Padre João António Pinheiro Teixeira, Diocese de Lamego
Chega o primeiro. Ou, melhor, surgem os primeiros. E depressa se aproximam mais, muitos mais.
Das dezenas rapidamente se passa às centenas e, num ápice, desaguamos em milhares.
Não. Não se trata de «bullshit», o conceito difundido por Harry Gordon Frankfurt. Não é uma «treta». É um espanto, um espanto que encanta, move e comove.
Há lugar para todos: dentro do santuário, nas imediações do santuário, no coração de cada peregrino que «traz no coração os caminhos do santuário» (Sal 84, 6).
Com licença do Zeca, atrevemo-nos a dizer que também nós «somos filhos da madrugada», de sucessivas madrugadas que — de finais de Agosto para inícios de Setembro — nos depositam nos braços da Mãe.
Esta (matutina) multidão tem origem — como verbalizaria Hans Urs von Balthasar — «em qualquer coisa de simples»: na fé simples do povo simples.
Ainda de noite, caminhamos juntos («sýn+odós») para beber em conjunto («sýn+pósion») a «água viva» (cf. Jo 4, 10) que nos dessedenta e vitaliza.
E, deste modo, fazemos «sínodo» e «simpósio» na sua matriz mais eloquente: rente ao chão e perto da fonte.
Durante séculos (até aos começos de Novecentos), as festividades de Nossa Senhora dos Remédios decorriam, todas elas, de madrugada.
Com o passar do tempo, estas madrugadas mantêm-se como sentinelas de jornadas acidentadas pelo inesperado, pelo surpreendente.
Ali, tudo fala: até o silêncio, passando pelas preces, pelos cânticos, pelas lágrimas, pelo sorriso, pelos olhares.
Ali, ninguém é de longe, mesmo os que de longe vêm. Todos se sentem enlaçados por uma vibração fraternalmente contagiante.
Parafraseando o teofilósofo Xavier Zubiri, diria que orar também é «comover-se», mover-se com os outros, para Deus.
Na sua modéstia, o peregrino destas madrugadas transforma-se em inopinado mestre: porque toca no essencial, porque não abdica do que verdadeiramente importa.
Mesmo não trazendo nada, o peregrino vem (sobre)carregado, mas parte cheio de leveza. Transporta muitas dores e colhe esperanças infindas.
No meio de tantos egoísmos «supercêntricos», estas multidões matinais podem soar a uma «excentricidade» dificilmente concebível.
A Jornada Mundial da Juventude, que cobriu o mundo de assombro, não foi o epifenómeno transitório de uma sociedade sem rumo.
Apesar da obscuridade que desce sobre os nossos (acelerados) tempos, ainda sobram faróis de luz. Podem não passar no escrutínio da comunicação social. Mas alojam-se na fundura indizível de muitas vidas.
Como acontece na Novena, também a nossa vida vai da noite para o dia…com Maria.
Não nos afundemos, pois, nos derrotismos que nos torturam. Pelas encostas íngremes do tempo — evoco novamente Zeca Afonso —, eis-nos «à procura de uma manhã clara»: para todos, todos, todos!
Padre João António Pinheiro Teixeira
Diocese de Lamego
Reitor do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios