Padre José Alves, CM
A inculturação é exigência do Mistério da Encarnação. O primeiro a inculturar-se foi o Verbo de Deus, que se fez carne para que pudéssemos perceber toda a mensagem que o Pai, através d’Ele, queria comunicar aos homens (1). Essa mensagem é transmitida na cultura semita (aramaica) e, posteriormente, na grega, romana, egípcia, assíria, dando origem a expressões e ritos diferentes na transmissão da fé e na mensagem revelada aos vários povos. Este fenómeno vai continuar ao longo da história com a evangelização dos povos eslavos e anglos-saxónicos do centro e norte da Europa: a mensagem cristã influenciou os seus hábitos e costumes, transformando-os; por sua vez, recebeu influência desses mesmos povos, integrando, no culto e na linguagem, expressões culturais, que os ajudavam a interiorizar a mensagem cristã.
Nos séculos XVI e XVII encontramos dois movimentos de sentido contrário. Com a descoberta de novos mundos, povos e culturas, sentiu-se a necessidade de continuar esta inculturação, resultado da experiência missionária longínqua, em povos de culturas tão diferentes (2). Em sentido contrário, com o surgir e crescer dos nacionalismos, a Europa, sobretudo a França, considerava-se o centro do mundo e, com o nascimento e crescimento do absolutismo, qualquer pensamento que não fosse europeu, era visto com alguma desconfiança.
É neste contexto que se situa a vida e ação pastoral do Padre Vicente de Paulo. Embora a sua ação pastoral se tivesse desenrolado dentro do grande hexágono do território francês, o que pensava ele sobre esta questão pastoral? Há dois aspetos a considerar.
O Padre Vicente, sem utilizar a palavra, insiste muito numa inculturação que torne o Evangelho acessível aos pobres, aos camponeses. Eles são portadores de uma cultura bem diferente da elite aristocrática e burguesa. Falar claro e de maneira acessível a toda a gente, de modo que a mensagem cristã seja compreendida, é ponto de honra da sua pregação. A isto chamou ele o “Pequeno Método” ou método simples. Alguns dizem talvez influenciado pelas ideias cartesianas, mas a razão fundamental era a consciência muito viva de que o Evangelho tinha de ser anunciado em linguagem que as pessoas entendessem e as levasse à conversão, traduzida na mudança de costumes, individuais e sociais.
Nos horizontes do Padre Vicente não estavam, inicialmente, as missões “Ad Gentes”. A sua grande preocupação era o pobre povo do campo “que se condena e morre de fome”, do vasto território francês e europeu. Quando lhe aparece este desafio, através da “Propaganda Fide”, apoia-o, mas sugerindo o nome de um sacerdote das chamadas “Conferências das Terças-feiras”, o Padre Pallu, que se torna o fundador da “Sociedade das Missões Estrangeiras”.
Quando a “Providência” lhe dá um outro sinal de alargar os horizontes para lá da Europa, numa carta ao Padre Nacquart, a quem escolhe para esta nova missão, agora em Madagáscar, revela quais devem ser as linhas a ter presentes na evangelização de povos de cultura tão diferente: “O seu principal esforço será inculcar nessa pobre gente, nascida na ignorância do Criador, as verdades santas da nossa fé, não com razões substanciais da teologia, mas com raciocínios a partir da natureza. É preciso começar por isto. Tratareis de ensinar-lhes que nada mais fazeis do que desenvolver neles a marca que Deus lhes deixou de Si mesmo, e que a natureza corrompida, habituada ao mal, apagou. E gostaria que lhes mostrasse as enfermidades da natureza humana, pelas desordens que eles mesmos condenam”. Hoje, diríamos, é preciso começar a evangelização a partir dos valores mais profundos desse povo, tentando descobrir as “Sementes do Verbo”, segundo a linguagem do Concílio Vaticano II.
Depois sugere uma metodologia utilizada por ele para catequizar um jovem malgaxe que ia ser batizado nesse dia, em São Lázaro: “sirvo-me de imagens para o instruir e parece-me que isto lhe prende a imaginação”.
E o Padre Nacquart seguiu o conselho do Padre Vicente; mandou pintar, com cores berrantes, um quadro enorme, sobre os novíssimos, que levava enrolado a tiracolo, e que desenrolava no momento da catequese levando o seu auditório emocionado a fazer a sua escolha. O missionário bem sabia que isto era apenas um instrumento para despertar as consciências. Formá-las era bem mais difícil e laborioso. O batismo, só depois de instrução e de garantias de perseverança. Hoje, dizemos, depois de um sério catecumenato. A sua visão sobre a evangelização ia bem mais longe do que o Padre Vicente lhe tinha sugerido. Pensou num seminário. Era preciso formar padres, tomados da raça, colhidos da terra. Mas as doenças tropicais, a que o seu organismo não estava habituado, impediram-no de realizar os seus sonhos.
Outra grande preocupação do Padre Vicente era a aprendizagem da língua do povo a quem o missionário era enviado. Aborda muitas vezes este assunto nas sua cartas, lamentando-se quando notava desinteresse da parte dos padres: “estou muito triste ao ver o pouco empenho que alguns revelam na aprendizagem da língua do país”. “Diz-me que alguns padres andam tristes. Compreendo porque não podem dedicar-se à sua missão: não conhecem a língua. Anime-os e acompanhe-os no estudo da língua local”. Na abordagem deste assunto não falta o tom humorístico, com crítica velada ao pouco desenvolvimento deste trabalho: “alegra-me muito saber que o Irmão Dermortier tenha feito tanto progresso, na aprendizagem da língua, que até já saiba dizer «Sim, senhor»”. E depois num tom mais sério: “Espero que rapidamente saiba o suficiente para que possa instruir os seus professores, isto é, a gente desse país. Nosso Senhor fará dele um grande trabalhador, em favor dessa gente, com a sua ajuda” (3).
Esta preocupação por inculturar a mensagem cristã, na linguagem, na organização e na estrutura da Igreja local começada pelo Padre Vicente de Paulo vai tornar-se tradição e património na Congregação da Missão. E, ao abordar este assunto, não posso esquecer o Padre Vicente Lebbe, missionário belga, juntamente com o seu confrade Padre Cotta (4), italiano, que influenciou o Papa Pio XI, tanto na grande encíclica missionária “Maximum Ilud”, como na nomeação dos seis primeiros bispos chineses. Fundou duas congregações religiosas chinesas, desencadeando um movimento de inculturação da Igreja Católica na China, tragicamente interrompido pela vitória do Partido Comunista chinês, em 1949, destruindo toda estrutura da Igreja chinesa.
Padre José Alves, CM
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(1) Cf. o Prólogo do Evangelho segundo São João.
(2) Os ritos chineses; a experiência de inculturação no Brasil, na Índia, etc.; o filme a “Missão”, bem revelador deste trabalho.
(3) Carta ao Padre João Martin, superior da Comunidade de Turim.
(4) O Padre Antoine Cotta ingressou na Congregação da Missão em 1891. Elaborou e enviou um “Memorando”, sobre as missões na China, ao Cardeal Serafini, Prefeito da “Propaganda Fide”, em 1917. Este memorando foi elaborado para promover o acesso do clero chinês ao episcopado, apoiado por argumentos extraídos de papas, bispos e outros. Ele acreditava que a prática, no seu tempo, se opunha a tal acesso. Critica o “colonialismo espiritual” dentro das missões chinesas; argumenta, defendendo que os cristãos chineses devem desenvolver uma Igreja autossuficiente para se desenvolver. Faz referência a vários documentos papais que apoiam a formação de um clero nativo independente e insta a Igreja a capacitar padres chineses para assumirem funções eclesiásticas plenas. Este memorando é importante pelo papel que desempenhou na inspiração da decisão do Papa Pio XI de ordenar os primeiros bispos chineses em 1926, marcando um ponto de viragem na vida da Igreja Católica chinesa (resumo do referido “Memorando”).
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