Setúbal: Diocese ultrapassa fronteiras através da resposta social da Cáritas – Paulo Valente da Cruz

Um dia depois do Jubileu dos Ciganos e itinerantes, promovido pelo Vaticano, vamos abordar o trabalho da Cáritas de Diocesana de Setúbal, junto da comunidade cigana, com esforços no apoio escolar, creche, jardim de infância e centro de dia para idosos. É convidado da entrevista conjunta Ecclesia/Renascença o responsável da Cáritas sadina

 

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

O Vaticano quis promover, no contexto deste Ano Santo, um Jubileu para as populações da comunidade cigana e para os itinerantes. É um sinal importante para a Igreja e para a sociedade e, em particular, também para o trabalho que a Cáritas de Diocesana de Setúbal vai fazendo?

Sem dúvida alguma, é um sinal muito importante. Importa salientar que a Cáritas de Diocesana de Setúbal não defende a criação de respostas sociais pura e simplesmente dirigidas à comunidade cigana, mas sim a todas as pessoas de todas as nacionalidades e etnias, de forma a integrar a comunidade cigana de uma forma transversal e exatamente igual a qualquer outro utente da Cáritas de Diocesana de Setúbal.

 

Como é que vê o aumento de discursos políticos que promovem de forma aberta o discurso da discriminação e mesmo, por vezes, da criminalização da comunidade cigana em Portugal?

Vejo com alguma tristeza, porque, de facto, se as pessoas estivessem mais perto do terreno, percebiam que este tipo de pessoas como as de etnia cigana têm coisas muito boas e que hoje têm outra realidade na forma de estar na sociedade. Vai-se sempre buscar só os casos menos positivos, mas há casos muito positivos e de muito sucesso e de integração na sociedade. Portanto, vejo com muita pena.

 

O Papa Francisco falava do ódio aos pobres. Há no discurso político uma ideia de que as pessoas são responsáveis pela situação em que se encontram quando são excluídas?

Eu, de facto, chego a uma conclusão: As pessoas não têm noção que o pobre pode ser um de nós um dia. E isso pode acontecer muito mais rápido do que as pessoas pensam.

Eu poder-vos-ia dar aqui vários exemplos do meu dia-a-dia, em que, de facto, temos de apoiar pessoas da classe média, porque, como já falamos nos média, a especulação imobiliária e, de facto, os aumentos de rendas, levam a que haja determinadas famílias da classe média que não conseguem, num determinado momento, pagar uma renda. E nós, Cáritas, tentamos fazer essa prevenção, porque senão a família vai para a rua e as crianças são retiradas à família e, portanto, isto é uma realidade que pode acontecer com qualquer um. Eu diria que na classe política e nos intervenientes que vamos ouvindo na comunicação social, às vezes, é bom pensar um pouco até que ponto é que um dia não lhes pode bater este problema à porta.  E aí já davam, com certeza, outro tipo de discurso a este tema.

 

A Cáritas tem estado, desde a inserção ao acompanhamento da comunidade cigana através do Centro Social Nossa Senhora da Paz. Que tipo de ações concretas desenvolvem no dia-a-dia e que frutos têm visto deste trabalho?

A Cáritas, de facto, no bairro da Bela Vista, tem uma comunidade, em que montou um programa de luta contra a pobreza e apoio social e alfabetização e, nessa sua vertente de resposta a estas necessidades, apoia também, dentro do bairro, a comunidade cigana. E, portanto, tem vindo a alargar a oferta no bairro e disponibiliza, atualmente, creche pré-escolar, apoio às jovens mães, centro de serviço de apoio domiciliar.  Como eu tinha dito, nós defendemos a integração como se fosse outro utente.

 

É um apoio transversal?

É um apoio transversal e, portanto, atualmente, nós contamos, por exemplo, com três crianças de etnia cigana na creche, quatro no pré-escolar, três no serviço de apoio domiciliário, 15 jovens de etnia cigana a frequentar o clube de jovens e duas jovens mães de etnia cigana acompanhadas na resposta social do centro de apoio à vida, que são as mães grávidas.

 

É fundamental evitar a guetização, não é?

Exatamente. Portanto, está tudo inserido dentro de toda a tipologia de utentes que temos, da sociedade de uma forma transversal. E esse é que é o caminho, no meu entender, e no entendimento da Cáritas de Diocesana que nós devemos defender. Esse é o caminho para, de facto, a integração ser eficaz. Continuaremos este trabalho. Devo recordar que no passado dia 8 de abril, no Dia Internacional da Pessoa Cigana, tivemos a honra de receber o seu Presidente da República, que se juntou à população cigana e à restante comunidade e, de facto, foi destacada a importância da integração, do respeito e da valorização das diferentes identidades culturais no contexto de uma sociedade mais justa e solidária.

 

Tanto o presidente da República como o bispo de Setúbal falaram nessa ocasião da necessidade de combater preconceitos e desigualdades. A partir da experiência concreta, a comunidade sente que se torna mais inclusiva com este contexto direto, o que é que ainda falta para uma verdadeira inclusão?

Efetivamente, este tipo de ações ajuda muito. A comunidade cigana, naquele momento sentiu-se apoiada e depois, o que falta é haver mais ação neste tipo de apoio, neste tipo de momentos. E é isso que temos de tentar fazer. Foi muito gratificante ter o senhor Cardeal e nosso Bispo de Setúbal e o nosso Presidente da República, porque depois criou-se um momento em que houve comunicação e em que o Presidente da República quis comunicar com os presentes. E é interessante, e eu gostaria de partilhar isto convosco, que a certa altura dizem que fala um determinado indivíduo, e esse indivíduo é um indivíduo que trabalha numa multinacional – eu não vou referir o nome – uma grande empresa a nível nacional, que quando entrou não disse que era da etnia cigana, e que casou com a esposa que por acaso não é da etnia cigana.  E a dada altura, a esposa contou o seguinte:  quando vou a um restaurante, com a minha família dizem que não há mesa, mas quando vou a casa e telefono para marcar a mesa, há mesa para ir ao restaurante.

O Presidente da República obviamente que ao ouvir uma coisa desta natureza disse, vocês têm que continuar esse trabalho e serem resilientes. Este é o caso paradigmático, de que de facto nós temos que, para além de promovermos estes momentos; nós temos também de dar a conhecer à sociedade este tipo de registos para a sociedade perceber que também há casos de sucesso na etnia cigana. Não é só RSI. Tínhamos ali obviamente todo o tipo de famílias. Tínhamos algumas que dependem do RSI, mas também tínhamos pessoas que já trabalham neste tipo de empresas, e que têm valor na forma como se afirmaram. Há de facto que apostar mais neste tipo de exemplos, até para os outros acreditarem que é possível; os outros da etnia cigana.

 

A sociedade discrimina, mas a própria comunidade também de alguma forma ainda não se autoexclui? Não sente isso?

Sinto, sinto, sinto, mas lá está, era aquilo que eu estava a tentar transmitir. Ela autoexclui-se, e estes momentos são importantes para dizer o seguinte, atenção, vocês têm pessoas de etnia cigana que já estão inseridas, portanto não se autoexcluam. Mas sim, sem dúvida alguma, há essa autoexclusão. Aliás devo dizer que algumas das pessoas que vivem no bairro (Bela Vista), eu estive a ver números mais ou menos, o bairro tem sensivelmente 4500 pessoas e 10,4% é de etnia cigana, portanto andamos ali nos 450-500, pelo menos os registados. E efetivamente há muitos que inclusive ainda pensam em não pôr as crianças na escola, querem ficar com as crianças com eles, sim. Autoexcluem-se, mas também eventualmente sentem-se sinais, principalmente entre os mais jovens de etnia cigana, sentem-se sinais de maior abertura e eventualmente não se autoexcluam tanto. Mas sem dúvida, sinto isso e nós sabemos que a própria cultura deles é muito propícia a se autoexcluírem.

 

Um dos pontos mais sublinhados neste trabalho é o desafio da educação. Que obstáculos ainda persistem na permanência escolar das crianças e jovens ciganos e como é que estão a tentar superá-los, até porque ainda agora os descreveu?

O que nós tentamos fazer, através inclusive destes jovens, do clube de jovens que temos nesta resposta para os jovens, é passar à comunidade a ideia que realmente tem que ser mais cedo que as crianças têm de ser inseridas para a educação. Como estava a referir, há muito aquela tendência de se tentar ficar com a criança até aos seis, sete anos, ou mais, e só depois é que se faz o caminho escolar. Ali, que já é mais urbano, o que eu sinto é que começamos a conseguir passar esta mensagem de que é muito importante trazer as crianças para a escola, porque é aqui que começam as bases.

Ali já começa a haver esta noção, mas ainda há a prevalência de uma outra cultura. As técnicas transmitem-me, que de facto ainda há algumas situações em que não põem as crianças na escola. E se formos mais para o mundo rural, sabemos que isso então é muito gritante. Eu tenho um caso conhecido de um jovem que aos nove anos ainda não tinha feito a primeira classe. Inseriu-se depois com nove anos, e começou então a estudar a partir daí.

 

Temos falado muito como a Cáritas, pelos seus serviços, é também muitas vezes a primeira porta onde se vai bater. Neste caso também do que nos tem descrito como forma de promover e valorizar culturas próprias, como no caso da comunidade cigana. Vivemos um ano na Igreja Católica, um ano de Jubileu dedicado à esperança. Que sinais concretos, mudança e de esperança é que consegue identificar no trabalho que se está a realizar nesta área?

 

Os sinais concretos e de esperança é começar a perceber – e há pouco estava um bocadinho a falar nesse tema antes de começarmos – que não basta só o assistencialismo, neste caso concreto inclusive à comunidade cigana, quando estamos a falar de jovens. Devemos promover a autonomização no sentido de eles serem outro tipo de registo na sociedade. Quando eu falei do exemplo deste indivíduo que trabalha já numa multinacional, estamos a falar de um jovem talvez com 30 anos, e, portanto, eu começo a ter esse sinal de esperança de que aquele caso exemplar pode ser replicado.

 

E que há outros futuros possíveis….

 

Exatamente.

 

Eu queria-lhe colocar uma questão relativa aos 50 anos da criação da Diocese de Setúbal. Que impacto teve essa presença eclesial na relação da igreja com a comunidade local, e já agora olhando para o futuro imediato, quais os maiores desafios sociais que Setúbal enfrenta e como é que a Caritas pode contribuir para ajudar a dar uma resposta?

O impacto foi muito grande, nós sabemos a história de todos que de facto Setúbal nos anos 80 ou 90 viveu de grandes dificuldades, chegava-se a falar em fome em Setúbal. A Diocese, que nasce com D. Manuel Martins, é o caso exemplar de resposta a essas necessidades. Aliás, devo dizer que neste momento temos equipamentos que respondem de uma forma transversal a todas as camadas etárias, e de facto na altura havia mesmo pobreza em Setúbal. Hoje fruto dos equipamentos que foram desenvolvidos nós damos resposta à sociedade em geral portuguesa e fora. Por exemplo, nas pessoas em situação de sem abrigo, aparecem-nos pessoas de toda a realidade do mundo, que facilmente atravessam a ponte pelo comboio e vão ter connosco.

Só para vos dar um exemplo, só em alimentação, no ano passado foram 165 mil refeições.

 

Está a aumentar muito essa valência?

Sim, sim, sim, eu quando cheguei eram sensivelmente 80 mil, depois passou a 100, 135 e o ano passado 165. é uma pena dizer-vos isto, mas com a tristeza que o faço, mas ultrapassa mais de meio milhão de euros em resposta e nós lá estamos, mas já não é apenas para a sociedade em Setúbal.

 

E tem a noção do número de população em situação de sem abrigo neste momento, em Setúbal?

Sim, sim, nós apoiamos 250 pessoas diariamente. Agora, a Camarata só tem 14 camas há muito tempo e a nova filosofia, e que eu defendo, foi a de criar apartamentos partilhados e o housing first, e aí triplicámos para 46 camas. Mas precisávamos de mais, e depois não há habitação e nós é que estamos a pagar os apartamentos. só temos o protocolo de segurança social a ajudar-nos efetivamente na questão dos técnicos, etc.

 

E há, portanto, muitos migrantes, como dizia, não é? 

A pessoa que fica em situação de sem abrigo, grande parte não é migrante, porque essa depois faz alguma coisa e vai embora. Não, é nossa. E depois aqui temos um tema que tínhamos de explorar se tivéssemos tempo, é que quando a pessoa aparece em situação de sem abrigo e depois de nós, com os nossos técnicos, começarmos a fazer o trabalho, percebemos que há pessoas em situação de sem abrigo que depois tinham de ser tratadas de outra forma, que é, por exemplo, a toxicodependência, tinham de ir para a instituição, problemas de saúde mental, e não há respostas no país para isso. Conclusão, você tem naquela camarada uma mistura explosiva. Foi de sem abrigo, foi, mas agora já precisávamos de outro tipo de caminho. Aqueles que realmente nós sentimos que não precisam desse tipo de apoio, tentamos pô-los nos apartamentos partilhados para criar otimização.

Portanto, sim, a Diocese de Setúbal, ainda hoje, é fundamental com a sua Cáritas na resposta, mas hoje ultrapassou as fronteiras. A semana passada apareceu uma família do Bangladesh, vinda de Lisboa, e que recebeu a indicação para vir ter com a Cáritas de Setúbal, e nós tentamos dar resposta. Efetivamente, com a sua Cáritas responde para além das fronteiras da diocese, e como eu digo, às vezes tenho pena de serem tantos casos. Há dois anos apoiávamos 2700 pessoas diariamente, e o ano passado, 3715. Eu preferia que o número fosse menor, porque significava que as pessoas estavam melhores e tinham-se otimizados.

No ano todo, somando todas as respostas dos cinco equipamentos que temos, os de indicadores foram 3705 pessoas, que são apoiadas diariamente. Evidentemente que depois pode haver algumas que depois seguem a sua vida e que estão nesse número também, mas o que é facto é que o número era muito menor.  E é aqui que eu digo, sim, a nossa Diocese tem um papel fulcral, e aliás, a classe política sabe isso, ali como resposta, e já sabem que até é para lá da península.

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