão bem conhecidos e públicos e constarão de uma fatura pró-forma. Para os cidadãos estes custos irão ser de zero a 100 %.
Sem participação dos cidadãos nos custos o SNS é financeiramente insustentável e será autodestruído.
Daniel Serrão, médico