Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na Missa do Dia de Natal
Em dia de Natal, caríssimos irmãos, podemos e devemos alcançar o nosso próprio “dia”, com a claridade plena e a intensidade única que assim mesmo desponta.
Os que lá foram, ao presépio de Belém, como acorreram os pastores, chamados pelos anjos, quando «foram apressadamente e encontraram Maria, José e o menino deitado na manjedoura» (Lc 2, 16); os que vieram a seguir, como os magos, guiados por uma estrela, que «entrando em casa, viram o menino, com Maria, sua mãe» (Mt 2, 11); o velho Simeão que, «impelido pelo Espírito, veio ao templo e, quando os pais trouxeram o menino Jesus, a fim de cumprirem o que ordenava a Lei a seu respeito, tomou nos braços o menino e bendisse a Deus» (Lc 2, 27-28); logo seguido por Ana, também de idade avançada, «que não se afastava do templo» e igualmente «se pôs a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém» (Lc 2, 38); os que depois, com Maria e José, viram crescer Jesus, «em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52)… Todos e cada um deles teve em tal encontro o seu dia pleno, mais ou menos conscientemente esperado, certamente assim acontecido.
Facto especialmente retomado no Quarto Evangelho, onde cada verdadeiro encontro com Jesus marca um dia. Os primeiros discípulos «ficaram com Ele nesse dia» (Jo 1, 39), jamais esquecido nem ultrapassado. O encontro com a samaritana, em que Jesus se revela como Cristo, dá-se «por volta do meio-dia» (Jo 4, 6), no máximo esplendor solar.
Deixai-me adiantar e até dizer por todos os que aqui nos encontramos, que algo de semelhante certamente aconteceu connosco, que celebramos o Natal de Jesus. Também nós tivemos anjos, estrelas e sobretudo o Espírito que nos trouxe a Cristo, como, agora ressuscitado, plenifica a sua presença no mundo, em múltiplos sinais de palavra, gesto e encontro. Dizer anjos é dizer mensageiros, dizer estrela é dizer luz, dizer Espírito é reconhecer que só Deus nos atrai a Deus, que Se manifesta em Jesus Cristo. Como ele mesmo disse: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair; e Eu hei de ressuscita-lo no último dia» (Jo 6, 44). Sim, no último dia em que já começamos a amanhecer, cumprindo-se finalmente tudo o que se havia de cumprir. Ouvimo-lo há pouco no admirável trecho da Epístola aos Hebreus, onde quase se enuncia toda a teologia cristã, propriamente dita: «Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo».
Agradeçamos, irmãos, agradeçamos hoje e sempre, a quem para nós foi e continua a ser anjo e estrela, que nos chamam ao encontro de Jesus e nos iluminam o caminho e o local. Agradeçamos a Deus Pai, que nos envolve no Amor com que ama o Filho – e o Filho plenamente Lhe retribui, numa única Vida que assim mesmo circula, se expande e nos inclui a nós.
“A nós”, repito e deixai-me insistir. O Deus comunhão revela-se como comunhão – Jesus e o Pai na união do Espírito –, celebra-se em comunhão e vive-se em comunhão. Importa relembrar a advertência final do prólogo do Quarto Evangelho, que acabámos de escutar: «A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer».
Desistamos de vez de imaginar a Deus, pois nunca sairíamos de nós próprios, das nossas ilusões ou dos nossos fantasmas. Com grande desperdício de tempo e com grande prejuízo dos outros. O Natal de Cristo dá-nos o «Emanuel, que quer dizer “Deus connosco”» (Mt 1, 23). Nasce de Maria e é adotado por José; logo reúne céu e terra, anjos e pastores; gente de perto e gente de longe, como os magos. Cresce em Nazaré, entre familiares e vizinhos; e vai à sinagoga cada sábado, «segundo o seu costume» (Lc 4, 16). Ensina-nos a rezar ao Pai, que é precisamente “nosso” e não só de cada um, como o pão e o perdão são para todos e de todos para todos. E a própria oração comunitária, da família à Igreja, é momento por excelência de sentirmos a sua presença, assim prometida: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt 18, 20).
Sim, irmãos, como ouvimos: «O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós». Mantenhamos o sentimento, a convicção e a prática neste “dia” definitivo. Tão eterno como «o eterno nascido de ainda agora» (Padre Manuel Bernardes) no constante presépio do mundo, onde não estaremos sós à sua volta. Teremos nas nossas casas e nas nossas ruas, nas nossas ocupações e visitas, nas nossas comunidades e grupos, ocasiões constantes de Natal a sério. E não apenas com o que naturalmente nos agrada e afinal aprisiona. Mas com o mais carente de companhia e apoio, com o mais diverso de proveniência ou condição, mesmo com o mais inesperado ou incómodo. Como Deus se encontrou connosco em Cristo, do presépio à cruz, e só por este caminho estreito se alargou em Páscoa.
Assim permaneçamos uns com os outros e uns para os outros. Não esqueçamos outra advertência, como é feita na 1ª Carta de João, quase ecoando o prólogo do seu Evangelho: «Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1 Jo 4, 7-8).
Conhece e experiencia Deus quem sai de si para bem dos outros, como Jesus veio ao nosso encontro, para bem de todos. Aí encontramos o nosso “dia” de Natal, no nascimento recíproco que com Cristo nos oferece ao mundo. E o segredo, que é também a essência divina, é como revelou a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16).
Na verdade, irmãos caríssimos, este dia é santo de mais para o reduzirmos a exterioridades ou consumos. Sejamos Natal como Deus nasceu no mundo. Façamos Natal como o mundo O espera.
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2017
+ Manuel, Cardeal-Patriarca