Entrevista: «A partir da luz que irradia do Presépio de Belém, sejamos capazes de dizer não há guerra» – Patriarca de Lisboa (c/ vídeo)

Em entrevista à Agência ECCLESIA, D. Rui Valério analisa a atualidade, refere-se aos imigrantes como uma oportunidade, fala das greves e de direitos «de terceiros», afirma que os valores do 25 de abril são os do 25 de novembro e a aponta a uma esperança que implique «empenho na história»

Entrevista conduzida por Paulo Rocha

Tem a equipa episcopal, o número de bispos auxiliares que pretendia. Está formada a equipa para o trabalho agora em todas as frentes?

É um dos sinais da esperança que nós temos a apresentar e uma das razões do nosso louvor e agradecimento ao Senhor: finalmente, a equipa está constituída, está formada e, portanto, devemos agradecer, antes de mais, a Deus o nosso Senhor, mas também ao Papa Francisco, que teve essa atenção para com Lisboa, não vou dizer num curto, mas num relativamente curto espaço de tempo: ter atendido à necessidade e à urgência de ter uma equipa episcopal formada.

O D. Rui deixa a Diocese das Forças Armadas e Forças de Segurança. Um trabalho que lhe era, particularmente próximo…

É verdade! Trabalhar nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança é um desafio permanente e, nessa medida, é fascinante. Consegue ser muito holístico, um trabalho muito holístico, no sentido em que tem momentos muito acutilantes do ponto de vista litúrgico, como celebrações, para assinalar os momentos liturgicamente significativos, depois era também um espaço em que podíamos ir ao encontro dos militares nas operações, tanto no território nacional como nas Forças Nacionais Destacadas, ou então, por vezes, visitar militares que estavam a bordo de um navio. Ou seja, é um trabalho que é caracterizado por uma diversidade tal que acaba por ser uma fonte de fascínio para todos nós.

É uma das fronteiras de que fala o Papa Francisco?

Sem dúvida que é. Até porque, nas Forças Armadas, nós encontramos um microcosmos da sociedade no seu todo. E, nessa medida, a ação pastoral castrense é uma pastoral aberta.

Aberta porque, permanentemente, o sacerdote, portanto o pastor, é convidado, interpelado, desafiado a ir ao encontro para fazer caminho juntos. A ir ao encontro com disponibilidade para atender àquilo que o outro tem na sua riqueza, na sua identidade, na sua multiformidade constitutiva da sua personalidade. E, muitas vezes, nós, nas Forças Armadas, o que encontramos são pessoas que não partilham nem a nossa tradição nem a nossa fé. Partilham sempre os nossos valores, isso é evidente. Mas isso obriga-nos a essa pastoral fronteira.

Agora, como equipa episcopal jovem – acredito que em poucos momentos da história assim aconteceu, e fruto também da solidariedade entre as dioceses, com bispos a partir de Lisboa ou a chegar a Lisboa – e nos diferentes perfis dessa equipa episcopal, tem as competências e as possibilidades de atuação e de cumprimento de um programa que pensa para o patriarcado?

Não haja dúvida nenhuma! Todos os nossos bispos auxiliares e o patriarca têm como “leitmotiv” da sua atuação pastoral o serviço e o servir uma diocese e uma porção do povo de Deus muito concreta. Ao mesmo tempo, há um naipe de valores, do ponto de vista pastoral, significativos e relevantes, que nós partilhamos. De entre esses valores, eu colocaria, em primeiro lugar, a pessoa de Jesus Cristo e colocaria a fé. Em segundo lugar, a dimensão sociocaritativa, a presença dos mais desfavorecidos, o anúncio que nós recebemos de Jesus no Evangelho de Lucas, quando oferece o seu programa missionário, que é de ser enviado aos pobres, aos mais desfavorecidos, aos mais necessitados. E eu poderia continuar um pouco neste ritmo para dizer que há uma sintonia perfeita em termos de orientação e concretização.

Foto: Patriarcado de Lisboa

E que se conjuga em diferentes perfis dos próprios bispos auxiliares…

Porque tem de ser assim. Lisboa é uma realidade muito pluriforme, em que tem muito acentuadamente tanto a dimensão urbana, citadina, como a dimensão rural. Depois, tem uma forte preponderância da dimensão académica, alberga em si, no território da nossa diocese, uma série de universidades. Por outro lado, é uma região onde a indústria é muito forte e muito presente. Está também presente a dimensão da tecnologia, da inteligência artificial, a própria realidade militar (é no território que corresponde ao patriarcado de Lisboa que existem significativas e importantes unidades, seja das Forças Armadas, seja das Forças de Segurança). É em Lisboa que existe a sede do poder legislativo, do poder executivo, dos órgãos de soberania.

Tudo isto faz com que haja uma dimensão pluriforme daquilo que é a realidade da diocese, à qual é necessário responder, à qual é necessário estar presente. E toda a dimensão da saúde, com os grandes hospitais nacionais aqui presentes, toda a dimensão da justiça… Enfim: podíamos quase dizer que não há setor da vida que não tenha uma forte e central presença aqui em Lisboa.

Por uma esperança ativa

Já vamos a alguns desses setores, porque merecem também uma análise e cuidado. Antes gostava de partir de uma afirmação que tem na 1ª carta pastoral: “o principal capital humanitário que hoje a Igreja pode oferecer é a esperança”. É uma afirmação que, por certo, comungamos, mas diante de uma sociedade que está necessitada de bens muito concretos, de necessidades muito específicas, será que a sociedade de lisboeta, os lisboetas ficam de coração cheio com esta afirmação?

A esperança é, antes de mais, uma perspetiva de vida. A esperança é olhar – e vou usar a sua linguagem – é olhar para uma mesa que está carente, uma mesa que está pobremente caracterizada, e descobrir nessa pobreza rasgos de uma nova vida, de novos horizontes, de um novo futuro, de um novo tempo, de uma nova história.

Para isso é preciso uma matriz crente?

Para isso é necessário uma luz que nos ilumine e que nos inspire. Porque eu quando olho para o episódio de Jesus, num dia que declina, ao fim da tarde e tem à sua volta uma multidão imensa que necessita de comer, repare que aquilo que se tem são cinco pães e dois peixes. A esperança é olhar para aqueles cinco pães e para aqueles dois peixes, como faz Jesus, e dizer: partilhai. Da esperança surge uma atitude de envolvimento, uma atitude de partilha, uma atitude de empenho na história, uma atitude de justiça.

Tão própria também deste tempo de Natal…

Por isso é que eu digo que a esperança é, antes de mais, uma perspetiva, mas uma perspetiva de atuação. Não é um piedoso desejo, mas a esperança obriga-me a uma mobilização de atuar.

Na carta pastoral aponta precisamente o Natal também como o acontecimento origem dessa esperança, mas perguntava-lhe: como é que é possível, por exemplo, afirmarmos convictamente essa esperança diante da instabilidade política, que vemos agora acontecer sobretudo na Madeira, vimos acontecer no Parlamento português com equilíbrios constantes… É possível irmos tendo esperança, por exemplo, na política?

Nós corremos o risco de nos deixarmos despojar de tudo, mas a esperança ninguém a leva, ninguém a rouba. A Sofia (de Mello Breyner Andresen) tem um poema maravilhoso que eu gostaria de estampar dentro do coração: “Apesar das ruínas e da morte, onde sempre acabou cada ilusão, há de ressurgir uma nova exaltação “. São palavras que pertencem ao poema de Sofia, a qual nos ensina que é precisamente porque existe esta contrariedade, esta antítese da história, que a esperança se recomenda, é necessária, é imperiosa. O ser humano será capaz de contornar e contrariar os ventos da história se for um homem, se for uma mulher de esperança. Senão, é cilindrado pura e simplesmente pela força da angústia e pela força do desespero.

25 de abril e 25 de novembro

Quer isso dizer, por exemplo, que o comemorar os 50 anos do 25 de Abril neste clima de alguma instabilidade política é, na sua opinião, um sinal de maturidade democrática?

Eu não diria –  vamos por partes à sua pergunta – que nós estamos num momento de instabilidade política.

Pelo menos, acordos parlamentares que obrigam a negociações…

Mas isso faz parte, desculpe-me uma expressão, do jogo democrático.

Mal seria aquela democracia onde não houvesse um pró e um contra. Mal seria essa democracia!

Aquilo que nós estamos a verificar, em termos políticos, é parte integrante de uma democracia amadurecida, uma democracia – eu reconheço – nem sempre linear, que teve o seu sofrimento, como todos os partos têm, mas que hoje é, ela própria, e com o 25 de Abril evocado, fator de esperança para a nossa sociedade.

Porque hoje todos nós reconhecemos que, não obstante as antíteses da história que têm acontecido, a verdade é que ela constitui uma rampa de lançamento, um motor de arranque para aquilo que é a nossa vida do dia a dia.

Foi uma opção certa comemorar também o 25 de Novembro?

A história são acontecimentos, realidades temporais e espaciais que acontecem protagonizadas por determinadas pessoas.

Olhar para a história e separar um acontecimento do outro… Esse é que é o erro. É verdade que há momentos referenciais para determinadas decisões que levam a cabo determinados projetos. Mas também é verdade que nunca podemos e não devemos perder de vista o todo de qualquer projeto. E o todo de qualquer projeto, por vezes, obriga-me a olhar à sua tese, à sua antítese, para encontrar uma verdadeira síntese.

Em relação à compreensão da história, uma visão muito “à lá Hegel”, quando ele nos diz que todos os acontecimentos da história se pertencem reciprocamente.

Os valores que eu vi inspirarem o 25 de Abril, que eu vi ou que eu senti inspiradores do 25 de Abril, foram os valores que eu vi inspiradores do 25 de Novembro. São os mesmos que eu vi inspiradores de outras datas da nossa história.

Greves, direitos e deveres

E é precisamente nessa leitura também que lhe pedia o comentário a situações de greve, por exemplo, dos bombeiros, que foi particularmente visível, do INEM, com consequências que infelizmente que provocaram vítimas de alguns cidadãos, e agora também da higiene urbana, que pode afetar estes dias de Natal. Como articular direitos, que são da democracia, com a estabilidade social que também é requerida?

Foto: Agência ECCLESIA/LJ

Antes de mais, eu gostaria aqui de esclarecer que o meu pai, toda a gente o sabe, era camionista; a minha mãe era, chamava-se na altura, trabalhadora doméstica; eu próprio, durante as férias grandes, que tinham três meses, trabalhava nas fábricas da minha terra, no Conselho de Ourém. E, portanto, em relação à greve, há que dizer que é uma conquista civilizacional, de sociedades solidamente estruturadas, é uma forma que os trabalhadores têm ao seu alcance para a afirmação dos seus direitos, para a salvaguarda dos mesmos.

Mas, dito isto, também sou da opinião – e admito que ela possa ser profundamente contestada – que é necessário haver aqui um elo de salvaguarda dos direitos, de quem tem direito a um determinado serviço. Ou seja, neste deve e haver de conflito de direitos, é necessário fazer uma reflexão para nos questionarmos como, em última análise, a afirmação legítima de uma pretensão, no respeito de um direito, não esteja a atropelar direitos de terceiros. Eu não sei como é que isso será resolvido, e certamente os entendidos na área da sociologia, da economia, da ética o saberão. Eu gostaria apenas de colocar as minhas palavras e de dar uma resposta neste sentido: que a legítima afirmação e luta por um direito não vá atropelar direitos de terceiros, quando esses terceiros, porventura, são sempre o elo fraco da equação social.

Maternidades e a crise da natalidade

Sobre a saúde: o fecho de maternidades faz com que seja difícil nascer em Portugal?

Eu creio que não. Eu creio que a crise da natalidade terá porventura outras razões. As causas serão outras, são muito complexas. Estar a enumerar três ou quatro poderia pecar por defeito, porque há mais.

Mas é uma situação que causa apreensão…

É uma situação que causa apreensão, causa dor, obviamente.

Quando estamos a falar de crise de natalidade, estamos a falar de como uma sociedade, um país se está a comprometer, no seu futuro. E, por isso, é com tristeza, é mesmo genuína a minha dor, quando verificamos que as nossas sociedades estão cada vez mais reduzidas e diminuídas nas taxas dos nascimentos.

Imigrantes como oportunidade

Estamos a acolher muitos imigrantes, assim deve continuar a acontecer. Que regulamentação é necessário ter neste setor, na sua opinião? Tendo presente também o turismo de saúde, o acesso ao Sistema Nacional de Saúde por parte da população migrante.

Eu vou dizer duas coisas que, na minha perspetiva, são óbvias. Nomeadamente, quando nós procedemos a um discernimento iluminado pela Palavra e pela mensagem daquele Menino que é o próprio Filho de Deus e que nos vai visitar.

Em primeiro lugar, o ser humano é um valor em si. O ser humano é detentor de uma dignidade que nós todos devemos respeitar, devemos salvaguardar, defender. Em consequência disso, se a afirmação dessa dignidade implica para o próprio a necessidade de deixar a sua terra, deixar a sua família, deixar a sua gente para se lançar numa aventura que, para o próprio, é completamente desconhecida, como é o caso do migrante (hoje é quem chega, no passado foram os portugueses que viveram essa vicissitude ou essa aventura)…

Quando nós verificamos que ser migrante, mais do que ser a expressão de um gosto é a expressão de uma necessidade, então eu digo “vamos com calma”… Vamos com calma na maneira como tratamos esta questão recorrendo a números.

Em segundo lugar, creio que é um grande desafio para nós, como sociedade portuguesa: que saibamos fazer dos migrantes – e agora vou ser ponderado na palavra que uso – que saibamos fazer de homens e mulheres que são migrantes não um problema, não uma ameaça, mas um trunfo, uma oportunidade.

Afinal de contas, nós somos uma sociedade, um país com tantos séculos de história. Já vivemos tanto e eu diria quase que já vivemos tudo. Por isso, também para esta questão da migração, nós vamos encontrar, estou certo disso, uma solução em que ao mesmo tempo se afirmem estes dois valores: por um lado, estamos a promover a dignidade de quem chega, não estamos a pôr em causa a sua condição de ser humano, e, por outro lado, estamos a fazer com que, para o país, este migrante seja realmente um contributo, seja um fator positivo, seja um fator de progresso.

Solução? Espero que as pessoas que se entendem destes fenómenos sociais se empenhem para rapidamente resolverem esta questão. Estou em crer que a demora em encontrar uma solução é apenas o resultado de um estudo, de uma análise que está a ser elaborada à qual estamos todos atentos e a qual queremos ver surgir, a todo o momento.

Na prática, isso significa ter uma política de portas abertas ou criar algum tipo de regulamentação?

Não vou ainda por aí, ainda não cheguei a esse ponto! Primeiro, é necessário que todo o discurso e toda a opção que for feita – não sei qual é, não vou particularizar – tenha em conta estes dois padrões, estes dois horizontes: dignidade do ser humano e que o migrante seja uma oportunidade, uma possibilidade para Portugal.

Uma questão a resolver a nível europeu e não só a nível nacional? Há Pacto para as Migrações e Asilo…

Eu tenho dito isso! O problema da migração, como outras questões que estão aí na ordem do dia, na análise social, alcançam uma certa dimensão que já não são solucionáveis apenas com medidas locais ou nacionais. Só com medidas da União Europeia.

E a União Europeia tem a obrigação de fazer isso. Porquê? Porque o cidadão que hoje nós estamos a apelidar de migrante, porque está aqui e estamos a elaborar toda esta panóplia de soluções para o encontro com ele, daqui por dois meses está em Paris ou está em Roma. E, portanto, a União Europeia não se pode desinteressar deste tema. Tenho dito isto tantas vezes através da comunicação social e penso que era a hora da União Europeia abordar este tema como um tema prioritário.

Sem-abrigo

A Comunidade de Vida e Paz vai adiantando números sobre as pessoas em situação de sem-abrigo, referindo que, no centro de Lisboa, podem estar a diminuir, mas a aumentar nas periferias. Há uma estratégia em curso desde algum tempo para retirar as pessoas da rua que assim o desejem, mas que, infelizmente, não atingiu os objetivos a que se propôs, até pelo Presidente da República. Será um problema sem solução?

Não! Falar de problema sem solução neste contexto de esperança, seria até contraditório!

Eu acho que, para o problema dos sem-abrigo, os problemas de quem vive na rua, era muito importante ter uma estratégia que não chega a ser local, não chega a ser nacional, tem de ser europeia. Porquê? Porque o problema que nós verificamos ou encontramos hoje nas nossas cidades… Eu há pouco tempo, há poucos dias, estive em Roma e encontrei lá também essa situação. Em Paris, encontrei essa situação.

O número de sem-abrigo, por um lado, parece que não diminui, mas, por outro lado, também é verdade que existem algumas franjas de Lisboa onde já se verifica essa diminuição. No entanto, e a matemática não engana, estão a surgir polos, fatores, onde essa situação de precariedade ou se mantém ou está a aumentar.

Não tendo soluções práticas e concretas para apresentar – quem me dera! – o que posso dizer é que conheço instituições, entidades, conheço pessoas singulares, individuais, que estão verdadeiramente dedicadas a socorrer, a ir ao encontro dos sem-abrigo.

O que eu quero dizer, e é uma mensagem muito natalícia esta que vou transmitir e, porventura, para mim é importante: há um determinado momento em que nós, à pessoa, ao irmão ou à irmã que é sem-abrigo, lhe podemos dizer – não sei se o conforto ou não, acredito que não, mas podemos transmitir-lhe esta mensagem – que não está sozinho, que acredite que há pessoas disponíveis a ajudá-lo, a ir ao encontro dele, que eles não estão sós. Da parte da Igreja, a mensagem que temos para oferecer não se esgota aí, mas se calhar começa por aí, de saberem que nós estamos empenhados em, pelo menos, garantir o indispensável para a vida, para a sobrevivência.

Depois, o problema da habitação é muito complexo. Eu próprio já tentei compreender o porquê e as nuances e há muitas razões que tornam esse assunto muito complicado, muito complicado. E depois existe o fator da mobilidade com que hoje as pessoas passam os seus dias e vivem as suas vidas e realizam as suas histórias.

Gostaria de transmitir aqui uma palavra de esperança, mesmo a quem é sem-abrigo, e aquilo que eu acho são, na relativa dimensão das nossas instituições, propostas concretas para que as pessoas deixem a rua, para que as pessoas sejam acolhidas… Por exemplo, falou da Comunidade Vida e Paz, mas há outras que têm como objetivo exatamente esta meta: tirar a pessoa da rua.

Tumultos em Lisboa

Estou-me a recordar dos tumultos que aconteceram na região de Lisboa, em outubro. Recebeu com surpresa, tomou conhecimento com surpresa desses tumultos?

De certa forma… Eu não vou dizer que somos uma sociedade de brandos costumes, não vou dizer isso, mas somos uma sociedade onde é fácil chegar à fala, ao encontro com as instâncias que se desejam. E, portanto, foi com alguma surpresa que ouvi e participei daquilo que estava a acontecer. Foi para mim também uma surpresa sabendo que Portugal é uma nação que acolhe bem e que integra bem.

Esta questão de Portugal ser uma espécie de microcosmos ou de micromundo é uma coisa que já vem lá atrás. Sempre fomos um país de emigração, um país que esteve presente e que recebeu pessoas de geografias diversas. Nós sempre soubemos integrar e sempre soubemos acolher. E hoje a realidade é um pouco diferente, obviamente, e por isso surgiram esses tumultos.

São sinal de quê?

Talvez sejam sinais de um certo mal-estar que existe no interior das pessoas, que se sentem, talvez, injustiçadas por aquilo que estão a viver, que não se sentem devidamente escutadas nas suas justas reivindicações e exigências.

No entanto, sou muito esperançoso relativamente a isso. Porque quando visitamos os nossos bairros, quando vamos ao encontro das pessoas, verificamos que são pessoas que têm ali uma bondade genuína dentro delas.

Apoios a partir da Jornada Mundial da Juventude

Falemos da Jornada Mundial da Juventude. Podemos falar de muitos frutos que acontecem, por certo, no percurso de cada jovem, de cada pessoa. Mas gostava que deixasse aqui alguma informação, se é possível avançar, sobre a ajuda que pode resultar da Jornada Mundial da Juventude. Para quando o início do apoio a projetos concretos, a partir do que foi o superavit da jornada?

A Fundação JMJ tem uma direção que é autónoma, tem uma autonomia total e absoluta. Tem um presidente, que é o Sr. D. Alexandre Palma. Tem também, como referencial e como luz iluminadora e inspiradora e regulamentadora, os estatutos, portanto regulamentos. E os estatutos afirmam claramente duas coisas – firmam várias, mas estas duas são aquelas que agora nos podemos sublinhar: em primeiro lugar, que a Fundação JMJ tem um caráter de apoiar, de auxiliar, projetos que cheguem, projetos que apareçam, projetos que serão apresentados; e, em segundo lugar, que sejam projetos que se destinem, fundamentalmente, a dois destinatários bem específicos, que são os jovens e que a infância. E dentro, desta dinâmica, a Fundação está apta, está a receber, está a recolher esses projetos, que fará depois uma análise, que fará depois o discernimento e que depois irá apoiá-los localmente, temporariamente, conforme aquilo que for acordado para que isso aconteça.

Mas há prazos para que isso possa começar a acontecer? Acredito que os projetos já tenham chegado…

Os prazos serão pautados e serão realizados à medida que forem chegando e à medida que esses prazos tiverem uma resposta.

Mas quando nós falamos da JMJ, aquilo que deve realmente sobressair – para além deste aspeto que é importante, mas que não será o mais importante – é aquele de nos ter deixado aqui um entusiasmo e uma mística de juventude em que nós verificamos que os jovens querem e estão mais próximos da Igreja de Jesus Cristo.

Guerra para acolher o Príncipe da paz?

Pedia-lhe um comentário à situação de guerra internacional, seja na Ucrânia, na Terra Santa, noutras geografias do mundo… Nomeadamente na Terra Santa é um sinal de contradição, sobretudo nesta de Natal, no local onde nasceu o Príncipe da Paz?

Como disse o Papa Francisco na audiência geral, no Vaticano, uma guerra é sempre a derrota da humanidade. É o próprio ser humano que ali vem diminuído. Em segundo lugar, gostaria de dizer, e aqui com alguma tristeza, que tanto na Ucrânia como no Medio Oriente são guerras que de certa forma são contra natura: cilindraram completamente aqueles princípios e valores éticos, humanistas, que nós acreditávamos e pensávamos já estarem afirmados e estabelecidos indelevelmente, que eram indestrutíveis. Quando vemos inocentes, crianças, às vezes até doentes, a serem vítimas desta violência e desta guerra, ficamos arrepiados… Em terceiro lugar, e para que não tenha este tom tão pessimista, eu creio que o Príncipe da Paz, quando surgiu precisamente em Belém, uma terra que neste momento em que nós estamos a escutarmo-nos um ao outro os seus habitantes são obrigados a escutar o estrondo dos mísseis e das bombas, eu creio que sim, é um sinal de contradição. E o ponto positivo, se é que me posso expressar assim, é que, olhando para o que ali acontece, nós como humanidade saibamos dizer não. Aquilo não. Aquilo é estrangeiro ao próprio ser humano. Aquilo não nos pertence. Nós não nos identificamos com aquilo.

A partir da luz que irradia do presépio de Belém, sejamos capazes de dizer não há guerra, não há violência, ficarmos escandalizados por ela.

O Papa Francisco tem insistido muito num ponto que eu faço questão aqui de referir, que é o de passarmos a ações concretas. Nossa Senhora, quando apareceu em Fátima aos pastorinhos, apareceu num contexto que estava em conflito a nível mundial, estava-se em guerra. E ela apresentou-nos o caminho que foi a oração, concretamente, a recitação do Santo Rosário. Neste momento, a nossa diocese de Lisboa, com todas as dioceses de Portugal, estamos a levar a cabo, neste preciso momento, uma campanha de solidariedade, de recolha de meios para podermos auxiliar o martirizado povo do Médio Oriente. Aqui em Lisboa, até se quis dar um toque simbólico a essa dádiva e a essa recolha é no próprio Dia de Reis, no primeiro domingo de janeiro, em que haverá a recolha e haverá o envio para o Médio Oriente.

Em terceiro lugar, dirijo-me concretamente aos mais jovens: é urgente que vós, caros jovens, que nutris dentro do vosso coração aqueles valores que criam verdadeiramente civilizações do amor, que vos empenhais mais nas coisas públicas, nestes projetos humanitários, neste bem comum que é necessário.

Jubileu 2025

Um último tema, para falarmos do jubileu, para falarmos desse desafio que colocou a Diocese de Lisboa no reativar o lugar de esperança, como escreve na Carta Pastoral, onde diz que o primeiríssimo lugar é a família.Simbolicamente, convocou uma família de cada paróquia para o início do jubileu no Patriarcado de Lisboa. Que sinal é este? Que estratégia é esta para o ano jubilar?

Afirmativo! Precisamente porque a família é o lugar do nosso acolhimento na vida, no mundo, na história, mas também porque a nossa presença na família oferece-nos uma perspetiva e um ponto de vista para, a partir dele, lançarmos um olhar para a existência.

Saber que a família pertence à nossa identidade e à nossa história, e nós pertencemos à família, quer dizer que, perante nós, todos os projetos, todas as decisões, todos os caminhos serão realizados e percorridos não sozinhos, mas sempre com alguém.

Há uma máxima que é muito usada nos meios castrenses que diz: sozinhos nós podemos ir mais depressa, mas em companhia vamos mais longe. E é este sentido que toca a esperança. Uma coisa é estarmos na vida num ponto de vista solitário. Uma outra coisa é quando nós somos acompanhados.

Porque dizemos que o mistério pascal é a fonte de toda a esperança? Porque escancarou horizontes de eternidade, porque venceu a morte com aquela vida plena, com a própria vida de Deus. Mas é também pelo facto de que Jesus, que estava a viver um momento tão atroz, na mais atroz das solidões – “Pai, porque me abandonaste?” – nunca deixou de ter a seu lado alguém, Nossa Senhora, o discípulo amado, o próprio Cirineu que o acompanha e que o ajuda a transportar a cruz. E, portanto, isso inverte completamente, transforma completamente os desafios que nós temos na existência.

 

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