Especialista em cuidados paliativos e em luto, e enfermeiro na Casa de saúde da Idanha, lamenta distorções sobre cuidados paliativos que persistem na sociedade e atrasam desenvolvimento médico na área
Lisboa, 30 out 2024 (Ecclesia) – Ricardo Fernandes, enfermeiro especialista em saúde mental e psiquiatria, a trabalhar em cuidados paliativos e na área do luto, explica haver “processos de perda muito difíceis” e afirma ser preciso “normalizar vivências de perda e de luto”.
“Eu costumo dizer que há dores que são grandes demais para nos chegarem inteiras e, portanto, chegam-nos a vários tempos, ao longo de toda uma vida, se calhar. E o que é importante é perceber como é que a pessoa tolera esta dor e como é que a pessoa vai integrando ao longo do tempo que tem – que pode não fixar-se em seis meses ou um ano após a perda”, explica à Agência ECCLESIA.
Enfermeiro há 16 anos, a conciliar a docência no Instituto Politécnico de Setúbal há 10, Ricardo Fernandes, tendo passado pela área intensiva e cedo manifestado interesse em cuidados paliativos, percebeu que a “perda estava sempre presente”.
“Fui percebendo que a perda em cuidados paliativos estava lá sempre, todos os dias, não necessariamente a perda concreta e real de alguém, mas perdas funcionais associadas à progressão da doença, perdas de expectativas, perdas de esperança também. E havia muita necessidade de amparar esta perda e de ajudar o outro a integrá-la no seu dia-a-dia, no seu percurso – não só a própria pessoa que experimenta a progressão natural da doença, mas também os seus familiares que vão antecipando esta perda”, explicita.Cuidados Saúde
O especialista fala em “distorções” sobre cuidados paliativos – que se destinam a quem está a morrer e que a formação necessária se resume a empatia e humanismo.
“A sociedade acredita que cuidados paliativos destinam-se a pessoas que estão a morrer, mas é preciso dizer que os cuidados são para que as pessoas que estão a viver e com vontade de viver”, sublinha.
Ricardo diz que a morte “é rápida” mas até esse momento acontecer “há muito para fazer e viver”: “Os avanços tecnológicos e a medicina foram esquecendo que morríamos e por isso há um desinvestimento nos cuidados paliativos, ligados a um estigma; são necessários espaços onde se possa falar sobre isto, sobre a vulnerabilidade, sobre o sofrimento”.
“Em cuidados paliativos parece que é apenas preciso uma vocação e empatia; é preciso muito conhecimento técnico, teórico, científico, também para reconhecer como é que este sofrimento pode ser aliviado, que tipo de intervenções farmacológicas e não farmacológicas aplicar, como é que a equipa multidisciplinar se tem que organizar e se tem que construir e reconstruir para dar resposta a estas pessoas, porque não o fazemos sozinhos”, explica o enfermeiro a trabalhar nesta área há 16 anos, na Casa de Saúde da Idanha, das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus.
A equipa multidisciplinar desenvolve também a consulta do luto, destinada a públicos distintos, onde a abordagem pode ser de “um luto antecipatório ou preparatório” quer tenham sido pacientes e familiares de pessoas assistidas na unidade ou que precisem de acompanhamento e o procurem, onde abordagens sobre a promoção da esperança dos pequenos gestos, “o facilitar a presença de familiares junto da pessoa não olhando a horários”, a promoção da espiritualidade, “paliar sintomas adequadamente para que não haja sofrimento do próprio e não se perceba sofrimento no familiar”, ou simplesmente “apanhar sol”.
“Nós não notamos o quão bom é apanhar o sol na cara, não é? Porque estamos distraídos e envolvidos nas rotinas, nas questões que já temos asseguradas. Eu consigo apanhar o sol na cara todos os dias, mas para quem esteja privado e isso pode ser uma grande conquista”, explica.
O espaço para “todas as perguntas” que, indica, “são mais importantes que as respostas”, é a forma de o paciente integrar o processo que atravessa.
“Importam sempre mais as perguntas do que as respostas porque nos põem a refletir e a movemo-nos em direção a qualquer coisa, nem que seja, porque nos abre a hipótese de conversar sobre. O que é que o assusta realmente? Tem medo de ser esquecido? Como é que quer ser lembrado? O que é que gostava de deixar em termos de legado ao outro?”, exemplifica.
Estratégias como a “terapia da dignidade” permitem que o paciente se conte num registo sonoro que mais tarde vai ser entregue a quem o desejar: “É muito libertador. Há palavras que nos dizem mas há também silêncios que não deve ser ocupado com muitas perguntas, muitas respostas e conceitos”.
Ricardo Fernandes desenvolve ainda um podcast «Porquê é que precisamos dos outros para sermos nós» que apresenta como um “lugar de diálogo que pretende gerar reflexões e perspetivas sobre temas como a morte, a doença, a perda e o luto, em contraponto com as diversas dimensões que a vida tem”.
O projeto apresenta “dois eixos de intervenção”: “Junto de cuidadores informais que elaboram lutos antecipatórios, com perdas difíceis” e também promover a “literacia em saúde mental na área da perda e do luto”.
“Nunca foi intenção deste projeto vasculhar e expor a vivência interna de cada pessoa, mas foi, sobretudo, normalizar vivências para quem possa ouvir, perceba também que outros passam por isto. É eclético nos conteúdos, mas sempre próximo destes temas dos cuidados paliativos, da perda, do luto”, indica.
A conversa com o enfermeiro Ricardo Fernandes pode ser acompanhada esta noite no programa ECCLESIA, na Antena 1, pouco depois da meia-noite, ficando disponível no podcast «Alarga a tua tenda».
LS