5ª catequese Quaresmal de D. José Policarpo O cristão é um discípulo de Cristo 1. O “kerigma pascal”, enquanto anúncio da ressurreição, reaviva no coração dos cristãos a sua qualidade de discípulos, situação já conhecida entre os crentes de Israel, mas que ganha um sentido novo no caso de Jesus Cristo. Mesmo para aqueles que tinham seguido Jesus, antes da Sua morte, ao qual chamavam Mestre, não é a mesma coisa ser discípulo do Ressuscitado. Seguir Jesus, na Sua Páscoa é abrir-se ao dinamismo do Espírito, é aceitar ser membro do novo Povo de Deus, é aceitar ter como meta neste mundo a santidade e como etapa definitiva a Casa do Pai, na Jerusalém Celeste. Acreditar em Jesus Cristo é aceitar segui-l’O, ao ritmo do Espírito, que transformará as nossas vidas com a exigência da caridade. A existência crente aparece-nos como um caminho a percorrer, seguindo Alguém, que nos introduzirá nos segredos da vida nova do Reino de Deus. A fé é uma confiança sem limites nesse Alguém. Passa para segundo lugar a importância de conhecer as etapas do caminho e a definição clara do destino a atingir: basta-nos segui-l’O, aceitando que o Seu caminho seja o nosso caminho e o Seu destino seja o nosso destino. O cristianismo é, acima de tudo, uma fidelidade pessoal a Jesus Cristo, a Quem confiamos o destino da nossa vida. Ser discípulo é seguir o Mestre 2. Ser discípulo é seguir voluntariamente alguém que se aceita como mestre, identificando-se com a sua visão da vida. O mestre introduz o discípulo numa “sabedoria”, numa visão da vida. O conceito não é muito comum no Antigo Testamento e aparece somente no judaísmo tardio. Isto deve-se ao lugar central da Palavra de Deus como fonte da sabedoria. Nenhum mestre humano, por mais sábio que seja, pode iniciar o crente nos caminhos da vida. Só Deus, com a Sua Palavra, o pode fazer. Os Profetas descrevem os tempos messiânicos como um tempo em que os crentes serão “discípulos de Deus”: “Todos os teus filhos serão discípulos de Yahwé” (Is. 54,13). Por sua vez Jeremias descreve assim a “nova aliança” que Deus celebrará com o Seu Povo: “A Aliança que farei com Israel depois desses dias é a seguinte – oráculo de Yahwé: colocarei a minha Lei no seu peito e escrevê-la-ei no seu coração; serei o seu Deus e eles serão o Meu Povo. Ninguém mais precisará de ensinar o seu próximo… porque todos, grandes e pequenos Me conhecerão” (Jer. 31, 33-34). Ao seu Servo, figura do Messias e modelo para todo o Povo de Israel, Deus deu a capacidade de falar como discípulo e ouvidos de discípulo para escutar a palavra do Senhor (cf. Is. 50,4-5). A certeza de que Deus é o único Mestre está patente na oração de Israel: “Senhor, faz-me entender o caminho dos Teus preceitos e eu meditarei sobre as Tuas maravilhas” (Sl. 119,27). Ser discípulo de Jesus é aceitá-l’O como Mestre 3. Os discípulos de Jesus seguem-n’O como Mestre; é assim que O tratam habitualmente. E Jesus assume-se como tal: “Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou” (Jo.13,13). Esta aceitação, por parte de Jesus, da Sua qualidade de Mestre, tem a ver com a Sua consciência de enviado do Pai. Ele não contradiz o ensinamento dos Profetas, segundo o qual só Deus é o nosso Mestre e só a sua Palavra é fonte de sabedoria. O seu ensinamento enraíza no que Ele aprendeu do Pai (cf. Jo.8,28). Por isso as Suas Palavras “são espírito e vida” (Jo. 6,63). Como Mestre, Jesus destaca-se dos “doutores da Lei”, mestres de Israel. De facto, depois do regresso do exílio, é dado grande relevo ao ensinamento da Palavra de Deus e aqueles que a ensinam são chamados “doutores da Lei”. Mas bem depressa extravasam do ensinamento da Palavra de Deus para os seus próprios ensinamentos. Tinham-se tornado uma instituição prestigiada. O próprio Paulo reconhece ter sido discípulo de Gamaliel (cf. Act. 22,3). Jesus aconselha os discípulos a não chamarem, a ninguém, Mestre, porque o verdadeiro Mestre é um só, Deus, e denuncia a hipocrisia dos doutores da Lei, que não testemunham com a vida aquilo que ensinam pela palavra: “os escribas e os fariseus ocupam a cátedra de Moisés; fazei e observai tudo o que eles dizem, mas não vos reguleis pelas suas acções, porque dizem e não fazem” (Mt. 23,2-3), e denuncia veemente essa hipocrisia (cf. Mt. 23,13ss). Ao assumir-se como Mestre, Jesus sabe que o Seu ensinamento é o de Deus, a Palavra que escutou de Seu Pai e, aliando a Sua missão de Mestre à do Servo de Yahwé, Jesus é profundamente coerente, na Sua vida, com aquilo que ensina, aceitando a expressão mais radical dessa coerência, que foi a Sua morte. “Se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Eu dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo. 13,14). Ser discípulo de Cristo significa, não apenas escutar os Seus ensinamentos, mas imitar a sua coerência de vida. O Senhor foi Mestre pela Palavra e pelo exemplo. O discípulo segue o Mestre 4. Para Jesus, ser seu discípulo supõe segui-l’O, andar com Ele, partilhar a Sua vida, identificar-se com Ele em tudo. O discípulo não se deixa atrair apenas pela beleza de uma doutrina, mas pela pessoa de Jesus. O Evangelista São Marcos, referindo-se à vocação dos doze Apóstolos diz que Jesus “instituiu doze para andarem com Ele” (Mc. 3,14). O discípulo supõe uma comunhão de vida. Cristo escolhe os seus próprios discípulos. Aos que já O seguiam, Jesus lembra: “Não fostes vós que Me escolhestes, fui Eu que vos escolhi…” (Jo.15,16). Essa escolha concretiza-se num convite, tantas vezes repetido: tu vem e segue-Me (cf. Mc. 1,17-20; Jo. 1,38-50). É um mistério insondável o critério com que Jesus escolhe os seus discípulos e os convida a seguirem-n’O. O segredo está, como em tudo na vida de Jesus, na sua relação com o Pai. O Senhor chama aqueles que o Pai atraiu: “Ninguém vem a Mim se o Pai, que Me enviou, não o atrair” (Jo. 6,44). Para Jesus isso parece claro: os seus discípulos são aqueles que o Pai lhe dá. É vontade do Pai que Jesus partilhe com eles a vida e lhes seja fiel nesse dom da vida. Referindo-se a eles como as Suas ovelhas, Jesus diz: “dar-lhes-ei a vida eterna; elas não perecerão e ninguém as arrancará da minha mão. O Pai que m’as deu é maior que todos e ninguém pode arrancar nada da mão do Pai” (Jo. 10,28-29). A Santíssima Trindade aparece sempre envolvida na realização terrena da missão salvífica de Jesus. Porque a vontade do Pai é que Jesus comunique aos discípulos a vida, seguir Jesus é receber d’Ele a vida, identificar-Se com Ele, imitá-l’O na radicalidade da Sua fidelidade. Reside aí a exigência do discipulado, que Jesus não esconde quando chama: “chamando a multidão ao mesmo tempo que os seus discípulos, disse-lhes:«Se alguém Me quiser seguir, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” (Mc. 8,34). O discípulo partilha o destino do Mestre: além de carregar com a Sua cruz, deve beber o mesmo cálice (Mc. 10,38) e receber o Reino (cf. Mt. 19,28ss). Entre Jesus e os discípulos gera-se, progressivamente, uma comunhão de vida, que dá à relação entre o Mestre e o discípulo uma dimensão de eternidade. Todos os cristãos são discípulos 5. Os Actos dos Apóstolos dão o título de discípulos a todos os cristãos, mesmo àqueles que não conheceram Jesus na Sua vida terrena (cf. Act. 6,1ss; 9,10-26). A fé em Cristo ressuscitado é concebida como resposta a um chamamento. Os próprios discípulos da primeira hora, cuja decisão de seguir Jesus foi sujeita à prova da paixão, fizeram a experiência da diferença de serem, agora, discípulos do Ressuscitado. A fonte do chamamento continua a ser a mesma: aqueles que o Pai atrai. Mas o Espírito Santo, aquele que continua a chamar em nome d’Aquele que O envia, tem agora a iniciativa do chamamento e é a força que permitirá ao discípulo seguir o seu Mestre. E como Ele é o Espírito de amor, ser discípulo é agora aprender a amar, unir-se a Cristo e com Ele mergulhar na voragem do amor trinitário. Ser discípulo, depois da Páscoa, garante todas as dimensões do discipulado na vida terrena de Jesus: * Seguir a Cristo como Mestre. Além daquele ensinamento interior com que Ele, através do Seu Espírito, ilumina o coração dos crentes, a Sua Palavra, viva no Evangelho e na Igreja, é a única fonte de sabedoria. Não se é discípulo sem amor ao Evangelho. Ele é, antes de mais, a Palavra de Jesus compreendida à luz da Páscoa. Nela brilha sempre a luz da ressurreição. Mas é também a compreensão dessa Palavra pela Igreja, que a medita e dela vive. A sabedoria do Evangelho descobre-se em Igreja; ninguém é discípulo se não escuta a Igreja. Aqui reside, talvez, o aspecto mais exigente para quem quer, hoje, seguir Jesus como Mestre. É que, por vontade d’Ele, a Igreja identifica-se com Ele, é o Seu corpo e o seu sacramento. Ela fala em nome d’Ele, tornando viva e actual a Sua Palavra. Ninguém tem Jesus como Mestre, se não escuta como Mestre da fé a Igreja sua Mãe. A aceitação do Magistério da Igreja é, hoje, uma manifestação exigente da fidelidade dos cristãos como discípulos de Jesus ressuscitado. * Identificar-se com Cristo. Isso só se tornou verdadeiramente possível depois da Páscoa. É aí que nascemos para uma vida nova, em que o dom da própria vida se torna possível, com a força do Espírito Santo. Esta identificação com Cristo é o caminho da santidade, que torna a Igreja a “casa da comunhão”, o Povo do Senhor, o fermento do amor que há-de lentamente, transformar toda a humanidade. Há aspectos chave nesta identificação com Cristo: a missão, em que somos enviados a anunciar o Evangelho do Reino, como Ele próprio anunciou; viver do amor, pois é aí que nos reconhecerão como Seus discípulos; o louvor de Deus, Trindade Santíssima, como o Filho glorifica o Pai. A Liturgia da Igreja é uma expressão essencial da nossa situação de discípulos. Identificamo-nos com Cristo, no louvor de Deus. Se a Igreja for um povo de discípulos, ela será ensinada por Deus, será experiência de comunhão no amor, dará a Deus a glória que Ele merece e será continuamente enviada a anunciar a boa-nova da salvação. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca