Padre Arlindo Miguel, Diocese de Santarém
A Igreja é uma comunhão de pessoas, de carismas e de ministérios. A ‘sinodalidade’ é um modo de atuar essa comunhão, como a ‘amizade’, a ‘fraternidade’, e a ‘santidade’, são também modos de atuar essa comunhão.
Compreendo que o papa Francisco e a Comissão teológica internacional insistam na noção de Igreja sinodal, é-o de facto, tanto como é batismal, fraternal e ministerial. Compreendo, ainda que prefira manter que a Igreja é comunhão, e que o exercício dessa comunhão é sinodal (1).
As razões da insistência do papa na Igreja sinodal são sobejamente conhecidas e têm que ver com a cristalização de pessoas, grupos, serviços e missões, agigantada no abuso de poder, de pressão sistémica e de violência.
A insistência na Igreja sinodal, e o prolongamento, quase insuportável, do Sínodo até 2024, representam um chamamento da Igreja a reaprender e a normalizar a revisão de vida, a crítica de si mesma, a receção do contributo do outro, o discernimento a partir do real e a decisão de priorizar, para o anúncio de Cristo.
A este respeito, encontrei, casualmente, num artigo de Salvatore Loiero (2) teólogo que não conheço, duas formulações que me chamaram a atenção, a dos ‘espaços intermediários entre todos os participantes’, e a outra da ‘moderação equilibrada de interesses diferentes’.
A primeira formulação contextualiza-se da seguinte forma:
“Este desafio exige estruturas sinodais e participativas a fim de que a Igreja, como um todo, se deixe interrogar. Essas modalidades não podem subverter o Evangelho, mas permitir ‘espaços intermediários entre todos os participantes’ e favorecer o consenso. Esse ‘entre-dois-espaços’ deveria ser considerado livre e isento do poder”.
Isto significa que o exercício sinodal precisa de um espaço preservado de qualquer tensão ou pressão, sobretudo da tensão entre liberdade/restrição, diálogo/silêncio, escuta/sujeição; da mesma maneira que precisa de um espaço preservado da outra tensão entre a maioria/minoria, entre progressistas/conservadores, democratas/autocratas, votos favoráveis/votos não favoráveis, vitórias/derrotas. Não é disso que se trata!
O papa e o Sínodo procuram um outro lugar, um espaço em branco, uma oportunidade, uma chance, de todos poderem dizer, revisitar, criticar, propor, sem o medo de ser rejeitado; e, ao mesmo tempo, de todos poderem escutar uma palavra nunca ouvida, receber uma realidade nunca vista; e de discernirem sem ter na manga uma intenção ou um programa prévio.
Esse outro lugar, ainda não vislumbrado, está mais próximo do lugar da orientação espiritual, da terapia de casal, do confessionário, do capítulo mensal ou do lava-pés, do que propriamente dos Conselhos episcopais, presbiterais, pastorais ou económicos. É um nível anterior à decisão.
A segunda formulação, a da ‘moderação equilibrada de interesses diferentes’, lembra-me o exercício de sinodalidade que qualquer um de nós, bispo, padres, coordenadores da catequese ou chefes de escuteiros, terá de fazer para levar avante o modo, a medida, o modelo, de estar na Igreja. A palavra moderar vem do latim ‘moderor’, que é dar um modo, dar uma medida, um modelo.
Para alguns, o papa Francisco com o sínodo deseja redistribuir poderes e alargar os centros de decisão, quase que retirando centraliza-se ao ministério ordenado. Não me parece que seja essa a questão. Parece-me que o papa deseja um espaço de escuta e de discernimento acessível e livre, e moderado com a medida da revelação de Cristo e da Tradição da Igreja.
Trata-se de um nível de discernimento, que requer a moderação, um nível prévio ao nível de decisão, que por sua vez ainda é prévio ao nível de atuação.
Desejamos que o Sínodo sobre a comunhão, à participação e a missão, encontre este novo espaço de escuta, liberdade e discernimento, para sermos livres no espaço de liberdade que é a Igreja!
1 A certa altura a querela entre a ‘sinodalidade’ e o ‘exercício sinodal’ fez lembrar uma outra do século XIII, entre universalistas e nominalistas. A insistência no primeiro termo foi estranha, mas hoje é totalmente perceptível.
2 Salvatore Loiero, “Synodalité et participation – possibles réalités ou réelles possibilités de l’Église?”, In REVUE LUMEN VITAE, 2021/4.