Santos populares são marca civilizacional

Micael Pereira, professor de Sociologia da Universidade Católica Portuguesa, olha para as festas populares, entre a religiosidade popular e o paganismo, como uma marca civilizacional

Ecclesia – Falamos de festas populares… Até que ponto esta quebra na rotina dos cidadãos acaba por ser um contributo psicologicamente salutar e que favorece uma vida social mais saudável? 

Micael Pereira – As festas populares, e sobretudo as que estão associadas a uma religião popular, têm uma função civilizacional grande.

Inicialmente pelo aspecto do tempo, não só pelo dia. A festa ritma um tempo extremamente mais largo, na medida que é esperada por muitos, por variadíssimas razões, umas mais do que outras. Ela marca, por isso, um tempo anterior.

Há depois a celebração em si que é a ruptura propriamente dita e depois a festa continua, pois ela não acaba naquele dia. Prolongam-se por vezes para comer os restos ou porque a família fica mais uns dias, por uma quantidade enorme de “acidentes” positivos e negativos que ocorrem durante a festa.

Efectivamente seria normal que nós, sem vivermos em festa, mas que de algum modo andássemos de festa em festa havendo tempo comum pelo meio.

Eu julgo que isto existe na liturgia e lá tem a sua terminologia própria mas existia ainda mais na religião popular, porque ela estende-se pelo ano inteiro – o tempo litúrgico, o tempo das festas dos santos, as chamadas festão de Verão.

A pura dispersão da festa, são as festas análogas que cada um considera diferentes mas que são identitárias para si e que nos permitem sair da monotonia de duas coisas. Uma é a monotonia do tempo actual: nós andamos com um tempo de relógio, que podemos dizer que é discreto, que é igual a todos os dias… Mas muito pobre, porque todo somado é minutado! Para se defender disso há quem faça a festa banalizada.

A vantagem da festa popular é precisamente ela criar uma referência para muita gente que, de tempos a tempos, quebra a vida de todos os dias.

Permite, portanto, criar ritmos biológicos porque a variedade dos tempos, a variedade das festas, cada uma com o seu enredo, cada uma com a sua ritualização. Isso faz com que haja uma variedade e uma evocação até de mito e de referências ao longo de um tempo enorme.

E – Podemos falar de uma certa liberdade celebrativa na forma de celebrar o santo, além da procissão há os tronos, as sardinhas, os casamentos e o povo encontra ritmos à parte da celebração tradicional…

MP – Houve um tempo em que “era muito bem” contrastar a festa litúrgica e a festa deste tempo.

Contudo eu penso que há aspectos em que efectivamente se encontra uma oposição e outros em que há uma continuidade. Considero que é tradição popular as pessoas em Fátima andarem de joelhos pelo chão, o que não significa que não esteja integrado.

Eu não contrastaria só o eclesiástico com o popular, porque apesar de por vezes existirem divergências entre o clero e o povo, ao fim de um certo tempo acabam por se entender. No fundo o clero gosta de ser popular e as pessoas acabavam por ouvir o sermão.

E – E a Igreja aproveita o que há de bom na tradição popular e assim chega ao povo.

MP – Exacto e a Igreja chamou tradições romanas no passado tanto para a liturgia como para a religião popular. Concerteza que há uma liberdade celebrativa e isso é positivo porque há maior criatividade, permitindo uma adaptação maior das pessoas ao que estão a celebrar.

Permite também reunir mais pessoas, permite ainda confundir. Por exemplo, Santo António hoje é muito mais António do que santo. Por outro lado os casamentos hoje são terrivelmente ambíguos. Foi uma maneira de casar algumas pessoas quase que “à força”, ajudar os que não casariam pela Igreja de outra maneira e agora até incluem os casamentos civis. 

No entanto, a sardinha e o manjerico não baralha a jogada porque o engraçado é perceber um conjunto muito grande de simbologias que transformam a festa num fenómeno global.

No fundo uma festa popular é qualquer coisa que por um lado se dança, se come, se bebe, se cheira e se convive, onde se ouve, se passeia, se ri, se compra, se trabalha, se chora, se reza. É um fenómeno global que toca em imensas coisas e que por qualquer pormenor se tem a festa toda. E é aí que me parece que tem o encanto, não por ser popular, mas por ser criativo e tem uma criatividade que nasce de uma pluralidade muito grande de autores, que convergem num mesmo ideal, numa fantasia que ultrapassa o tempo.

O que é complicado é como é que hoje a Igreja consegue ser poética, ter pessoas eclesiais suficientemente poéticas para carregar, umas vezes de arame outras de lirismo, novos símbolos para recontar a história numa linguagem de hoje, para as adaptar ao que precisamos.

No fundo a festa faz o apelo ao artista e ao poeta na Igreja. Um exemplo extremamente concreto foi Manoel de Oliveira, por ocasião da visita de Bento XVI, ter falado em “ter saudades do paraíso”. Foi o despertar de um poeta, não de versos.

E – Há uma realidade que salta à vista que é o reforço da identidade do bairro, do grupo. Há uma reafirmação destes pequenos grupos que habitam a cidade quase numa luta e no sentido de evitarem ser diluídos num cinzentismo urbano que classifica todos da mesma maneira?

MP – Isso é muito claro nas marchas de Sto. António em Lisboa, que reforça a identidade dos bairros e os despique entre eles, numa identidade para a vida inteira. Concerteza que as rusgas no Porto, do São João, até são mais populares e democráticas mas não têm a força identitária que as marchas têm em Lisboa.

Mas julgo que podemos ir mais longe. O problema não é só a identidade do bairro mas é a necessidade de ter uma terra. As designadas festas da nossa terra, dão-nos uma terra e manifesta-se orgulho nela, porque é na festa que se mostra o que há de bom e a festa marca.

É um problema para as cidades, muitas vezes estão mal construídas, têm um urbanismo péssimo, têm uma vida desorganizada e pouco comunitária.

O conseguir fazer festa, na cidade toda ou em diversos locais, é uma coisa simples deixa uma herança territorial às crianças para além da terra dos pais ou dos avós, porque eles precisam de ter uma terra deles.

É muito difícil, em especial nas cidades grandes, ter gosto nas cidades porque a festa também pode ter esta função tremenda de nos dar uma terra, uma origem… Precisamos de estar agarrados a alguma coisa, não somos só cidadãos do Mundo. É mais uma das funções civilizacionais da religião popular e da festa.

E – É recorrente ver os jovens agarrarem estas tradições que vêm dos pais e dos avós, carregando o simbolismo da tradição ou devemos temer o desaparecimento destas festividades?

MP – Eu tenho muitas dúvidas que venha a desaparecer algum dia. O Santo António perdeu o seu cariz cristão porque há outro tipo de festa. Começa à tardinha e estende-se pela noite dentro, com a gente nova que anda pelos bairros.

Não me parece que as festas estejam a viver dos mais velhos, claro que o problema é o sentido que a festa tem. Sem as manipular conseguir acrescentar sentido, fazer com a gente nova continue a gostar e abrir novos horizontes para cada festa.

Alem da poesia tem de entrar o humor. É preciso olhar para as coisas com à vontade e criatividade. Foi sempre assim que se fez.

A religião popular é da população e também é uma resposta à população. É algo intermediário e é com essa boa disposição que se vive nas festas que deveríamos conseguir viver.

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Agência ECCLESIA

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