Padre José Alves, Congregação da Missão
Tornou-se emblemática a imagem de São Vicente de Paulo aconchegando bebés ao colo, com a sua capa de agasalho, sugerindo a ideia de o santo a andar pelas ruas a recolher crianças abandonadas. Não sabemos se alguma vez isso aconteceu. Mas esta imagem quase lendária nasceu de uma dedicação incondicional à causa das crianças abandonadas (expostas) nas ruas de Paris, à porta das igrejas ou dos conventos. “A história desta obra das crianças abandonadas é um milagre contínuo… O Padre Vicente multiplicava-se em encontrar respostas. Também aqui a lenda, interpretando sentimentos reais, teceu iluminuras à volta dos seus gestos. Apresenta-o, em noite nevada a recolher, nas ruas, pobres abandonados que envolvia na sua capa e levava ao refúgio onde as Filhas da Caridade velavam, à sua espera. Este quadro tem decerto a exatidão de um símbolo. Mas é um símbolo e nada mais!” (1)
Uma notícia de 1600 fala em cerca de 400 crianças recém-nascidas abandonadas, recolhidas por pessoas caridosas ou pela polícia. Em 1630 há notícia de uma obra chamada “La Couche”, o Berço, supostamente sob a responsabilidade do Cabido da catedral, mas sem organização e onde faltava tudo. As crianças que não morriam eram cedidas a quem as quisesse levar sem cuidar de saber que destino lhes caberia em sorte. Havia casos de mendigos que as compravam para as desfigurar e se servirem delas de modo a despertar a compaixão das pessoas na sua atividade de pedintes. (2)
Era preciso pôr cobro a esta situação desumana para a sociedade e chocante para a consciência cristã. Mas eram necessários recursos humanos e económicos incalculáveis. O Padre Vicente e Luísa de Marillac elaboram um projeto. Por essa altura, em 1640, realiza-se a assembleia geral das Confrarias da Caridade de Paris. O projeto apresentado pelo Padre Vicente é aprovado. Parece ser uma obra em grande. As senhoras das Confrarias assumiriam a responsabilidade da administração. As Filhas da Caridade, orientadas por Luísa, também secretária da Assembleia das Confrarias, seriam as executoras desse projeto. E o projeto começa a sair do papel e a tomar forma.
Organizam-se centros de acolhimento dessas crianças nas paróquias. Mas onde aparece a maior novidade foi na criação de “famílias de acolhimento”. A partir das Confrarias da Caridade, existentes nas paróquias, e dos próprios párocos, organizaram-se listas de famílias a quem, em consciência, se podiam confiar essas crianças. Cada criança era acompanhada por uma ficha em que constava a sua identidade e a sua situação sanitária. Ficha essa que deveria ser atualizada pela respetiva família de acolhimento, sob o olhar atento das senhoras das Confrarias que lhe faziam visitas periódicas e de que constava sempre um relatório. Contrataram-se “amas”, às quais se pagava uma mensalidade, para os recém-nascidos e para os que não se adaptavam ao biberão.
A partir dos cinco anos, as crianças aprendiam a ler e a escrever; aos onze, eram transferidas para uma casa onde os rapazes aprendiam um ofício e as meninas eram iniciadas nos trabalhos domésticos. A obra cresceu muito. As dificuldades económicas também, agravadas pela chamada guerra da Fronda, guerra civil, que dividiu famílias, arruinou parte da nobreza, a viver na cidade impedida de receber as rendas das suas terras. Inicialmente entusiasmadas com o projeto, as senhoras começavam a esquivar-se: deixam de participar nas reuniões e de contribuir para o sustento da obra. Até já se ouvia dizer que o melhor é acabar com a obra! Luísa sente-se angustiada porque é sobre ela que pesa a responsabilidade da gestão e o drama moral do que fazer com aquelas muitas crianças e com muitas outras que todos os dias chegavam.
O Padre Vicente, muito ocupado em restabelecer a paz entre os beligerantes e em apoiar as vítimas da guerra, não esquece a obra que lhe é tão querida. Logo que chega a Paris, faz o que era seu costume fazer em circunstâncias idênticas: convoca uma assembleia geral de todas Senhoras das Caridades de Paris. As palavras que lhes dirige são de uma eloquência não fundamentada nas técnicas de falar, mas na argumentação que só o coração sabe tornar eficaz:
“Minhas Senhoras: Por compaixão e mais por caridade, adotastes como filhos essas criaturinhas. Fostes suas mães segundo a graça, dado que suas mães, segundo a natureza, as abandonaram. Ora bem: considerai e vede se também vós quereis abandoná-las; se quereis deixar de ser suas mães, para serdes, no presente, seus juízes! A sua vida e morte estão nas vossas mãos. Vou perguntar-vos a opinião. É tempo de resolver e de saber se já não quereis usar de misericórdia para com elas. Se continuardes a cuidar delas, caridosamente, viverão. Mas, se as abandonardes, perecerão totalmente. A experiência não deixa dúvidas”. (3)
A palestra resultou. Tornou-se clássico um quadro em que as senhoras ali mesmo se desfazem das suas joias, incluindo a rainha, para que a obra de assistência às crianças abandonadas pudesse continuar. Com o dinheiro veio um novo entusiasmo.
Por outro lado, era necessário recuperar a dedicação e o entusiasmo inicial das Filhas da Caridade acossadas por contrariedades de dentro e de fora: de dentro, as exigências da obra em si; de fora, a desconfiança. Numa longa carta ao Padre Vicente, Luísa revela um pouco do muito que lhe ia na alma: “Fico muito aborrecida por ter que o incomodar, mas a impossibilidade de continuar a receber as criancinhas confrange-nos. Presentemente temos sete que não querem tomar leite pelo biberão, mas não temos nem um “pataco” para as pôr em amas de leite, nem para comprar panos nem roupas, e também não temos esperança de encontrar alguém que nos empreste mais dinheiro… As Senhoras não fazem caso em dar ajuda e até me convenço de que elas julgam que nós tratamos dos nossos interesses à custa delas, o que é pura mentira… Não vejo outra solução para alívio de todos os que sofrem nesta obra que é nós, em nome da nossa Companhia, apresentarmos ao senhor Presidente um requerimento para nos retirar o encargo de receber as crianças e encarregue quem lhe aprouver”. (4)
A carta continua mencionando crianças que acabou de receber no dia anterior. Por ela podemos avaliar o estado de espírito em que se encontrava Luísa de Marillac e as suas mais diretas colaboradoras, as Filhas da Caridade. Por isso, o Padre Vicente procura acompanhá-las, como o fez com as Senhoras: “É verdade, minhas Irmãs, é verdade que isto custa! Mas onde será que a vida não custa? Sabei, em lado nenhum! Já vos custava quando estáveis no mundo. Ela sempre custa em qualquer condição. Mas na das pessoas que cuidam destes seres, como em toda e qualquer que sirva a caridade, segue-se, à fadiga, grande recompensa. Por isso, até a fadiga deve ser amada… Minhas Irmãs, deveis dar muita importância ao desígnio de Deus sobre vós. Ele vos escolheu; a vós que nem pensáveis certamente em tal. Deixou passar muitos anos, muitas crianças morreram. Em vez de se dirigir a tantos outros que a Sua bondade poderia escolher para trabalharem nesta santa obra, esperou que estivésseis preparadas para vos entregardes a ela. Quando vos escolheu, havia no mundo muitas outras pessoas. Mas escolheu-vos a vós: a Ana, a Maria, a Margarida e todas as outras…”. (5)
Com esta linguagem emotiva fazendo apelo ao coração, mas sobretudo ao insondável desígnio de Deus, o Padre Vicente de Paulo conseguiu reerguer o entusiamo abatido e recuperar a alegria daquelas que tão generosamente se haviam entregado a uma obra que vai constituir uma das suas marcas identitárias: cuidar das crianças expostas.
Continua a fazer sentido falar do Padre Vicente como o grande obreiro da recolha das crianças abandonadas, mesmo que não tenha andado pelas ruas a recolher e a aconchegá-las na sua capa? As lideranças não se definem tanto pelo “fazer”, mas pelo “fazer fazer”, pela capacidade de mobilização, pela arte de congregar esforços, de fazer convergir vontades. Ele fez convergir as necessidades sociais, a generosidade dos ricos, a capacidade de doação daquelas jovens, animadas pela sua responsável, Luísa de Marillac, e as suas Filhas da Caridade.
P. José Alves, CM
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(1) J. Calvet, Cara Caridade: Vicente de Paulo (tradução de M. Aguiar), p. 142.
(2) Cfr. J. Calvet, Sainte Louise de Marillac, par elle-même: Portait, p. 128.
(3) Idem, p. 141.
(4) Idem, p. 149.
(5) J. Calvet, Cara Caridade: Vicente de Paulo (tradução de M. Aguiar), p. 143.
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