Frei Armindo Carvalho é provincial dos Franciscanos em Portugal desde 2016. Foi missionário em Moçambique durante décadas e guardião da Igreja de Casa de Santo António em Lisboa
Durante o seu percurso de vida, teve sempre por perto Santo António, primeiro em Torres Vedras, no Convento de Santo António do Varatojo, em Maputo, na Igreja de Santo António da Polana, e em Lisboa, na casa onde nasceu o santo de Lisboa, de Pádua e do mundo, como disse Leão XIII.
Entrevista conduzida por Paulo Rocha (ECCLESIA) e José Pedro Frazão (Renascença)
A figura de Santo António tem uma forte devoção popular. Há um lado menos conhecido no meio de toda a popularidade?
Talvez o lado intelectual, apesar de ter sido declarado doutor da Igreja, não é um aspeto muito explorado. Reconhece-se que Santo António, embora sendo um intelectual de alto gabarito, como costumamos dizer, não se dá muito bem lá nos altos, nas altitudes das intelectualidades, mas desce com muita facilidade à simplicidade, ao dia-a-dia do povo.
O povo quase o considera como um membro da família. Qualquer circunstância feliz é para relevar Santo António, qualquer problema que surja: “Ó Santo António vale-nos!”.
Mas isso tem a ver também com a própria biografia de Santo António, um muito bom aluno que de repente ficou impressionado ao ver passar uns monges Franciscanos a caminho de Marrocos e a vida muda?
Isso é já a segunda presença de uma caminhada que começou em Lisboa, depois mudou para Coimbra, onde terminou o seu doutoramento na universidade e depois acolheu esses frades, os cinco primeiros que São Francisco, depois do grande Capítulos da Esteiras, lançou como missionários pelo mundo, esses destinados a Marrocos.
Para passarem para Marrocos teriam de ter uma paragem e foi exatamente em Santo António dos Olivais, em Coimbra, onde Santo António era cónego regrante e trabalhava na paróquia e conheceu os fradinhos, a sua simplicidade, comunicabilidade, sobretudo pela sua alegria: porque é que estas pessoas são tão alegres? Não têm dinheiro, não têm coisas especiais, mas são alegres? E deixou-se cativar e com o passar desses cinco frades ficou a pensar se um dia não poderia ter um hábito castanho e uma vida como aqueles frades simples e humildes, mas alegres e felizes.
Quando os frades foram para Marrocos e foram lá martirizados e regressaram os seus restos mortais, foi ele que os recebeu e lá estão ainda em Coimbra.
Nunca mais esqueceu os Franciscanos? Desde esse primeiro encontro?
Não esqueceu!
E isto foi há 800 anos que aconteceu esse primeiro encontro, com os frades franciscanos?
Sim. A Ordem foi aprovada oficialmente em 1209, começou a lançar-se, sobretudo em grande expansão pela Europa – Itália, França, Portugal – e depois para outros lados. É exatamente nessa altura que se dá a grande expansão da Ordem, porque é uma novidade. Não sou historiador, leio alguma coisa e gosto muito de Santo António, mas o que o encantou, acho, terá sido esta forma evangélica de viver dos fradinhos de São Francisco. Chamemos-lhes fradinhos, porque é o termo popular. Acho que o Evangelho não é uma pregação, uma teoria que se lança, mas é uma vida. Então, São Francisco intuiu que viver o Evangelho era a melhor coisa da vida, era a melhor maneira de viver.
E logo nesses anos, os primeiros anos, Santo António conheceu São Francisco, esteve com São Francisco de Assis, no Capítulo das Esteiras?
Exatamente. Depois de regressar de Marrocos, no mesmo barco em que foi – teve as febres africanas e como estava muito mal meteram-no no mesmo barco; segundo consta, o barco foi sujeito a uma grande tempestade e em vez de chegar a Lisboa, atracou na ilha da Sicília. Santo António saiu ali, havia uns monges beneditinos, também frades franciscanos, soube que estavam lá e foi a correr. Como os franciscanos têm uma ordem de São Francisco – quando um dos irmãos estiver doente, os outros recebam-no e tratem-no como queriam ser tratados e recebidos -, acolheram-no com muita alegria e beneficiaram também da sua presença, ajudaram-no a recuperar a saúde. Depois seguiu com eles para Assis, onde foi participar no Capítulo das Esteiras, o primeiro que se fez, passados três anos da existência da Família Franciscana, desta nova força da Igreja, no qual também participou São Francisco – foi até, talvez, um esforço do frei Elias, que era na altura o ministro-geral, e que não saberia onde estava São Francisco. Estaria na Terra Santa, que era um sonho dele? Estaria em Marrocos, para continuar a presença dos frades? Apareceu ali e foi uma grande alegria para todos os frades, à volta já de 3 ou 4 mil, verem ali o fundador. Santo António estava presente.
E como foi, do que sabemos, o contacto que tiveram?
Bom, a história não descreve os pormenores.
É isso, não descreve…
Terá sido quase ocasional. São Francisco viu aquele frade, um pouco desconhecido, apresentaram-no como um homem de Lisboa, que se converteu há pouco tempo, e um homem de Ciência. São Francisco conversou com ele, mas naturalmente que não foi logo uma decisão tomada, só mais tarde, cerca de meio ano, quando foi ordenado um padre, no Convento de Rieti, no final havia sempre alguém que dizia umas palavras, que deixava uma mensagem. Como não apareceu nenhum frade para falar, o superior disse: “Tu, António, vais fazer o sermão”. Ele, por obediência, foi fazer o sermão e saiu-lhe tão bem – a primeira parte, segundo dizem os historiadores, foi assim uma partilha muito simples, muito humilde, mas depois pegou nas ciências da Palavra de Deus que ele tinha, até se dizia que sabia todo o Novo Testamento de cor, não precisava de ir ao papel, lançou-as no ambiente que estavam a viver – que foi muito admirado e aplaudido.
É aí que começa a sua dimensão de pregador?
É aí que então São Francisco o chama e lhe diz “tu vai ensinar Teologia aos meus irmãos” e o outro lhe diz “tu vais pregar”. Dá-lhe a missão de pregador e de professor.
Aliás o São Francisco chama o “meu bispo”, a Santo António, porque naquele tempo os doutores eram os bispos, então ele diz “tu és o meu bispo porque sabes as Escrituras e és um homem que conhece a Palavra de Deus e a sabes viver e a sabes pregar também”.
E temos um Santo António mais erudito, mais doutor em Itália, e mais popular em Portugal?
Eu creio que a diferença não deve ser muito grande, mas se calhar tem razão, a popularidade de Santo António em Portugal é maior, ao nível do povo simples, humilde.
Nós vemos, por exemplo, essas manifestações da festa de Santo António que atrai multidões, e não só daqui da nossa Lisboa nem do nosso retangulozinho que é Portugal, mas de todo o mundo, que enchem toda aquela rua.
E o que é que estará na base desta diferença de avaliação da figura de Santo António em Itália e em Portugal? Como é que ele entrou na religiosidade popular de uma forma mais vincada no nosso país?
Portugal nunca teve a pregação de Santo António, ele pregou em Itália, em França, mas em Portugal nunca pregou.
Ao que se diz veio a Portugal uma vez com dupla presença, com o dom da ubiquidade, para salvar o pai de uma sentença de morte que era injusta. Então ele aparece, mas com o dom da ubiquidade, e salva o pai da morte. De resto, nunca pregou em Portugal nem nunca terá pregado em português, mas em italiano, em francês.
É mais visto como um santo casamenteiro?
Também, casamenteiro, aquele que acha as coisas perdidas, aquele que desenrasca os doentes, é o santo dos pobres, é o santo daqueles que são simples e que reconhecem que precisam de alguém para os ajudar.
O Papa Francisco nesta quarta-feira chamou-lhe precisamente o “padroeiro dos pobres e de quem sofre”. Acredito que, para além dessa evocação, exista uma grande obra social desenvolvida a partir da Igreja de Santo António, do pão de Santo António. Que tradição é essa? E sobretudo, que reflexo tem na promoção de quem é mais necessitado?
O pão de Santo António não é bem para matar a fome, o que nós vendemos hoje…
Os resultados dessa venda não ajudam depois obras sociais?
As obras sociais de Caneças e de Dona Maria que são as obras de assistência a crianças pobres, em colaboração com a Segurança Social.
Mas o pão de Santo António inicialmente nasceu exatamente para dar comida a quem tem fome. O inovador deste projeto foi um frade chamado João da Santíssima Trindade que era natural de Geraldes, perto de Peniche, e que foi nomeado ministro provincial, o segundo ministro provincial da Província renascida.
E teve uma atenção especial do então patriarca de Lisboa, que conhecia a devoção dele a Santo António e também os seus dotes oratórios, as suas qualidades humanas e relacionais.
E então pediu para que ele fosse o primeiro reitor da igreja de Santo António, porque até aí, depois do terramoto de Lisboa, em 1755, aquilo teve uma evolução muito complexa até que se chegou à atual igreja e essa atual igreja será mais ou menos uma réplica da primeira, que está por baixo, toda em escombros.
Mas é exatamente nessa igreja, que hoje acolhe os peregrinos de todo o mundo, que foi instituído o pão de Santo António.
Desde há 98 anos que isto existe: todas as semanas há o pão de Santo António, duas vezes por semana. Muda às vezes conforme os reitores – hoje tem uma vertente um pouco mais de alimentação completa, a partir de ofertas do supermercado, de restaurantes que são distribuídas, mas antes era o pão mesmo que alimentava.
Aquele pão pequenino é mais um símbolo da comunhão que Santo António faz com o mundo inteiro.
Então há saquinhos que pedem daqui para muitos lados do mundo, e que vão pelo correio, outros levam com eles nos saquinhos, exatamente para simbolizar esta relação que Santo António tem – não só no hoje, no dia 13 de junho, mas também durante o ano pode-se comer esse pão que nunca apodrece. É tratado de uma forma especial, de maneira que nunca ganha bolor nem apodrece… Se comer daqui a um ano ou dois ainda se pode comer. Está mais rijo, mas pode-se comer.
E a dimensão de partilha com os que menos têm não se perde com a agitação da cidades destes dias?
A nossa vida social, hoje, é diferente de outros tempos. Não vão tanto à procura de uns “milagrinhos”, mas uma devoção de louvor a Santo António. Por exemplo, todas as semanas tiram-se centenas de papelinhos do quadro especial envidraçado que há lá, que dizem ser uma réplica de Giotto.
Não sei se confunde a festa e marchas com a festa do coração das pessoas. Mas essa festa do coração das pessoas não deixa de existir, ligada à festa da relação. Se se viver o encontro com Santo António, na simplicidade do coração, e depois se dança e se canta e se toca música com os amigos e a família, isso é uma partilha muito simpática.
Até que ponto o turismo está a transformar a Igreja de Santo António? Para além de um local de peregrinação é também um ponto turístico?
A Igreja de Santo António, a que chamamos Igreja-Santuário, é um dos passos da rota das peregrinações religiosas: passam por Lisboa, vão a Fátima, seguem para Santiago de Compostela… Hoje, está um pouco diferente: houve uma alteração da Câmara Municipal, que é proprietária da Igreja, e quando, noutros tempos, os autocarros chegavam lá e deixavam os turistas, depois eram chamados no regresso, agora já não sobem. Só os carros e os tuck-tuck…
Mas isso fez diminuir o número de devotos de Santo António?
Dizem que diminuiu um pouco. Já não são tantos os grupos de estrangeiros. Mas nós trabalhamos muito com os guias: cada ano fazemos três ou quatro encontros de fim de semana e partilhamos as experiências deles e usamos a influência que eles têm na visita ao Santuário de Santo António. Não por uma intenção comercial, longe de nós! Mas a passagem por Santo António contribui para a compra do Pão dos Pobres, as obras de assistência social e para a manutenção da Igreja.
Acha que é necessário criar outras soluções de acessibilidade para que grupos pudessem voltar à Igreja de Santo António?
É um problema que não sei responder porque depende da orientação do trânsito na cidade. Começaram a fazer um elevador, a partir do Campo das Cebolas e até à Sé, mas parou há mais de dois anos. Isso seria uma alternativa: os autocarros paravam no Campo das Cebolas, as pessoas subiam no elevador e estavam lá em cima…
O que há de Santo António em todo o mundo, por exemplo a Oriente, para além de Lisboa e Pádua?
Creio que não há nenhuma igreja na Europa que não tenha uma imagem de Santo António! Tenho andado por muitos lados e há três anos estive em Sevilha e foi visitar a Catedral. Procurei uma imagem de Santo António, nos altares e não encontrei nada… À saída, e pensando que os sevilhanos não gostavam de Santo António, perguntei a uma Senhora: ‘Não há aqui uma imagem de Santo António?’ – ‘Sim, em cima’, respondeu ela.
Nós já celebramos a geminação com Santo António de Brive, no Sul de França, em 2008, onde há uma grande comunidade de portugueses emigrantes, numa manifestação linda à volta da cultura portuguesa (porque Santo António é português, embora digam que é de Pádua. Mas é de todo o mundo, como disse o Papa Leão XIII). Essa foi a primeira geminação. A segunda foi na Basílica de Pádua, de forma mais pomposa, onde tive o privilégio de presidir à Eucaristia, repleta, onde assinamos o protocolo entre Lisboa e Pádua. Foi uma alegria ver aquela assembleia da Basílica, de pé a aplaudir o ato da geminação. A terceira foi com a Afragola, em Nápoles, que têm uma devoção “louca” a Santo António. E a quarta foi em Ceuta, no ano passado, onde estão as marcas dos portugueses, quando lá passaram, não apenas nos monumentos, mas na cultura do povo, que é muito relacionada com Santo António, onde foi inaugurada uma casa de retiros em honra de Santo António.