Saúde: É preciso «desospitalizar a vivência do final da vida, a vida até o fim»

No Jubileu dos Doentes e do Mundo da Saúde, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia, Catarina Pazes, da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos

Catarina Pazes
Foto: Agência ECCLESIA/HM

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Ainda recentemente teve a oportunidade de voltar a alertar para o facto de mais de 70% dos doentes não ter acesso em tempo útil a cuidados paliativos; um valor que sobe para os 90% quando estamos a falar de crianças. Pergunto-lhe se se sente de alguma forma a pregar no deserto? 

Não me sinto a pregar no deserto porque não estou sozinha, não tenho essa sensação, porque são muitos profissionais que comigo lutam por melhores cuidados paliativos, por melhores condições para prestarem bons cuidados de saúde, a quem tem sofrimento por causa de doenças graves ou incuráveis. O que sentimos e na Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos sentimos é alguma desilusão, porque foi em 2012 que surgiu a lei dos cuidados paliativos que garante o acesso a todos os portugueses a cuidados paliativos, independentemente do contexto, da idade, da tipologia de doença, todos os portugueses que tenham uma situação de sofrimento grave por causa da sua doença terem acesso a cuidados, e sejam eles a nível de internamento, a nível da comunidade, durante o percurso de doença em ambulatório, todos esses contextos. E infelizmente a lei surge em 2012 e estamos em 2025 e infelizmente ainda não temos essa garantia para a grande maioria das pessoas.

 

Dos contactos que vai mantendo e do conhecimento que tem, que explicações é que encontra para que não se evolua nesse sentido?

A explicação mais simples é que verdadeiramente eles não foram priorizados. Esta área de cuidados de saúde não foi priorizada verdadeiramente. Ela está na lei, existem vários documentos legais que até nos põem numa situação confortável em termos de país, e em termos de evolução dos cuidados paliativos do ponto de vista legal estamos numa situação confortável, mas na prática não foram dadas as condições nem foram priorizadas medidas que garantissem a constituição das equipas com os profissionais necessários, no número necessário, com a formação e as competências adequadas para prestarem cuidados de qualidade.

Ainda hoje temos equipas abaixo dos mínimos para prestarem bons cuidados, e, portanto, estamos a defraudar as pessoas porque vão ao hospital e perguntam, “mas aqui existe cuidados paliativos”? Sim, existe uma equipa, mas depois quando vão perguntar como funciona percebem que afinal é só às segundas e às quartas ou só de manhã ou só tem um médico de vez em quando e isso não é dizer que temos uma equipa.

 

Nessa perspetiva seria importante trazer o tema para a próxima campanha eleitoral?

Sem dúvida nenhuma. Muito recentemente fomos ao Parlamento em janeiro, à Comissão Parlamentar da Saúde, precisamente para apelar aos deputados, e chamar a atenção para um problema que é premente para o Serviço Nacional de Saúde, é absolutamente urgente e precisa de ser entendido por todos, porque é transversal, ele não é uma bandeira de ninguém, ele é transversal a todos os partidos. E o apelo que fazemos é que seja um assunto transversal e que seja trazido de facto para a campanha com uma discussão séria sobre as medidas urgentes a propor no imediato.

 

O facto de termos uma esperança média de vida cada vez mais longa e uma população também necessariamente cada vez mais envelhecida vai obrigar a procurar soluções neste campo? 

A Organização Mundial da Saúde aponta para uma duplicação em muito pouco tempo. Em 2060 teremos o dobro das necessidades, claro que são previsões, são estimativas, mas deve obrigar a pensar. Isto é um tsunami. O número de pessoas mais velhas com o aumento do número de pessoas com doença grave, com doença crónica traz certamente muita angústia e muita necessidade de adequação de cuidados ao longo do percurso, com processos de tomada de decisão, com a necessidade de apoio para o doente, para a sua família, para o cuidador. E um apoio e um suporte ao longo do processo de doença. E aí entram as várias tipologias de cuidados paliativos, como eu estava a dizer no início, fará e traz uma diferença enorme no stress associado à doença, à vivência da doença, no stress associado à doença para o doente e para a família, no sofrimento associado. Nas situações de fim de vida, o stress associado às tomadas de decisões nessa altura, nessa fase da vida, e depois também os processos de luto, que trazem muito peso não só do ponto de vista da saúde de quem está a vivê-lo, mas também para aquilo que representa, em termos de limitações com que a pessoa fica para a sua vida normal. Portanto, trata-se aqui de um investimento que precisa de acontecer a bem do futuro da saúde em Portugal.

 

 

Que soluções preconiza para se poder dar mais qualidade de vida a quem sofre? É precisa uma melhor articulação entre a rede de cuidados continuados e a rede de cuidados paliativos?

Esse é um dos pontos que nós apontamos como urgente. De facto, essa articulação é muito importante, necessária, e tem de ser vista como natural. Dentro dos cuidados continuados integrados existem muitas tipologias de resposta, diferentes tipo de unidades, e também existem equipas de cuidados continuados integrados na comunidade, que são equipas que se deslocam a casa. E todas estas tipologias, quer de internamento, quer domiciliárias estão a responder a doentes com necessidades paliativas. E precisam de ter uma articulação fácil com as equipas especializadas em cuidados paliativos.

 

Ainda recentemente, ligando aqui as questões, o Tribunal de Contas falava, no caso dos cuidados continuados, que essa rede estava muito aquém das metas. E nós vemos que nos hospitais, se prolongam internamento que se as pessoas tivessem os cuidados necessários, poderiam libertar muitas camas. Há até a falta de perceção do benefício que teria para a comunidade em geral, poder desospitalizar os cuidados…

E essa situação, essa perspetiva de desospitalizar os cuidados, desospitalizar a vivência do final da vida, a vida até o fim, e dando às pessoas o direito de escolher onde estar nessa fase, tem um impacto enorme para a pessoa e para os seus entes queridos, e tem um impacto enorme para o sistema.

Medidas que tragam essa humanização, que tragam a humanização dos cuidados às pessoas que estão numa situação de fim de vida, são medidas que se impõem do ponto de vista ético, do ponto de vista deontológico, da prestação de cuidados de saúde, e que o Estado deve garantir. E do ponto de vista financeiro e de sustentabilidade também. Porque as pessoas que estão a viver situações de doença mais avançada, quando não têm um percurso suportado, acompanhado, muitas vezes – e quem nos está a ouvir provavelmente consegue identificar isto – muitas vezes recorrem a múltiplos recursos de saúde, porque está perdido, porque está ansioso, porque está angustiado, não sabe o que é que vem a seguir, e não sabe como lidar com o que está a aparecer. E esses múltiplos recursos têm repercussões em custos, mas infelizmente não trazem benefício para a pessoa. E é essa situação que está a fazer com que o sistema esteja a ficar mesmo insustentável, porque a procura dos serviços de saúde está a aumentar por parte de pessoas que têm doenças crónicas, que têm doenças avançadas, porque são situações de pessoas mais velhas, com vários problemas, com vários problemas de saúde, que precisam efetivamente de uma assistência adequada à sua situação. Provavelmente uma assistência diferente daquela que estão a ter, mas nós como não nos preparamos para isso e continuamos a não nos preparar para isso, continuamos a dar a resposta que a pessoa não necessita, ou uma resposta diferente daquela que ela necessita, mas que infelizmente se traduz em muitas vezes, agravamento do próprio sofrimento.

 

 

E quando falamos de paliativos, falamos também da família e da forma como se lida com o luto. Qual é o papel dos especialistas neste campo? 

O papel dos especialistas é um tópico muitíssimo importante. As equipas de cuidados paliativos são equipas formadas por vários profissionais, por enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas, fisioterapeutas, nutricionistas, etc., mas todos nós tivemos uma formação que nos permite abordar as questões do luto e do suporte no luto, quer ao longo do processo de doença, quer após o doente falecer. Os psicólogos que trabalham nestas equipas têm uma formação específica que lhes permite uma atenção ao doente e família no sentido do ajustamento à situação de doença e no sentido da vida, também num percurso de doença, e que lhes permite uma atenção e uma intervenção muito especializada na área dos cuidados paliativos.

Aquilo que defendemos é que de facto sejam dadas as condições às equipas, precisamente para que as equipas que existem possam garantir aquilo que nós estamos aqui a apregoar. Porque quem nos ouve lá em casa, ou no carro, ou em qualquer local, provavelmente já teve alguma experiência com cuidados paliativos e diz assim: “mas eu não tive isto, eu não tive um psicólogo, eu não tive acesso a este apoio que esta pessoa está a referir-se”.

 

O país prepara-se para ver uma lei de eutanásia aprovada. O facto de tantas pessoas morrerem mal, em sofrimento, sem estes cuidados, sem esta equipa de apoio, pode ter ajudado a uma perceção mais favorável na opinião pública relativamente à legalização da eutanásia?

Nós tivemos a oportunidade de expressar a opinião enquanto associação, parece-nos uma legislação absolutamente extemporânea e continua a sê-lo precisamente pela nossa incapacidade de discutir o fim da vida e como se vive até ao fim. Para vós também deve ser fácil de entender que debates sobre a forma como se vive até ao fim não existem.

Só existem debates sobre como se morre, como é que eu quero morrer. Morrer é o momento. Agora, se a perceção que eu tenho do fim da vida e dos últimos tempos da vida é uma perceção de grande sofrimento, associada a tantas intervenções que trazem sofrimento e angústia, a tantos internamentos hospitalares, a tubos, medidas desproporcionadas, agressão, então eu, enquanto pessoa que pensa nestas coisas, penso assim, eu não quero viver isso, eu não quero sofrer no final da minha vida. Porque só quem está lá é que sabe o que é, mas nós imaginamos que é algo muito mau e então pensamos: Se não há apoio, não há suporte, não há ajuda; viver essa fase da vida deve ser mesmo horrível. Então eu prefiro antecipar o fim. Sim, a perceção que existe é negativa, mas também não têm sido viáveis discussões, conversas sobre este assunto de forma aberta. A conversa sobre o fim da vida e sobre como se vive até ao fim, de facto, é muito travada nos locais de debate.

 

Precisamente, a ideia de recorrer aos paliativos ainda choca, de facto, muita gente. Isso mostra o preconceito que existe ligando os paliativos a uma morte iminente?

Mostra um desconhecimento. Eu trabalho numa equipa de cuidados paliativos, estamos a acompanhar doentes que estão em fases muito precoces da sua doença, a fazer tratamento dirigido, doentes que estão a trabalhar e que têm necessidade paliativas diferentes, porque têm sofrimento, angústias e incertezas, e dificuldade em falar com os seus filhos sobre a situação que precisa do apoio e do suporte de uma equipa de cuidados paliativos numa fase diferente daquela que é uma fase da doença avançada, em que a morte é inevitável, o fim da vida é inevitável, o agravamento da doença está a aproximar-se.

E é preciso planear toda essa fase de uma forma humanizada, ajustada àquilo que são as vontades do doente, ajustada àquilo que são as capacidades daquele familiar para prestar apoio, etc. Portanto, uma equipa de cuidados paliativos ajuda as pessoas a viver bem, independentemente da sua doença de base e da fase em que a doença esteja. Associar os cuidados paliativos única e exclusivamente a uma fase mais avançada é redutor, é perigoso e é desinformação para as pessoas. E infelizmente ainda continua a ser essa a noção em muitos contextos.

 

No momento em que falamos, celebra-se no Vaticano o Jubileu dos Doentes e do Mundo da Saúde, que também recorda os profissionais deste setor – aliás bastante recordados na altura da pandemia, mas não sei se depois dos cinco anos foram devidamente reconhecidos por esse trabalho. Pergunto-lhe se o estado de saúde do Papa, a sua forma de estar, que chama a atenção para a fragilidade, é um testemunho necessário nos tempos que vivemos?

Sem dúvida que, em muitos momentos, o Papa Francisco nos alertou para reflexões essenciais, que têm a ver com este percurso na fragilidade, percurso da vida em contexto de fragilidade, de vulnerabilidade. Que é humana, que faz parte de todos nós e que tantas vezes esquecemos e faz-se de conta que isso não existe. E quando passamos pelo problema, como o Santo Padre está a passar, ou quando alguma pessoa muito próxima de nós passa, e na verdade muitos de nós viveram toda a situação do Papa também muito atentos, porque é alguém que diz muito a muitos de nós; todas essas mensagens foram muito essenciais.

A vivência de toda a situação do Santo Padre, para quem é paliativista, naturalmente que nos trouxe algumas reflexões. E aquilo que eu pensei em muitos momentos, e até tive a oportunidade de publicar numa página de uma rede social, foi: que não faltem ao Papa cuidados paliativos, independentemente do percurso que ele tenha e da possibilidade de reverter a situação.

 

Independentemente do tempo de vida que lhe resta, não é? 

Exatamente. Independentemente do tempo e independentemente da possibilidade de reverter a situação, porque estávamos perante um alto nível de incerteza. O prognóstico reservado que todos os dias ouvíamos nas notícias tinha que ver com a incerteza, com a possibilidade de as coisas correrem mal, com a possibilidade das coisas evoluírem para o fim da vida. E nessa perspetiva da incerteza é importante, por um lado, percebermos o que é possível fazer para evitar a morte e promover tudo aquilo que é possível para manter a vida – e foi isso que aconteceu – mas ao mesmo tempo sem esquecer aquilo que são as preocupações com a dignidade, o conforto, o humanismo, o ser ele sempre.

E essas duas dimensões entrosadas nos cuidados são essenciais e o que nós desejamos é que toda esta situação sirva também para refletirmos sobre isso e que percebamos que ela não está nas nossas mãos. Quando a morte é inevitável, não está na mão do médico decidir se deixa morrer ou não. Quando é inevitável, é inevitável e o que está na mão do médico é decidir se o doente tem ou não acesso a alívio do sofrimento e se vive aquele tempo com o mínimo sofrimento possível.

Aquilo que aconteceu com o Papa foi outra coisa. Havia potencial de ser evitável, havia potencial de se ver a situação revertida e o que aconteceu foi isso. Foram instituídas todas as medidas que podiam reverter a situação, porque era potencialmente possível. Agora, a gestão da incerteza é algo que nos deve preocupar e nos deve ocupar enquanto profissionais de saúde, porque é um momento de grande, grande fragilidade, de vulnerabilidade, de sofrimento para o doente e para quem o ama, para quem lhe é próximo.

E a atenção a todos os pormenores nessa fase faz toda a diferença. Quer as coisas corram pelo melhor, porque em algum momento vão correr de outra maneira, porque é assim, porque ser-se humano, implica isso; quer as coisas evoluam para a morte. E que seja sempre percecionado que fizemos tudo o que era adequado, que fizemos tudo o que era correto e que a pessoa teve uma vida digna até ao fim.

Partilhar:
Scroll to Top