A incidência de Santo Agostinho na cultura portuguesa, sendo mais do que incidência, constitui uma presença multimoda, tanto por referência à Igreja, como por referência fora do quadro eclesial. A sua participação pessoal na polémica do presbítero bracarense Paulo Orósio com o seu compatrício Prisciliano, por causa da liberdade e da graça, da fé e da gnose, das igrejas regionais e da catolicidade da Igreja, quase fez de Santo Agostinho um compatrício nosso e, com efeito, o seu nome aparece sempre como actor no cenário da Patrologia Lusitana do século V, a pretexto das iniciativas em que Paulo Orósio o envolveu contra Orígenes e contra Prisciliano. Orósio pagou em géneros, vindo a ser também envolvido por Agostinho na formulação da doutrina da Providen-cialismo e na apologia a Igreja como o Novo Império erecto sobre as ruínas do velho Império romano, temporal. Agostinho definiu a tese providencialista, que demonstrou no De Civitate Dei mas queria uma dedução factológica, quer dizer, uma prova de que a história caminharia no sentido da Cidade Divina. Em Orósio achou o colaborador que assumiu o encargo, redigindo uma obra notável, lida nas Escolas durante a Idade Média (onde era conhecida por Maesta Mundi, Moléstia do Mundo) e ainda hoje, com o seu título ortónimo – Os Sete Livros de História contra os Pagãos, há pouco tempo finalmente editado em língua portuguesa. Há por esse mundo além intérpretes que defendem a regra de que as edições do Cidade de Deus conviria incluíssem, no fim, o tratado de Orósio… Mestre do Ocidente, que também foi assumido como Mestre do Oriente, Santo Agostinho é, na nossa tradição cultural, Fonte e Mestre. Foi o autor patrístico mais lido e mais seguido durante a Idade Média e o Renas-cimento, e de tal modo respeitado que, escritos houve que por ele influenciados, mas de outros autores, lhe foram atribuídos, de onde a necessidade de a exegese literária distinguir, nessa vastíssima literatura – dogmática, eclesiológica, mística, pneuma-tológica, antropológica – um augustinia-nismo simultâneo do augustinismo, distinguindo o próprio de Agostinho do próprio de escritores espirituais que o seguiram e o imitaram, tal como ainda hoje. Quem ler com olhos de ver o Santo Agostinho segundo Teixeira de Pascoaes, há-de observar como, na essência, Pascoaes recria para si mesmo, e em função da sua alma, o Confissões de Agostinho, que foi e continua sendo, de Agostinho, o texto mais lido, porque assume a realidade íntima da natureza humana, que dobra à humildade gritante do publicano em contraste com a soberba do farisaísmo. No que a Pascoaes se refere, digamos até que o seu Santo Agostinho é duplo: o mesmo Agostinho, e Pascoaes entregue a uma autópsia através do espelho de Agostinho. De facto, todos nós aprendemos nele. De modo directo ou indirecto todos bebemos em Agostinho, até mesmo aquelas pessoas que, nunca o tendo lido, mas achando pensamentos dele avulsos, os registam em suas agendas e diários. Num inventário que tivemos o gosto de por conta e risco elaborar (Santo Agostinho na Cultura Portuguesa. Contributo Bibliográfico, Lisboa, 2000) registámos mais de novecentos títulos, quer de edições e manuscritos da obra do Hiponense, quer de estudos e de biografias e hagiografias que lhe foram dedicadas desde os alvores do português medievo até aos nossos dias. Ele aparece nas áreas de saber mais inesperadas: na teologia monástica, na filosofia escolástica, na ascese e na mística e também, na política como fonte para o que se tem designado por augustinismo político, peculiar ao nosso pensamento organi-zativo do Estado, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Na ordem da Teologia ele veio a ser argumento, de modo especial na fami-gerada questão dos auxílios que opôs tomistas e não-tomistas, mas que foi causa para a definição de uma doutrina de origem portuguesa (devida a Pedro da Fonseca e a Luís de Molina) a da Ciência Média, ou doutrina conciliadora da Presciência, da Providência e da Liberdade. O que viria a achar complexos resíduos no posterior Jansenismo, em que os comentadores ortodoxos ousavam demonstrar um Jansénio vencido perante um Agostinho vitorioso. Nem mesmo o secularizante século XVIII, com o deslumbramento do Iluminis-mo, ofuscou o brilho do Fénix de África, lido e comentado por leigos, alguns deles sem vínculo eclesial, mas que no pensamento de Agostinho acharam bons motivos de reflexão e, sobretudo, úteis argumentos em favor da decaída condição humana. Por desfavor das políticas de instrução pública em alguns países europeus, os magistérios de alguns doutores (Duns Escoto, Tomás de Aquino…) foram como que interditos mas as doutrinas de Agostinho permaneceram, mesmo nas politizantes aulas de uma exótica Teologia Racional, ou Teodiceia. A continuidade da lectio augustiniana permitiu, nos meados do vigésimo século, e na órbita da Antropologia/Filosofia/Teologia, um renovamento que se tem denominado neo-augustinismo, que se iniciou no Seminário de Coimbra, pelo Padre Augusto Amado e se continuou na Faculdade de Letras, mediante o magistério de D. Manuel da Trindade Salgueiro. Ambos formaram discípulos e, hoje em dia, embora se assista a um segundo renovamento, espécie de segundo neo-augustinismo (muito patente em inúmeras teses universitárias o dos meados do vigésimo século permanece ainda, até por causa do influxo do Confissões no romance de pendor existencial. A voga augustiniana foi tal que ela passou a componente de um dos principais romances de Francisco Costa, onde aparece num quase debate com o idealismo Ambos formaram discípulos e, hoje em dia, embora se assista a um segundo renovamento, espécie de segundo neo-augustinismo (muito patente em inúmeras teses universitárias) o dos (à Hegel) germânico. No caso do pensamento filosófico raro podemos cindir Filosofia de Teologia, predominando o ideal (utopia?) do Klimax ou escada ascensional Como se verifica no óbvio augustinismo de Leonardo Coimbra, a vera filosofia quer a teoria (visão), o crer espera o ver, e, por fim, os saberes só valem enquanto ordenados à Sabedoria, que não é um saber particular disto ou daquilo, mas dom e fruto. Não obstante, importa sublinhar que raro o pensamento de Agostinho nos é dado puro. Na interconexão das doutrinas e dos magistérios, há sempre uma tendência que designamos por eclectismo espiritualista, em que Santo Agostinho, Santo Anselmo e São Tomás de Aquino se entrosam uns nos outros, numa ascese de fundamentação da inteligência na crença, ou da visão beatífica na fé: credo ut intelligam ou, no dito de Agostinho (Sermões, 43, 7) entender para crer e crer para entender. O racionalismo pode instituir-se como adversário da Revelação, mas, como vimos em Agostinho, a Razão nunca é adversária da Fé. Ambas são, alfim, dons criacionais do mesmo Criador. E, neste aspecto, Agostinho é muito mais nosso contemporâneo do que vários outros que, sendo do nosso tempo, não são nossos contemporâneos. Pinharanda Gomes