Sínodo: «A sinodalidade, se for assumida nas nossas comunidades, é o primeiro passo para se vencer o clericalismo» – Sônia Gomes de Oliveira

No dia em que a primeira sessão do Sínodo chega ao fim, no Vaticano, é convidada da entrevista Ecclesia e Renascença a presidente do Conselho Nacional do Laicato Brasileiro, é uma das mulheres membros da Assembleia Sinodal. Após três semanas de trabalhos, abre-se um novo espaço de escuta e mobilização das comunidades, para o encontro conclusivo de 2024

Foto: Ricardo Perna

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Viveu esta experiência inédita de um Sínodo de mesas-redondas, em que foi possível debater e conversar, todos ao mesmo nível, sobre os temas da sinodalidade, da comunhão e da participação. O que representou esta experiência para si?

Para mim foi uma experiência, primeiro, de gratuidade e depois uma experiência rica, porque eu venho da comunidade. Por vir de comunidade, a gente percebe que trouxe um pouco daquilo também que nós vivemos nas pequenas comunidades. Porém, nas comunidades vivemos entre nós, leigos e leigas. Aqui foi um pouco diferenciado, porque estávamos numa mesa-redonda onde nós podíamos debater de igual por igual, com bispos, com cardeais, saiu um pouco daquela rotina. Foi uma experiência, primeiro de entender o meu batismo e acho que, para quem está a ouvir-nos, entender o nosso batismo também, porque pelo batismo somos todos iguais, podemos ser corresponsáveis e somos corresponsáveis na missão. Para mim foi uma experiência muito forte porque me traz muito esse olhar. Pelo batismo, eu sou igual e posso dialogar de igual por igual dentro desse processo.

 

Para a Igreja na América Latina, no Caribe, este caminho de escuta está na continuidade do que vem sendo feito há muitos anos nas assembleias eclesiais. Pergunto se é algo que pode inspirar outras comunidades católicas?

Com certeza, eu penso que agora esse processo veio para ficar. A carta ao Povo de Deus fala de uma semente e é uma semente que, para nascer, precisa de ser gerada, cair ao chão. Agora é o momento de lançar essa semente e todas as comunidades, aqueles que nos escutam nas nossas paróquias, nas nossas dioceses, ouvirem e assumirem isso, porque é um processo bom, participativo, onde todos se sentem iguais.

 

É presidente de um conselho de leigos no Brasil. Como viu a participação alargada do laicado nesta Assembleia, porque foram semanas em que leigos e leigas estiveram com o direito a voto e com o direito a palavra num debate muito, muito importante para a Igreja. Pode ajudar outras pessoas a sentir-se mais corresponsáveis na missão do dia a dia?

Sim. Quando a gente pega o relatório da fase continental do Brasil e que o Brasil apresentou, dizia assim: que a experiência sinodal tomou um corpo grande a partir do laicado. Porque os leigos assumiram o processo e eu penso que, ao vir para cá e fazer esta experiência, saímos muito mais fortalecidos. Somos a maioria na Igreja, fazemos grande parte ou a maioria dos trabalhos na Igreja e na sociedade. O grande desafio, também para todos nós, cristãos leigos e leigas é entender o nosso papel também na sociedade: um testemunho, uma comunhão, uma participação e a nossa missão que não é no interior da Igreja, é na sociedade. Penso que essa experiência aqui também favorece que o laicado possa entender a sua missão e a sua vocação, que é na sociedade.

 

Eu aproveito para lhe perguntar, esse é um dos temas do sínodo, desta Assembleia, mas que muitas vezes parece que ficou para um segundo plano no debate da opinião pública, que é a questão da missão. O Sínodo tem esse objetivo missionário?

Sim, na verdade não ficou no segundo plano, ele veio, mas veio de uma forma muito transversal, porque não dá para a gente falar de comunhão, não dá para falar de uma participação se você não está com a missão no centro, no coração. A Igreja existe para a missão, a missão vem primeiro. Na verdade, são formas transversais, mas o coração de todo esse processo é a missão, porque não dá para pensar uma Igreja se não for ao serviço: o testemunho de Jesus Cristo, o testemunho do Evangelho, é por conta da missão.

 

Foto: Ricardo Perna

Vamos olhar para o que foi o caminho desde 2021 até esta assembleia. As tensões e as resistências que existiram antes do processo marcaram também, de alguma forma, estes trabalhos sinodais?

Creio que sim, até porque muitos chegaram com muito medo: o que seria esse Sínodo, vai tratar que assuntos, vai abordar isso, vai abordar aquilo… penso que a experiência que nós trouxemos e vivenciamos, para iniciar, foi muito boa, porque nós começamos com o retiro, e um retiro que nos favoreceu a entrar dentro de nós mesmos e começar soltando, deixando para fora muito daquilo que a gente tinha trazido, dos medos lá de fora. E aí, quando começa todo o processo do Sínodo, das experiências sinodais mesmo na sala, não tem nada disso.

Muitas vezes criamos muitas crises porque nós trazemos muito do mundo, daquilo que as vozes lá de fora apontam e causam ansiedade nesse processo. E para nós, nesse sentido, ouvir a voz do Espírito é o que ficou muito marcado neste Sínodo. Ouvir a voz do Espírito, o que Ele quer dizer à Igreja, nesse momento. Ouvir a voz dos pobres, ouvir a voz do povo. Esse foi o ponto central; a tensão também existe, porque nós vivemos com pessoas, com gente, e não existe uma unanimidade. A Igreja é bonita justamente por isso, porque nem todos pensamos de forma igual. A tensão existe, existiu, e penso que a experiência da convivência comum também favoreceu isso, porque por mais que exista o processo de tensão, de desacordo e tudo o mais, nós tínhamos sempre um tempo de rever, que é a metodologia que foi usada, de rever o nosso processo. Nós acabávamos chegando, não totalmente num consenso, mas num respeito às verdades.

 

O sínodo teve muito esta dimensão espiritual, começou sempre com o espaço de oração, teve espaços de silêncio. Pergunto qual é o desafio de traduzir esta experiência depois, quando tiver de falar dela a outras pessoas, porque deve ser uma coisa muito pessoal e íntima para depois se explicar?

Sim, na verdade percebemos que o método para trabalhar com este grupo foi muito bom, porém, não dá para dizer que esse método vai poder ser usado também em todos os lugares, até porque nós temos outros métodos que podem favorecer debates. Acho que também essa é uma das belezas que o Sínodo apresenta para a gente. Existem vários métodos dentro da Igreja que podem ser e poderão ser utilizados no decorrer da nossa caminhada, inclusive nas nossas comunidades. Foram lembrados na América Latina, que a gente usa muito o método ver, julgar, agir, que traz muito isso. A lectio divina, há outros métodos de que nos podemos apropriar.

Esse foi muito rico e acho que, se conseguirmos adaptar às nossas realidades, será muito bom. Porém, é um método que requer muito tempo também para voltar para dentro, para olhar, e muitas vezes isso teria de ter um tempo muito largo, muito longo para se vivenciar isso.

 

Temos falado, neste Sínodo, muito da escuta, dentro da sala sinodal também, como disse, mas dizia há pouco que a Igreja precisa escutar o grito do povo, principalmente dos pobres. Isto é um desafio particular e pergunto se é um desafio particular, sobretudo, para quem tem mais responsabilidade?

Sim, creio que foi um dos maiores gritos que saiu aqui dentro, porque todos nós viemos das escutas, e aí eu falo muito a partir do que eu vivenciei no Brasil: a escuta das comunidades, comunidades de periferia, mulheres, povos indígenas, população em situação de rua. E quando se fala nesse processo da escuta, não é só para nós leigos, é para toda a Igreja. Os ministros ordenados, muitas vezes, precisam também de abrir-se a essa escuta, inclusive a gente usava muito o termo da burocracia, que institucionaliza as nossas igrejas e impede que se ouça esse grito. Acho que isso foi muito forte, também.

 

Foto: Ricardo Perna

E essa é uma das mudanças mais visíveis, mais palpáveis, no imediato? Esta necessidade de uma nova relação no Povo de Deus entre aqueles que ocupam o ministério de liderança – os ministros ordenados – e a forma como se relacionam com a comunidade no seu todo, nos processos de tomada de decisão, nesta escuta e até na gestão corrente do dia-a-dia da comunidade?

Creio que um dos pontos é pensar um pouco as estruturas das nossas paróquias, os conselhos pastorais, os conselhos que existem dentro das nossas dioceses. Foi muito debatida a possibilidade de ampliar o processo de participação, principalmente dos cristãos leigos e leigas, não só na participação, mas também na tomada de decisão, porque somos nós que estamos ali, também ajudando nessa corresponsabilidade que eu dizia.

Foi muito forte, nesse sentido, trazer esses elementos, os conselhos pastorais, os conselhos diocesanos, os conselhos paroquiais, que são espaços de tomada de decisão. Onde não existem é indicado que se possam criar e onde já existem, que se possa rever se essa prática é fiel àquilo que temos discutido aqui.

 

O Papa teve uma intervenção muito dura, em que se mostrava particularmente crítico do clericalismo: é uma coisa que não é só dos ministros ordenados, é uma mentalidade eclesial, em que todo o processo de responsabilidade de tomada de decisão é delegado para outra pessoa ou é concentrado numa única pessoa. Esta ideia da corresponsabilidade, da participação, da sinodalidade é uma transformação radical da forma de conceber as comunidades?

Sim, inclusive a sinodalidade, se for assumida nas nossas comunidades, é o primeiro passo para se vencer o clericalismo. A sinodalidade não combina com o clericalismo, porque a sinodalidade é esse processo de comunhão entre todos, todas, onde todos têm voz, todos têm vez, têm participação, e o clericalismo não, é uma pessoa só tomando decisão.

Onde nós queremos sinodalidade, não dá para pensar no clericalismo, nem clericalismo de leigos nem em clericalismo padres, bispos, diáconos, etc. É uma Igreja sinodal e acredito que essa é a Igreja de Jesus, porque se a gente pega em todo o processo do discipulado de Jesus, que determinava, que ouvia. Eu penso que a partir do Sínodo, não dá para pensar mais numa Igreja clericalista. E nas comunidades, eu quero crer que um dos pontos que nós precisamos, até dentro dessa fala do Papa, é romper com o clericalismo.

Rompe-se o clericalismo com formação, tendo consciência do seu batismo, tendo consciência da nossa vocação, porque eu como leiga, eu faço parte, eu sou Igreja também. Acho que esse é o grande desafio para nós trabalharmos, nos nossos espaços.

 

Insiste-se muito que a Igreja é um espaço para “todos, todos, todos”, usando a expressão que o Papa deixou em Lisboa, durante a Jornada Mundial da Juventude. Uma Igreja sinodal para todos, todos, todos tem de ser uma Igreja aberta, pronta para acolher?

Sim, sim. Senão, nós não estaríamos a falar em seguir Jesus Cristo. Jesus não fez distinção de raça, de cor, de pessoas, de credo e nem de orientação, não fez. Então a Igreja que a gente vê apontada hoje, pelo Papa Francisco, como essa Igreja sinodal, que nos tenta encantar, nos animar para vivenciar, é a Igreja onde há espaço para todos, todos, todos.

Muitas pessoas têm tentado mudar essa expressão, dizendo coisas que não devem, mas acredito que uma Igreja com o seguimento petrino, que eu amo Jesus e sigo o caminho de uma Igreja sinodal, a partir dos nossos bispos, dos nossos padres e que caminha com o Papa Francisco, é essa Igreja que quer acolher a todos e todas.

 

Vários participantes falaram do papel das mulheres, do seu sofrimento, mas também da necessidade de as envolver em processos de decisão, em lugares de liderança, que é um tema de que já falamos. Pergunto-lhe se esta Assembleia Sinodal deixa sinais de esperança para o futuro nesta maior participação e, sobretudo, na maior consciência de todos na comunidade católica que as mulheres têm, efetivamente, de estar nesses lugares de liderança e de tomada de decisão?

Dá um sinal de esperança. Aí a gente tem de lembrar que ainda não é o encerramento do Sínodo, mas já demos um passo só ao trazer o assunto para o debate. Em todos os debates o tema das mulheres foi abordado, e eu creio que isso já traz um sinal de esperança muito grande.

Para mim que sou mulher, que sou mulher de Igreja, que sou mulher de comunidade… nós sofremos muito. Eu digo isso por experiência própria, porque muitas vezes você está na comunidade, você anima a comunidade, você vivencia toda a experiência, mas muitas vezes na hora da tomada de decisão, nunca é chamada, nem lembrada.

Foto: Ricardo Perna

Quando somos chamadas para participar de um espaço como este e, durante todos os debates, se percebe que há bispos, cardeais que conseguem perceber essa realidade e percebem que não se trata de uma reivindicação, mas de um reconhecimento, porque muitas vezes existe uma invisibilidade da mulher na Igreja. Muitas vezes somos a maioria, mas somos invisíveis ainda. Ao trazer esse tema aqui para o Sínodo, ao ser debatido em tantos momentos, a gente já começa sentindo essa esperança muito grande. E falo isso muito a partir do que Maria de Nazaré vivenciou, porque eu trago muito isso: quando cantou o Magnificat, ela já esperava e tinha uma expectativa nessa novidade que ia surgir. Acho que é o momento para nós mulheres também. Não podemos ficar paradas, a partir de agora, e devemos continuar nesse mesmo processo, entendendo que se vence cada dia e com participação.

 

Muitas pessoas esperariam mudanças imediatas. Lembrou que esta é só a primeira sessão. Há um passo seguinte, mas muitas pessoas esperavam deste Sínodo mudanças imediatas, muito significativas. Acredita que algumas pessoas vão ficar dececionadas?

Creio que sim, inclusive até por aquilo que nós falávamos anteriormente, foram feitas muitas cogitações, dizendo que ia acontecer isso, aquilo, aquilo e aqueloutro. Acho que muitas pessoas vão se dececionar porque essa etapa do Sínodo, eu penso que foi mais uma etapa de formação mesmo, de conhecimento, de base, para entendermos o que será a próxima etapa em outubro do ano que vem. Mas, ao mesmo tempo, desperta uma esperança – volto novamente a dizer – e aí eu falava de uma gestação. Nós temos 11 meses, 11 meses para poder gerar e fazer nascer uma novidade no nosso caminho.

 

Que convite é que quer deixar, nesta fase de gestação, para aqueles que ainda não participaram, que não se sentiram chamados a participar no processo sinodal?

Eu quero que aqueles ou aquelas que ainda não participaram, não tiveram oportunidades, conheçam o que isso está a ajudar a viver. Sai agora um texto desse processo: que você possa entrar, animar a sua comunidade, encantar-se também com o processo e vivenciar isso na sua paróquia, no seu grupo, na sua diocese, para animar esse processo. Somos chamados a viver essa história na nossa Igreja, e a Igreja de Jesus Cristo nos convoca para essa novidade. Geramos e agora vamos fazer nascer essa novidade na Igreja.

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