Santarém: Missa de Comemoração de todos os Fiéis de Defuntos com Requiem de Mozart

A Diocese de Santarém e a Câmara Municipal de Santarém possibilitaram uma experiência única a todos os que quiseram participar na celebração da Eucaristia na Sé de Santarém, no dia de Fiéis Defuntos, presidida pelo Bispo da Diocese, em que a Orquestra Sinfonietta de Lisboa & Coro Ricercare executaram o Requiem de Mozart, sob a direcção do maestro Vasco Pearce de Azevedo, nos vários momentos próprios da celebração. O Requiem de Mozart, peça do Tesouro musical da Igreja e afinal desta nossa Velha Europa, ocupou o lugar para que foi criado, a Celebração da Sagrada Liturgia. Já doente e no leito de morte, Mozart trabalhava no Requiem. A etérea melodia do Lacrimosa foi a última coisa que saiu daquela pena divina. Ao terminar de escrever esta melodia, lágrimas lhe vieram aos olhos, e suas mãos deixaram cair a partitura. Pouco mais tarde, à uma hora da manhã do dia 5 de Dezembro de 1791 (no mesmo dia que em 1570, o Papa Pio V promulgava o Missal saído do Concílio de Trento), o mestre estava morto. Alguém escreveu: Um profundo sentimento religioso se evola daquelas notas, que parecem saídas de uma alma em directa comunicação com a Deus. O Descanso na luz perpétua (Homilia de D. Manuel Pelino na celebração de fiéis defuntos de 2006, na Sé de Santarém ) 1. “Requiem aeternam dona eis Domine”. (Dai-lhes Senhor o eterno descanso). Com estas palavras inicia a Missa de Requiem de Mozart. É uma súplica comovente que traduz em linguagem musical uma experiência profundamente humana como é o reconhecimento da nossa debilidade, da nossa condição efémera de peregrinos em trânsito para a eternidade. É um grito de confiança no mistério de Deus, origem e apoio da vida humana e juiz dos nossos actos. Parece exprimir um sentimento geral de todos os mortais. Só assim se explica, no meu entender, que esta obra musical seja sempre actual e não envelheça com o tempo. “Et Lux perpetua luceat eis”. (Brilhe para eles a luz perpétua), continua o intróito. Que descansem na paz, na Vossa paz definitiva e plena. O dia de fiéis defuntos é, na tradição da Igreja, uma jornada de oração pelos que partiram, sobretudo por aqueles a quem estamos ligados. Neste contexto podemos entender e viver em toda a sua riqueza esta oratória do Requiem de Mozart. Arranca da fé de que Deus é o autor e o Senhor da vida e o Redentor do homem, Assenta na convicção de que Jesus Cristo morreu e ressuscitou e de que a luz da Sua Ressurreição ilumina e vence as trevas da nossa morte. Todos os que acreditam em Cristo, morto e ressuscitado pela nossa salvação, participam da sua vitória sobre a morte. Por isso, pedimos que os nossos defuntos vivam na luz de Deus, participem plenamente na Luz da Ressurreição, na luz sem ocaso que tudo ilumina. Que gozem do descanso eterno, idêntico ao descanso do sétimo dia da criação, um descanso feliz de quem contempla com agrado a obra realizada, um descanso de quem combateu o bom combate e concluiu com êxito a carreira. Existe, portanto, uma experiência humana profunda que está subjacente a esta peça oratória: A experiência da nossa finitude humana, o reconhecimento da nossa condição de criaturas, de seres peregrinos que habitam o mundo de passagem, a consciência da nossa provisoriedade e fragilidade. Este reconhecimento não conduz à revolta ou ao desânimo mas traduz-se na humildade e na súplica confiante. Deus é o nosso Redentor: “Eu sei que o meu redentor vive” (Job). Ele tem poder para libertar as suas criaturas, a quem ama como filhos, da escravidão da morte. A vida humana é, frequentemente, muito dolorosa e sacrificada. Que os nossos defuntos, após o sofrimento da vida e da morte, encontrem a paz no paraíso, no seio de Abraão, a paz feita de harmonia na pátria definitiva. Qui audis orationem, ad te omnis caro veniet propter iniquitatem, continua o Intróito. (Toda a criatura, inquieta pela sua iniquidade, recorre a Ti porque escutas a nossa oração). É uma oração feita com o coração diante de uma situação dramática, inspirada pela fé, enriquecida pelo sentimento. È uma súplica que todos partilham porque diante da morte todos se sentem pobres e desamparados. O intróito, a introdução, dá o sentido e resume o conteúdo do Requiem. É uma oração tradicional da piedade cristã que, nestes dias, devemos repetir com frequência. 2. É com esperança e com cânticos de louvor que a tradição cristã encara a morte. A esperança cristã alimenta-se de experiências profundas narradas na Bíblia, como a experiência de Job e, sobretudo, a experiência central do mistério pascal de Cristo que por nós se entregou à morte e pela Ressurreição nos alcançou a vida plena. Estas experiências fundantes da esperança cristã não nos livram do sofrimento, das feridas e da angústia da morte. Mas permitem-nos encarar a tragédia do sofrimento e da morte como a porta para a ressurreição. O Requiem de Mozart exprime este sentimento de dor profunda, de impotência perante a morte mas proclama igualmente a esperança e a confiança na misericórdia de Deus: “Peccatricem qui solvisti et latronem exaudisti, mihi quoque spem dedisti” (Vós que absolvestes a pecadora e acolhestes o bom ladrão também me dais uma grande esperança). O cristianismo introduziu, na concepção da morte e na celebração das exéquias, uma perspectiva revolucionária, como reconhecem todos os que analisam esclarecidamente a história das culturas: A compaixão de Deus pela sua criatura que leva até à partilha divina do sofrimento humano e o sentido redentor do sofrimento e da morte, como porta de entrada numa vida nova, são perspectivas que mudaram a atitude perante a morte e convidam à virtude da esperança. Quando rezamos por aqueles que partiram, tomamos consciência da nossa condição mortal e aprendemos a encarar a morte de frente, sem rodeios, sem ilusões. “Viver é aprender a morrer”, segundo um filósofo. Aprender a morrer é aprender a viver: A viver com responsabilidade, com plenitude, com encanto. Porque esconder a morte, ou iludi-la, ou negá-la, como algumas modas culturais tentam, é empobrecer a vida e perder o sentido da realidade. 3. “Dies irae, dies illa, quantus tremor est futurus quando judex est venturus ». Dia da ira, dia terrível, será o dia do juízo: Com estas palavras impressionantes começa a sequência ou hino de meditação do Requiem. A composição musical realça o dramatismo do texto. O tema do juízo final inspirou muitas obras de arte (música e pintura). No entanto, este hino “Dies irae” foi posto de lado na renovação conciliar da liturgia. Na verdade, parece pouco adequado ao rosto de misericórdia do Deus de Jesus Cristo. Afasta-se da tradição e da novidade do evangelho que realça o perdão e a proximidade de Deus. Há quem questione o facto de ter sido abandonado pela liturgia de defuntos: Teremos medo de falar da morte? Não será educativo chamar a atenção para a prestação de contas a Deus de modo a ajudar na conversão e dissuadir de praticar acções pecaminosas? De qualquer modo, este hino ou sequência apresenta-se como uma súplica humilde, de fé e confiança. Uma estrofe deste hino, dotada de grande força expressiva, pode servir de conclusão: “Rex tremendae maiestatis qui salvando salvas grátis, salva me fons pietatis”: (Rei de tremenda majestade que nos salvas gratuitamente, salva-me fonte de piedade). A música dá a ideia de um coro de pecadores, conscientes da sua pobreza, que erguem a voz humilde a pedir clemência: “Salva me fons pietatis”. Só pela graça e pela misericórdia seremos salvos. Jesus Cristo apresentou-se no meio de nós como um rei, não de majestade distante e rígida, mas de proximidade e de serviço: veio para servir e dar a vida. Esta estrofe é um convite à confiança no perdão de Deus que nos aceita como somos e que, apesar das nossas infidelidades, sempre recomeça connosco a Aliança de amor. Guardemos no coração este pedido: “Salva-nos Senhor, conta-nos entre os eleitos, faz-nos participantes da comunhão dos santos”. Ámen.

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