Obstáculos à obtenção do título de residência marcam a vida de filhos de imigrantes nascidos em Portugal
Portugal, que se orgulha de ser um dos países que melhor integra os estrangeiros, continua a levantar obstáculos à atribuição de documentos a quem nasce no país, especialmente quando se tratam de filhos de imigrantes.
A Agência ECCLESIA falou com três pessoas que há vários anos tentam obter o título de residência no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), documento essencial para obter trabalho legalmente.
A maior angústia sentida pelos três entrevistados, que solicitaram o anonimato, é a impossibilidade de conseguir emprego, inviabilizando assim as suas perspectivas de futuro.
Descendente de cabo-verdianos, Jacinta (nome fictício) nasceu em Lisboa há 24 anos e já conseguiu quase todos os papéis que o SEF lhe exigiu para adquirir o título de residência, excepto um, que jamais vai obter: o registo criminal de Cabo Verde, país que nunca visitou.
À semelhança de Jacinta, cujos três irmãos estão legalizados, Sílvia, de 28 anos, igualmente nascida na capital, não percebe como é que os seus pais, quatro filhos e três meios-irmãos já têm documentação portuguesa enquanto ela continua sem sequer ter acesso à autorização de residência.
A morosidade na obtenção deste documento ocorre não só quando é solicitado pela primeira vez mas também aquando da renovação.
Não é raro que alguns dos certificados exigidos percam a validade durante o período que o SEF demora a analisar o processo, obrigando o requerente a voltar a pedi-los e a apresentá-los.
Carlos, 25 anos, também nascido em Lisboa, desistiu durante muito tempo de obter o título de residência: “Metem um gajo a andar para cima e para baixo, vai com um papel e dizem que tem de vir com outro”.
O desabafo de Sílvia é semelhante: “Quando vou lá falta um papel. Levo o papel, falta outro. E é assim desde 1999”. Um dos mais recentes certificados pretendidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foi uma declaração em como frequentou a escola em Portugal.
Mais difícil, senão impossível, é comprovar que tem meios para sustentar os filhos: “Como é que eu consigo cuidar deles se não tenho documentos e se não trabalho? Eu digo que o pai é que me ajuda e que recebo o abono. É muito pouco para cuidar de quatro crianças, dizem eles. Como é que eu vou fazer?”.
A vontade de trabalhar e a impossibilidade de conseguir emprego é o motivo que origina mais desespero, como explica Jacinta: “É isso que me dá raiva: sem documentos, como é que arranjo trabalho? Sem trabalho, como é que posso ter dinheiro? E sem dinheiro como é que poderei alguma vez mudar de casa?”.
Mãe solteira, a quem o Estado retirou o filho e entregou para adopção, Jacinta mora num cubículo de quatro metros quadrados onde entra a chuva e que pouco mais tem do que um colchão. A casa de banho é a do vizinho e o chuveiro é o de uma amiga.
Trabalhou durante dois anos num restaurante e mais três numa loja de artigos chineses, sempre sem seguro e sem descontar para a Segurança Social.
Enquanto que Jacinta sonha com um lugar decente para habitar e receber os amigos, Sílvia quer dar de comer aos filhos, pelo que recorreu aos serviços de um advogado particular, última esperança – dispendiosa – para obter o título de residência.
A alternativa também se impôs a Carlos, que primeiro tem de conseguir os “mil e tal euros” necessários para contratar um causídico: “Eu arranjo, tenho de arranjar dinheiro para tratar dos documentos”.
O passaporte cabo-verdiano, que os três entrevistados possuem, é insuficiente para encontrar trabalho, pelo que a necessidade de sobrevivência motiva estratégias à margem da lei.
“Trabalhava numa escola, com os documentos de outra pessoa, que se não for assim não me safo”, refere Sílvia, que neste momento é empregada doméstica “sem contrato, sem descontos para a Caixa, sem nada.”
Os esquemas ilegais podem sair caro: “Tinha um emprego de um mês, a fazer férias. A responsável gostou do meu serviço e deixou-me lá. Quando apareceu a Inspecção do Trabalho para ver se as pessoas têm os documentos em dia e essas coisas, a empresa apanhou uma multa por causa disso”, conta Sílvia.
Colocados diante de situações para as quais não vislumbram soluções, muitos jovens vêem-se obrigados a criar estruturas marginais por estarem sem documentos”, assinala o director da Obra Católica das Migrações, Frei Francisco Sales.
“Às vezes uma pessoa faz o que não deve porque não tem saída. Como no meu caso: tenho o pai dos meus filhos que me ajuda mas, muitas vezes, a cabeça vai com o que não deve, porque não tem saída mesmo”, afirma Sílvia.
A tentação de reincidir em expedientes ilegais não a larga: “Muitas vezes penso nisso outra vez. Só quando me recordo que tenho quatro anos e meio de pena suspensa e quatro filhos é que isso me volta a meter para trás, para aguentar, para esperar e ver o que é que vai dar”.
Os entraves à obtenção do título de residência parecem acentuar-se quando os requerentes já estiveram presos, como também aconteceu com Carlos, a quem “de vez em quando aparece um biscate, de dois, três dias”.
A falta da autorização para morar em Portugal também dificulta a saída para o estrangeiro: Jacinta gostava de conhecer o país onde os pais nasceram e Sílvia diz que podia estar na Holanda ou em França, com a família.
“Às vezes fico parva com muitas coisas. Não sei, não posso fazer nada, eles é que mandam”, diz Sílvia, que acrescenta: “A minha vida está atrasada por causa deste problema.”
Semana Nacional das Migrações
A Igreja Católica portuguesa celebra até 15 de Agosto a 38.ª Semana Nacional de Migrações, dedicada ao tema “Com Francisco e Jacinta acolher Cristo nos Migrantes e Refugiados Menores”.
O título inspira-se no décimo aniversário da beatificação das duas crianças a quem Maria, mãe de Jesus, apareceu por diversas vezes em 1917, e no teor da mensagem de Bento XVI para a edição de 2010 do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, alusiva aos migrantes e refugiados menores.
A Comissão Episcopal da Mobilidade Humana (CEMH) lembra que muitos filhos de imigrantes nascidos em Portugal estão “votados à marginalidade, sem documentos nem registo de existência”.
“A estes – refere a mensagem para a Semana das Migrações – é preciso fazer justiça dando-lhes uma identidade e nacionalidade, pois não conhecem outro país senão aquele que os viu nascer e que, ao excluí-los está a contribuir para que surjam organizações juvenis marginais, muitas vezes criminosas e identificadas com determinada origem étnica, que são, na verdade, uma forma de defesa contra um meio social que lhes é hostil”.
No dia 15, solenidade da Assunção da Virgem Maria, as comunidades eclesiais evocam a “Jornada de Solidariedade para com a Pastoral da Mobilidade Humana”, com as ofertas dos fiéis que participam nas missas a reverterem para a CEMH.