Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real
Dedicamos este mês de novembro à memória e a uma oração mais intensa pelos defuntos. Teremos poucas dúvidas de que passaremos por um purgatório, já que somos feitos de impureza, imperfeição, incoerência, divisão e inconstância. A queda da folha das árvores, a nudez da natureza, que não há muito tempo se exibia deslumbrante, formosa e viçosa de cor e beleza, vem-nos lembrar que tudo neste mundo é caduco e finito. A vida humana não escapa a esta regra. Contudo, este mês de novembro também nos lembra que, segundo a contemplação do mistério de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, a nossa vida é uma peregrinação para Deus, é um caminhar para a plenitude da vida em Deus.
Fomos acusados em tempos, se é que ainda não o somos, de promover a alienação da vida, ao anunciarmos que a vida boa, bela, feliz e perfeita ainda está para vir e será noutra vida, mas não para esta. Foi uma acusação injusta feita ao magistério da Igreja. Até se cunhou a propósito a expressão “a religião é o ópio do povo”, cuja autoria conhecemos. A religião seria uma “droga” para anestesiar e consolar no meio da desgraça, exploração, injustiça e opressão deste mundo, propondo que se aguente para já esta vida, para depois se poder ter uma melhor. Na verdade, a Igreja nunca defendeu isso e desde sempre lutou pela libertação e total realização do ser humano, e sempre ensinou que a vida boa e feliz já está a começar aqui, e deve começar aqui, e acontece a partir do momento que nos tornamos seguidores de Jesus Cristo e nos abrimos ao seu amor e à sua salvação, nos deixamos transformar pelo evangelho e vivemos a nossa condição de filhos de Deus. Claro que ainda não é uma vida plena, porque esta vida subsiste em “vasos de barro”, na tenda de um frágil corpo humano, mas para lá caminha, pela ação dos sacramentos que recebemos.
No entanto, quando, muitas vezes, falamos da vida eterna, e é eterna não só porque é infinita, mas porque é total e plena, a mais bela experiência de vida que poderemos fazer enquanto pessoas humanas e seres criados por Deus e para Deus, passamos a ideia um pouco pobre de que a vida eterna é “estar” num certo lugar ou numa certa condição, viver na morada de Deus, “estar no céu”. Sabemos que queremos dizer mais do que dizemos, mas pode passar a ideia de que a eternidade é imóvel, fria, estática, quase vida infinita “sem vida”. Alguém até sugeriu que seria a eternulidade, uma vida, pelos vistos, sem grande graça e sem grande dinamismo, uma nulidade eterna, simplesmente estar vivo a contemplar uma luz. As representações que fazemos de Deus, na sua maioria, parecem transmitir esta ideia: pintamos sempre Deus sentado num trono, a contemplar a imensidão. É óbvio que a nossa linguagem é sempre limitada e nunca é fácil falarmos ou doutrinarmos sobre o que não vimos nem sabemos, e falamos muito a partir do que sabemos ou imaginamos. E também é verdade que os antropomorfismos estão sempre à mão para especularmos sobre Deus e suas verdades, levando-nos a ter ideias erradas e imagens imperfeitas.
Se Deus é a vida, certamente que será sempre vida em ação e movimento, gerando sempre mais vida, uma sarça que arde eternamente e nos porá sempre a arder, será uma vida envolvida pela juventude, pelo espanto, pelo desejo, nas palavras de S. Agostinho, uma “insaciável saciedade”. Como escreve François Varillon, “se a eternidade não fosse, em si mesma, nascente que brota, cascata jorrante e frescura de amor, só nos poderia oferecer como participação uma duração monótona”. E o P. Yves de Montcheuil também escreve: “A verdadeira vida eterna do cristianismo não consiste em fixar a alma na contemplação passiva dum objeto, mesmo sendo o mais perfeito de todos. Se a perfeição de todo o espírito é o triunfo nele da caridade, e se Deus é a caridade subsistente, o acabamento do espírito é tornar-se participante desta atividade imanente de Deus”.
A vida eterna que esperamos, certamente diferente da que hoje vivemos, mas na continuidade da que hoje experimentamos, não deve ser pensada como um estado final ou uma vida finalizada, que já não tem mais nada para crescer ou para viver, estagnada, porque nada em nós é final. Usamos a palavra para indicar que a vida chegou à sua etapa final, mas nada em nós tem fim, carregamos sempre dentro de nós fome e sede, aspiração e insaciedade, mergulhados num desejo interminável, que só Deus pode preencher.
Assim escreve Paul Claudel: “E se o desejo tivesse que cessar com Deus, ah, enviá-lo-ia ao inferno”. S. Teresa de Lisieux deixou-nos também uma frase, antevendo que a eternidade não será uma frialdade eterna, mas uma inesgotável, ilimitada e dinâmica vida de amor, de união e comunhão: “Quero passar o meu céu a fazer bem na terra”.
A madre Teresa de Calcutá dizia que dormia pouco para se dedicar aos pobres, porque teria tempo depois para descansar na eternidade. Mas, se alguém pensa que vai descansar no céu, acho que nos vamos surpreender.