Intensa a experiência humana e eclesial vivida pelos Bispos portugueses, na semana passada, em Roma, nos oito dias da sua visita “ad limina Apostolorum”. Depois da anterior, em 1999, novos bispos foram nomeados e ordenados. Entre eles, D. Manuel Clemente, o nosso Bispo do Porto. Valia a pena pedir-lhe que partilhasse as suas impressões sobre esta forte experiência de comunhão apostólica com o Sucessor de Pedro e com os irmãos no episcopado. Uma entrevista para ser transmitida pela Rádio Vaticano e publicada pela Voz Portucalense, que oferecesse também a ocasião de traçar um primeiro esboço da imagem que da diocese vai tendo o seu Pastor, a oito meses do início da sua missão episcopal no Porto. Acolhida de bom grado a proposta, as declarações recolhidas exprimem bem a clareza de mente do professor que D. Manuel é desde há tantos anos e a sensibilidade e humanidade do Pastor que fala com entusiasmo da “nossa” diocese do Porto, da “realidade muito densa” que esta revela, do seu “laicado fortíssimo”, do “clero heróico”, do “potencial carismático” das religiosas, da atenção a reservar às famílias. Tudo visto e expresso com aquela perspectiva histórica, cultural, sociológica, mas também teológica, que lhe vem da formação académica pessoal, permitindo equacionar as questões de um modo ao mesmo tempo amplo e concreto. Dada a extensão da entrevista, publica-se hoje uma primeira parte, assegurando que a restante contém declarações igualmente interessantes, a não perder, na próxima semana. Por razões práticas, de falta de tempo, esta versão escrita é da responsabilidade do entrevistador, que manteve o tom coloquial das declarações à Rádio Vaticano. José M. Pacheco Gonçalves * P. Pacheco Gonçalves [P.G] – Ao concluir esta intensa semana de visita à Sede de Pedro e ao Santo Padre, quais são, senhor D. Manuel Clemente, as suas impressões e reflexões? D. Manuel Clemente [D.M.C]. – Em termos de “impressões”: excelentes! A começar pelas climatéricas: tivemos aqui um Outono romano brilhante, esplendoroso mesmo, e isso também ajudou com certeza a sentirmo-nos cá muito bem. Depois, pelo acolhimento que tivemos nos diversos locais onde nos dirigimos, onde conversámos e onde fomos passando. Também nas casas em que ficámos, com uma menção muito particular para o Colégio Português em Roma, que foi inexcedível na sua simpatia, no seu acolhimento. As “reflexões”, também assim em termos genéricos, vão no próprio sentido de uma “visita ad limina”, ou seja, de nos encontrarmos – nós, bispos de diversas dioceses (portuguesas, no caso) – com este centro da vida católica, onde as questões particulares são de algum modo alargadas nas questões gerais da Igreja, e por isso podemos também aferir aquilo que andamos a pensar e a fazer com aquelas que são as grandes linhas da Igreja universal, neste momento. Reconfigurar, redefinir a comunidade cristã P.G. – No encontro conclusivo, em conjunto, com o Santo Padre [sábado, 10 de Novembro], tiveram ocasião de ouvir a sua palavra de interpelação, encorajamento, exortação. Do discurso do Papa, o que é que mais ressalta? D.M.C. – Da parte do Papa Bento XVI há uma grande insistência – que não é, obviamente, desta visita só, mas desde o princípio do seu pontificado – naquilo a que nós poderíamos chamar o realismo cristológico e eclesiológico. Ou seja, na realidade-Jesus Cristo, como única realidade que explica a vida da Igreja, e depois na realidade da Igreja como manifestação de Jesus Cristo no mundo. E esta insistência do Papa, que nós já conhecemos desde a sua primeira Encíclica, para não falar do seu primeiro discurso, da sua primeira homilia, depois da eleição, também aqui apareceu. O que leva a uma outra questão, que é aquela que todos nós temos entre mãos, com certeza, nas nossas dioceses em Portugal, e na nossa do Porto em particular, que é a da reconfiguração, da redefinição da comunidade cristã. Ou seja, se a realidade fundamental que a Igreja tem para si, tem para apresentar, é Cristo, Cristo vivo. Se essa realidade de Cristo se manifesta naquilo que o apóstolo Paulo já chamava de “corpo de Cristo, que é a Igreja”, então como é que, em cada comunidade cristã, qualquer pessoa pode ter o contacto vivo com Cristo vivo. No discurso que nos fez, o Papa voltou a citar aquilo que diz também na sua primeira Encíclica, isto é, que “no princípio de qualquer caminho cristão, não há uma ideia, não há uma abstracção, mas há uma experiência, e a experiência é o encontro com Cristo vivo, através da Igreja, que é o Seu corpo. Ora bem: como é que nós, em cada comunidade cristã, podemos proporcionar tal experiência? O Papa volta a retomar este tema, e ainda bem que o retomou. Eu julgo que é este o grande problema, tanto pastoral como doutrinal. Tive ocasião, na visita particular que fiz como Bispo do Porto, com os senhores Bispos Auxiliares, ao Santo Padre, na passada quinta-feira [8 de Novembro], de também levar a conversa (e ele deixou-a levar, de bom grado) para este ponto da reconfiguração, da redefinição, da comunidade cristã. Porque nós sabemos que hoje em dia as mediações tradicionais da fé, que eram a família e a paróquia – mas uma paróquia muito definida, territorialmente aconchegada, diria mesmo – isto hoje há não é bem assim. As famílias, enfim, fazem o que podem, e muitas delas fazem muito, mas em muitos casos elas já não servem de mediação desta fé no Cristo vivo, que nelas se sinta presente. E nas nossas paróquias – também percorridas por gente das mais diversas proveniências, que hoje está e daqui a um ano já não está, porque mudou de sítio, porque mudou de profissão – também se põem problemas graves: como é que elas podem transmitir essa tal experiência de Cristo vivo que, como diz o Papa, está no fundamento de qualquer caminho de fé. Bem, este é um problema que nós temos entre mãos. Repito: é um problema pastoral, porque tem a ver com aquilo que nós fazemos, como é que nós organizamos os nossos esforços e as nossas tentativas. Mas também é um problema doutrinal, porque sem experiência comunitária, não há experiência do Deus de Jesus Cristo – um Deus uno e trino, que portanto só na comunidade se apanha. Diocese do Porto: realidade “muito densa” P.G. – Emergem em todas as suas considerações, a sua sensibilidade e preocupação de pastor, de bispo. Concretamente, desde Março passado, de Bispo do Porto. Um período de quase oito meses, ocupados antes de mais em tomar contacto, ouvir as pessoas, conhecer a realidade local. Passado este período, que “retrato” da diocese se vai delineando no seu espírito? E ainda: parece-lhe possível esboçar desde já algumas perspectivas de acção para a diocese, no seu conjunto? D.M.C. – Com certeza! Eu dizia, na minha apresentação à diocese do Porto, que a procuraria “conhecer, amar e servir”. Esse conhecimento, vou-o fazendo: dediquei-me, dedico-me a ele, quotidianamente. Lembro-me que a seguir à Páscoa e até ao Verão percorri uma a uma as 34 vigararias da diocese, no sentido de me reunir com os respectivos párocos, o que foi extremamente importante, quer para mim, quer – julgo eu – também para eles, porque nos conhecemos pessoalmente. Cada um deles disse o que era a sua paróquia, ou melhor dizendo as suas paróquias, que é o caso mais comum: como é que elas se caracterizam, quer sociologicamente, quer pastoralmente. Estes contactos foram depois complementados por contactos pessoais das mais diversas instâncias: pessoas que estão ligadas à vida social, como à vida universitária, à vida cultural e económica, da região do Porto, já não especificamente em termos de diocese. Depois, também o contacto com as pessoas que me procuraram e que eu mesmo vou encontrando (ando muito a pé pela cidade, e isso proporciona, de maneira inesperada, muitos encontros…). Tudo isso vai dando uma ideia. Além daquelas que são as minhas visitas habituais, semanais, às várias comunidades cristãs, por motivo do sacramento do Crisma ou por outros motivos. E então o que é que poderei dizer, para já, da diocese do Porto? Para já, que é uma realidade muito densa, muito densa. O que é que quero dizer com isto? Que não é linear. É muito compacta, de variadíssimas combinações. E tem um laicado fortíssimo. Eu reparo que são milhares as pessoas que na diocese do Porto, quer no que diz respeito à Palavra – concretamente ao serviço da catequese, quer no que diz respeito à liturgia – desde a música até ao serviço do altar, quer no que diz respeito à caridade – o que nós temos de obra social na diocese do Porto é imenso! – e também as conferências vicentinas. São milhares de pessoas que semanalmente praticam o cristianismo e integram a actividade da Igreja nestes três factores fundamentais da Palavra, da Liturgia e da Caridade. Portanto, é uma realidade – repito o adjectivo – extraordinariamente densa. É uma realidade que nalguns casos já implica e manifesta uma formação específica muito grande. Reparo isso particularmente no campo da liturgia, do canto e da música. É uma coisa espantosa! Eu não sei se encontraremos por esta nossa Europa fora o que encontramos na diocese do Porto, certamente fruto de muito trabalho, ao longo de décadas, na formação destes agentes pastorais – chamemos-lhes assim – no campo da liturgia e da música sacra; mas também nos outros campos, na catequese, com certeza. Muita gente com alguma formação teológica, às vezes até com uma formação teológica razoável, mesmo entre o laicado, quer em Teologia, quer em Ciências Religiosas. É uma diocese que, em termos de organizações, de associações laicais, se contam pelas muitíssimas dezenas, aos diversos níveis, quer locais, quer diocesanos, quer de movimentos e associações, que extravasam a vida da diocese, mas estão lá presentes. “Heróico”, o clero do Porto É uma diocese que tem um clero que eu chamo heróico… porque é escasso para as necessidades. Já disse que o mais vulgar é que os párocos sejam párocos de mais do que uma paróquia, às vezes grandes paróquias. Em muitos casos já com uma idade que ultrapassa os 70 anos e até os 80 (temos na diocese do Porto párocos na casa dos 90!). É por isso que eu sublinho este adjectivo “heróico”. É um clero que desenvolve, com uma generosidade imensa, uma actividade de acompanhamento básico e sacramental da vida do povo de Deus. Mas que tem que ser necessariamente mais ajudado, mais apoiado, e – enfim – com a ajuda de Deus, especialmente, mais completado, em número, nos tempos que aí vêm. Portanto, é uma diocese que tem todas estas realidades em si, que eu intitulei como “densa”, mas que tem muitas outras linhas de envolvimento. No que diz respeito ao clero – quer em termos de presbíteros, de sacerdotes, quer em termos de diaconado permanente (agora renovou-se a respectiva formação – tem que ser muito, muito reforçado, porque as perspectivas quantitativas não são muito animadoras para os próximos anos, como sabemos. Nós temos neste momento uns 24 ou 25 seminaristas, no Seminário Maior, para os próximos sete anos. Ora nos próximos sete anos, atendendo à idade que tem o clero, possivelmente deixarão de poder trabalhar uns 30, 40, 50?… – não sabemos. O que é uma grande desproporção. Temos a ajuda, preciosa, do clero religioso, mas temos que trabalhar muito nisso. Como também em relação às vocações religiosas, porque a vida religiosa feminina, em concreto na nossa diocese, também tem este grande desafio do seu rejuvenescimento. Já tenho tido várias entrevistas com superioras religiosas que me vêm dizer que bem gostariam de desenvolver mais trabalho, mas, pelo contrário, têm é que fechar casas, comunidades, porque já não têm religiosas em número suficiente. Ora esta componente da vida religiosa é fundamental para uma diocese, porque elas têm um potencial carismático sem o qual a Igreja não viveria bem. Portanto, muito trabalho! Nas famílias, no apoio à famílias. Nós temos também, na diocese do Porto, aquilo que eu julgo que não tem muita comparação fora do Porto, com todo o respeito pelo que se faz noutros sítios: temos cerca de 40 centros diocesanos de preparação para o matrimónio, na diocese, espalhados por várias vigararias, e que fazem um trabalho, muito muito consistente, ao longo do ano, na formação dos novos casais. É preciso que seja depois complementado no acompanhamento dos casais já constituídos das famílias, quer em relação à sua própria consistência – a manutenção da vida conjugal, quer em relação à educação dos filhos, quer em relação a um acompanhamento dos familiares idosos, que é hoje uma problemática imensa, que também precisa de ser muito apoiada, essa realidade familiar. Portanto, trabalho não falta, graças a Deus… “Importantíssimo” o papel das Conferências Episcopais P.G. – A visita “ad limina” realiza-se a nível da Conferência Episcopal, mas é significativo que não falte o encontro pessoal de cada Bispo residencial (e Auxiliares) com o Santo Padre. A história da Igreja mostra a importância de figuras de bispos que deixaram a sua marca na vida das suas comunidades locais, influência que irradiava na Igreja universal. Há quem pense que se corre o risco de as Conferências episcopais chamarem a si certo dirigismo, em detrimento da responsabilidade pessoal do Bispo na sua Igreja local. Neste momento de profunda comunhão eclesial com os irmãos no episcopado português e com o Papa (e seus directos colaboradores), como vê, como “sente” esta questão? D.M.C. – Há uma razão, digamos assim, eclesiológica, no que respeita à doutrina da Igreja sobre si própria, como Igreja, e outra que nós poderíamos chamar pessoal e sacramental. No que diz respeito à parte eclesiológica é preciso ver que, segundo a eclesiologia católica como foi formulada no Concílio Vaticano II e com a mais antiga referência, a Igreja existe em qualquer Igreja particular, local, onde haja um apóstolo, que lhe dê também por aí essa continuidade com a Igreja de Jesus Cristo, com a Igreja dos apóstolos, enfim, com os outros ministros sagrados, com tudo aquilo que faz parte da vida da Igreja, nos seus diversos aspectos litúrgico-sacramentais, de anúncio do Evangelho, de prática da caridade. Onde estes elementos existem, existe uma Igreja local, e nessa Igreja local ou particular existe toda a Igreja de Cristo. Agora, esta Igreja local está ligada, por essa mesma apostolicidade, através do seu Bispo, ao conjunto dos Bispos do mundo, sucessores dos apóstolos, e àquele que é o sucessor de Pedro, e que Jesus fez, enfim, o cimento da unidade entre os seus irmãos, como todos nós conhecemos a frase de Jesus ao mesmo Pedro: “Confirma os teus irmãos, na fé”. E por isso também existe a dimensão universal da Igreja, à volta do Sucessor de Pedro. Uma coisa não se opõe à outra, mas estas são as duas instâncias, para falar assim, em que a Igreja existe. E por isso qualquer católico sabe que, quando vai à Missa, ouve o presidente pedir pela Igreja, em união com o seu Bispo e com o Papa. Hoje as pessoas são “trans-diocesanas” (e “trans-paroquianas”) P.G. – Qual é então o lugar das Conferências Episcopais? D.M.C. – Entretanto acontecem estas realidades nacionais, políticas, étnicas, culturais e por aí fora, que são as nações, que são os países, ou as regiões grandes dentro dos países. E é natural que os Bispos das dioceses presentes nessas regiões ou nesses países também se encontrem para tratarem em comum das coisas que a todos dizem respeito. Tanto mais que hoje em dia a circulação das pessoas é muito grande, muito mais do que foi no passado. Uma Igreja como é a nossa em Portugal, seja concretamente a Igreja do Porto, ou a Igreja de Lisboa, ou por aí fora, as pessoas são bastante “trans-diocesanas, como também são bastante “trans-paroquiais”. Também por aí é importante que nós tenhamos, enfim, um entendimento comum das coisas que comuns são. E por isso as Conferências Episcopais têm um papel importantísssimo. Enfim, eu, nestes oito anos que levo de bispo, teria sido muito diferente o que eu fiz e o que eu pensei se não tivesse reunido quatro vezes por ano com os meus colegas bispos de todo o país, debruçado em conjunto sobre problemas que nos tocam a todos. E por isso as Conferências Episcopais são organismos de uma enorme importância para que esta acção que cada Bispo faz na sua diocese seja uma acção conjugado com o que fazem os seus irmãos das outras Igrejas – eu já nem digo “vizinhas”, porque hoje são quase interpenetradas pela própria população que se mexe de um lado para o outro, constantemente, e por notícias que são comuns e desafios que comuns também são. Depois, há também outro aspecto, a que eu chamei sacramental e pessoal. É que, quer no que diz respeito ao Sucessor de Pedro, quer no que diz respeito aos Bispos em cada diocese, nós entendemos, na tradição católica, que se pode falar de um verdadeiro sacramento: o sacramento da Ordem, a sucessão apostólica. E não é por acaso que Jesus não entrega este serviço de unidade e de comunhão, que é o dos apóstolos, não o entrega genericamente, mas sim àqueles homens nomeados um por um (aliás são os únicos que são nomeados, em termos de função, nos Evangelhos!). Depois, enfim, é em cada Bispo que esta missão “apostólica” se concretiza, naquela pessoa. Portanto, a Igreja não tem servidores assim abstractos, mas realizados, concretizados, por isso, sacramentalmente, pessoalmente, nesta ou naquela pessoa, o que melhor que ela possa e saiba, mas sobretudo com a mesma graça de Deus.