No fim de semana em que decorre mais uma campanha de recolha do Banco Alimentar contra a Fome, é convidada da Renascença e da Agência ECCLESIA a presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Que apelo deixa aos que neste fim de semana se dirigem às compras e ainda hesitam em contribuir para a campanha do Banco Alimentar?
Os portugueses conhecem atualmente muito bem os Bancos Alimentares, porque efetivamente são 21 Bancos Alimentares disseminados por todo o território nacional, continente e regiões autónomas. E isto foi uma rede social real que se foi construindo ao longo dos últimos 34 anos e que tem quase como que um acordo tácito com os portugueses que vão às compras: nós convidamos os portugueses a participar, partilhando um pouco daquilo que vão comprar para a sua casa, mas também – e é muito importante – partilhando um pouco do seu tempo. Estas campanhas não se podiam fazer sem um número enorme de voluntários, são 40 mil pessoas que, vestindo a mesma camisola, estão em mais de 2 mil lojas. Estas pessoas sabem exatamente aquilo que estão ali a fazer e quem está a doar os alimentos também sabe exatamente aquilo para que está a contribuir: para que outras pessoas possam ter comida na sua mesa. Esta é uma realidade muito dura, mas é aquela que existe ainda hoje em dia. Nós temos famílias portuguesas que não têm, todos os dias, aquilo de que precisam para comer.
E essas famílias vivem muito desta solidariedade que é ativa, mas que é uma coisa muito interessante, é que todos aqueles que estão a dar, seja ao seu tempo, seja aos alimentos, não sabem para quem é que estão a contribuir, e dão-no de uma forma anónima, mas generosa, porque confiam nos bancos alimentares.
A “casa” Banco Alimentar Contra a Fome alberga cada vez mais pessoas, ao contrário do que acontece, por exemplo, na questão da crise da habitação, em que pretendemos alojar todas as pessoas que precisam, a Casa Banco Alimentar terá certamente mais sucesso quanto mais vazia ficar. Pergunto, estamos a fazer o necessário para “desalojar” os inquilinos desta casa?
Bom, eu diria que o Banco Alimentar é uma casa com várias moradas. E estas várias moradas são todas as Instituições de Solidariedade Social que, no terreno, ajudam cada uma das famílias. Efetivamente, a nossa taxa de sucesso total era quando pudéssemos encerrar o Banco Alimentar, porque não havia pessoas que precisavam de ajuda. E hoje não é isso que se passa. Aquilo que vemos é que – infelizmente e apesar de muitas medidas sociais que têm sido tomadas – alterou-se um pouco o perfil das pessoas que pedem ajuda e que precisam de receber ajuda, porque nem todos a pedem, mas temos ainda muitas pessoas que dependem da solidariedade de terceiros para poder chegar até ao fim do mês e ter uma vida mais ou menos digna.
Os números mostram que há mais pessoas em situação de pobreza ou em risco de exclusão social, mas falou de uma mudança de perfil, e o perfil já não é só o número, é aquilo que define as pessoas. O que é que se está a passar, porque é que há um tipo de pessoas diferente a chegar aos bancos alimentares e a pedir ajuda.
Os números também são importantes. Eu, sendo economista, gosto de números porque ajudam a quantificar a situação, e hoje aquilo que é certo é que um quinto da população portuguesa vive com menos de 525 euros por mês. Ora, isto é tremendo: um quinto das pessoas portuguesas vive com muitas dificuldades.
Hoje nós temos um perfil diferente daquele que existia quando cheguei ao banco alimentar há 32 anos. Dantes nós tínhamos, sobretudo, pessoas idosas, que tinham baixíssimas pensões de reforma, muitas vezes mulheres, viúvas, que não tinham tido uma carreira contributiva, e pessoas que não tinham as competências necessárias para o mercado de trabalho. Hoje, apesar de tudo, a situação dos idosos – não é que tenha melhorado -, está menos má do que aquilo que existia, porque, apesar de tudo, temos pensões de reforma muito, muito baixas, mas as medidas sociais têm permitido algum pequeno folgo a estas pensões mais baixas. E também um conjunto de outras prestações sociais que têm sido tomadas, que têm sido adotadas, como, por exemplo, com participação na totalidade dos medicamentos, etc. Mas temos hoje trabalhadores pobres, pessoas que têm um trabalho, que têm um salário, que já trabalham um horário completo e, por vezes, que andam a saltitar para completar essas horas de trabalho, têm filhos, muitas vezes mais novas, mas que o peso da habitação representa, por vezes, mais de 60% do rendimento disponível. E esse rendimento disponível já, de si, é muito baixo.
Não conseguem escapar à situação de pobreza, mesmo trabalhando?
Não, não conseguem porque o peso da habitação é muito elevado, mas também porque, quando tentam procurar uma casa mais barata… por vezes, nós estamos a falar de famílias que dividem apartamentos e que têm cada uma um quarto, onde no mesmo espaço tem de dormir um casal e, por vezes, os filhos em colchões. Estas pessoas não vivem de molde a construir uma família que, harmoniosamente, se possa desenvolver enquanto tal.
Tem vindo a chamar a atenção nos últimos tempos, precisamente, para esta realidade dos trabalhadores pobres. É um número que vem aumentando em Portugal, é uma realidade que está a aumentar decorrente, em parte, desta crise da habitação?
Vem aumentando de forma preocupante, porque, como disse, muitas destas famílias têm crianças, mas vem aumentando sem se ver muito bem como é que isto se vai resolver, porque aqui não basta apenas dar dinheiro e dar apoios sociais, porque aquilo que as pessoas precisam é de uma habitação mais condigna, mas sobretudo, de um emprego que não seja precário e no qual possam ganhar o suficiente para todas as necessidades do seu agregado familiar. E, portanto, enquanto a máquina da economia não se puser em marcha, gerando riqueza e, com isto, eu quero dizer, criando melhor e mais emprego, eu não vejo como vamos conseguir dar a volta a esta situação. Há também, um fator que é muito crítico: é que nós temos, hoje, muitos trabalhadores precários que vivem de biscates e, portanto, para além de um trabalho declarado, têm um emprego fora da economia, mas que exigem um esforço muito, muito grande em termos de horário e acabam por andar a correr de um lado para o outro, muitas vezes as mulheres, descurando aquilo que era necessário, porque não têm capacidade nem alternativa, isto de forma muito realista, de poder levar para casa o dinheiro todo que precisavam para os filhos terem uma vida confortável.
Voltando à realidade da Federação dos Bancos Alimentares, há registo, os números estão a aumentar, há um aumento no número de pedidos de ajuda?
Eu não diria que os números estão a aumentar, mas que os números não estão a diminuir e é isso que me preocupa: apesar dos apoios sociais e apesar de, ano após ano, se falar disto, virem estatísticas de termos sucessivos governos, sucessivas entidades preocupadas com o tema da pobreza, o número dos pobres não diminui e a taxa de pobreza não diminui, então, a pobreza alterou-se, no entanto, o peso que ela tem hoje na sociedade portuguesa é muito, muito elevado.
Qual é a perceção que tem, então, porque é que as estratégias não estão a funcionar?
Por um lado, eu acho que não conhecemos exaustivamente o problema, mas, sobretudo, há medidas que são transversais, porque tem de ser assim, mas que não são adequadas a algumas das situações que são especiais. E, portanto, o que é que nós estamos a fazer? Estamos a padronizar respostas, muitas vezes dando soluções que não são as mais adequadas e tirando até aos apoios sociais a capacidade de intervir onde eles são mais necessários. O Estado tem de ajudar mesmo aqueles que precisam e esses têm de ter um apoio. Para tudo o resto, têm de ser criadas condições para que não precisem. Ora, as medidas sociais que temos hoje perpetuam esta situação de assistencialismo e de pobreza porque as pessoas habituam-se a viver com os mínimos sabendo que, se pedirem apoios onde quer que existam, vão acabando por aparecer e as pessoas perdem até uma ambição de exigir mais e melhor. E, portanto, penso que há que não descurar esta solidariedade, é por isso que o Banco de Comércio Alimentar faz também estas campanhas, não só para angariar alimentos mas também para falar da pobreza e desta realidade com a qual não nos podemos conformar, mas há que, de forma objetiva, segmentar as várias situações de pobreza e tratar diferente daquilo que é diferente. tratar a situação dos reformados com pensões baixas de uma maneira, tratar a situação dos sem-abrigo de outra maneira – mesmo na questão das pessoas sem-abrigo, saber aqueles que estão na rua porque têm problemas de álcool e drogas e aqueles que estão na rua porque não têm casa e trabalho. Segmentar de forma a ir retirando a cada uma destas categorias todas aquelas pessoas ou famílias que se conseguem ir salvando de uma situação que é indigna, mas dando alguma esperança e não trazendo um conformismo para que os pobres achem que há uma transmissão geracional de pobreza que é natural. Em Portugal nós temos uma transmissão intergeracional da pobreza que é elevadíssima e as pessoas parecem quase que estão conformadas com isso.
Isso significa que ser pobre é mesmo uma fatalidade no nosso país?
Em muitos casos é e as pessoas estão conformadas com isso. Nós temos hoje pessoas mais qualificadas, a escolaridade hoje é muito mais elevada e, portanto, as pessoas têm mais conhecimentos e isso deveria significar que têm melhores empregos. Mas o que é que temos? Temos, por vezes, pessoas licenciadas que estão a exercer um trabalho que deveria ser desempenhado por pessoas menos qualificadas. Temos hoje caixas de supermercado que são pessoas licenciadas, que não encontram um lugar para as suas qualificações porque elas são desadequadas e, portanto, estão a retirar pessoas que teriam capacidade e competência para fazer esse trabalho que é mais bem remunerado e estão fora do mercado. Ainda por cima, temos muitos jovens que, se podem, vão-se embora de Portugal porque aqui não veem futuro e isso é terrível, pensar que nós estamos a deixar sair muitos daqueles que podiam ajudar a construir um Portugal mais esperançoso e com um melhor futuro até para as pessoas que têm menos qualificações.
Há pouco falava do conformismo das pessoas, mas provavelmente não estava a referir ao facto de alguns culparem os pobres por estarem nessa situação…
Toda esta situação cria todo esse ambiente e as pessoas que não gostam de ser pobres -, ninguém gosta de ser pobre, só quem é pobre é que sabe a dificuldade que é – não vendo a alternativa procuram esquemas que lhes permitam, apesar de tudo, sobreviver nessa pobreza. O nosso olhar tem de ser um olhar que vai ao encontro da situação de cada pessoa, pondo-se no lugar, pensando “o que é que eu faria se estivesse nesta situação?”. Se calhar, fazíamos o mesmo, procurando esquemas e procurando, de alguma forma, sobreviver com, por vezes, muito, muito pouco e é isso que se passa em Portugal: temos muitas pessoas que têm de viver de tudo aquilo que conseguem obter para conseguir ter os mínimos. Tínhamos de ser mais rigorosas, até, na forma como estão a ser atribuídos todos os subsídios, todos os apoios, para que estas pessoas queiram e tenham capacidade de dar uma volta à sua vida e não se conformem nesta situação.
Eu pergunto se, perante esta consciência de quem está no terreno, mas, às vezes, também perante alguma falta de consciência de quem não conhece minimamente a situação dos mais pobres, se existe o risco de uma clivagem entre as várias camadas da população portuguesa?
Estas campanhas dos Bancos Alimentares servem, também, para que não se registe essa clivagem que é tremenda. Por vezes, e, hoje em dia, isso é ainda mais difícil de contornar, as pessoas vivem apenas na sua vidinha e vivem numa pequena bolha que, hoje, lhes é trazida pelos seus telemóveis, pelas suas redes sociais, pelas suas redes familiares e acham que todos os outros têm uma vida semelhante. Ora, não é assim: estas campanhas dos bancos alimentares e, também, o voluntariado que incentivamos, lado a lado, pessoas de todas as idades, pessoas de todas as origens, pessoas de todos os clubes de futebol, até, lado a lado, ombro a ombro, naquilo que é um desafio que é como a todos, que é, eu dou o meu tempo, eu dou os meus produtos porque eu não me posso conformar que haja pessoas que têm uma vida assim.
E convidamos muitas pessoas para irem ao Banco Alimentar, mas, também, para visitar as instituições que, no terreno, ajudam estas pessoas. Um contacto com a realidade era algo que não faria mal a alguns dos políticos que, depois, apontam a dedo algumas medidas, seja de direita, seja de esquerda. Eu, por vezes, ouço muitas pessoas falarem na televisão e na rádio e fico espantada com o desconhecimento que revelam e com a sobranceria que falam em relação àqueles que têm umas vidas dificílimas, em cada dia.
Pode dar um exemplo?
Muitas vezes vejo pessoas, seja de direita ou de esquerda, que propõem medidas sem saber daquilo que falam. Ainda há pouco tempo, quando se registaram aquelas situações aqui na Amadora, ouvi comentários que revelam um total desconhecimento do que é a vida nestes bairros e a dificuldade que há, para as pessoas que vivem nestes bairros, de terem uma vida calma e onde os equilíbrios são completamente precários. a maneira como as pessoas falam, como se conhecessem, de pessoas que nunca puseram os pés num bairro social, nem sabem o que é para estas pessoas viverem num bairro social…
E esse contacto com a realidade revela que a imigração trouxe novos desafios para quem está no terreno, para ajudar?
Trouxe desafios grandes, o primeiro deles é a língua. Hoje temos muitos imigrantes que nem sequer falam português nem inglês. Muitos destes imigrantes, por vezes, põem os filhos na escola, no ensino público e eles não sabem uma palavra de português e não falam inglês. Portanto, há logo ali um problema de língua. Depois há um problema de mentalidades, de culturas, até de forma como as pessoas se alimentam e trouxe algum desequilíbrio a bairros que estavam mais ou menos arrumados por tipo de população, que se foi construindo até com relações familiares e de vizinhança, mas que de repente vem ser perturbada por pessoas que estão de fora e que têm de se adaptar a um ritmo do bairro, por vezes, destabilizando aquele que é esse ritmo. Estes imigrantes novos, a forma como vivem e até a forma como fluem à procura de outros empregos, vem perturbar esta realidade.
Tem de haver uma preocupação maior com a integração?
Tem de haver mais estruturas no terreno que conheçam estas pessoas e possam facilitar essa integração, para que ela seja harmoniosa e não crie desequilíbrios nos bairros.
Faço-lhe uma pergunta sobre uma figura que tem sido muito relevante nesta denúncia da pobreza e do sistema que promove a exclusão, que é o Papa Francisco. Ele tem falado muito no descarte dos mais vulneráveis. É uma voz que precisa de ser mais ouvida?
Eu penso que o Papa Francisco tem uma comunicação como nunca nenhum Papa teve. Primeiro porque ele, por si próprio, é um comunicador, mas depois porque está numa época onde é muito mais fácil comunicar e onde tudo aquilo que se diz chega mais rapidamente a quem quer ler. O que eu pergunto é se todos querem ouvir e querem ler aquilo que o Papa Francisco diz.
Porque, por exemplo, o Papa Francisco recomenda que haja uma articulação entre as várias entidades que no terreno apoiam a pobreza e nós ainda vemos, em zonas muito bem definidas, que as instituições ao invés de colaborarem se disputam…
Quando não há mesmo uma sobreposição…
Há sobreposição naquilo que devia haver uma complementaridade. E, portanto, aquilo que eu tenho recomendado é que, para cada família carenciada, se tenha uma espécie de gestor de caso, que possa acompanhar essa família em todas as suas necessidades, seja de saúde, seja alimentar, seja de educação…
Está previsto numa estratégia em combate à pobreza…
Mas, às vezes, quando as previsões não saem do papel, é mais difícil. Portanto, muitas vezes, aquilo que temos assistido é que as próprias instituições que se organizam no terreno e que fazem espoletar uma situação que poderia estar prevista, mas não é concretizável, se elas próprias não quiserem. E é isso que nós vemos, é que hoje, muitas vezes, são as entidades no terreno que não querem que se mude o status quo.
Ora, enquanto não se mudar, e é isso que o Papa Francisco pensa que diz de uma forma muito clara, enquanto não olharmos para as pessoas mais carenciadas como alguém que precisa de um olhar que não é apenas caritativo, é um olhar total e integral sobre cada uma dessas pessoas, nós não vamos conseguir ter fórmulas que promovam as autonomias e as responsabilidades.
Muitas instituições de solidariedade vêm alertando para uma certa exaustão de quem ajuda. Tem, de alguma forma, notado dificuldades a esse nível?
Eu diria que, sobretudo para as pessoas que têm de estar no terreno todos os dias, é difícil porque a situação não muda. Ano após ano, dia após dia, sempre os mesmos problemas sem ter uma capacidade para mudar. Mas hoje nós temos muitos voluntários, muito mais voluntários do que tínhamos, e temos sobretudo jovens voluntários que, de forma comprometida, querem dar tempo e que têm uma vontade real de participar. E isso para mim é muito esperançoso, porque quando conseguimos aproximar esses jovens, estas novas camadas desta situação real, podemos, de alguma forma, mudar o olhar e a forma como são desenhados os planos de intervenção, mas também podemos gerar mudança pelo comportamento e pelo exemplo. E, portanto, eu tenho sempre esperança, sou uma otimista e acredito que esta exaustão que se vê nas pessoas, sobretudo nas pessoas que há anos e anos e anos estão neste setor social, que possa, se assim elas o quiserem, ser um testemunho que possa ser bem passado a outras pessoas. Obviamente diferentes, hoje temos menos freiras, temos menos padres que vão aos bairros, mas temos outro tipo de pessoas e temos de aceitar que em cada momento temos aquilo que é mais necessário, mas sobretudo aquilo que é o possível.