SABER APRENDER – Que existem sentidos relacionais

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Ao contrário dos mais adultos (45-65 anos), os jovens desejam estar presentes nos encontros religiosos depois da experiência on-line imposta pela pandemia. É esta a conclusão que me chamou mais a atenção num estudo de Clara Santos e Margarida Franca sobre a prática religiosa e experiência digital no tempo da pandemia. O desejo dos jovens justifica-se com a fadiga digital de muitas horas passadas à frente de ecrãs, mas não deixa de ser curioso como sem aulas e com a possibilidade de celebrações e experiências religiosas presenciais, os jovens continuam colados ao ecrã. Talvez não seja a fadiga de ecrã, mas a atractividade do conteúdo consumido.

Foto de Jay-Pee Peña em Unsplash

Apurvakumar Pandya e Pragya Lodha (conseguiram pronunciar os nomes?), médicos e envestigadores na Índia, fizeram uma revisão de diversos estudos sobre o efeito dos tempos de ecrã durante a pandemia. Concluíram que o efeito prolongado desse tempo de ecrã estava a afectar a saúde das pessoas, sobretudo a mental. No início de outubro de 2021, um relatório; da UNICEF alertava para este aspecto relacionando-o com a saúde mental dos jovens que está muito ligada às dinâmicas do ambiente que os rodeia. Por isso, não fico admirado pela redução substancial da intenção dos jovens (15-24 anos) em reduzir a participação virtual em experiências de ídole religiosa. Pois, a experiência espiritual feita na presença uns dos outros induz um grau de profundidade que um ecrã nunca conseguirá proporcionar. Porém, se os jovens (e adultos) permanecem colados a ecrãs deve-se ao conteúdo mais consumido ser o do entretenimento.

Ver uma missa online não é nem pretende ser um momento de entretenimento. Esse, de acordo com um estudo; na JAMA Pedriatics feito por investigadores americanos, é responsável pelo aumento do tempo de ecrã nos adolescentes quase para o dobro durante a pandemia. A necessidade de usarmos as plataformas digitais para o ensino levou ao consumo excessivo de entretenimento que acabou por aumentar os níveis de ansiedade e depressão nos jovens, o que parece um contra-senso. Pois, não estão os jovens entretidos? A razão pela qual um adolescente pode estar muito tempo diante de um ecrã pode dever-se ao desejo de fugir dos problemas que vive, sobretudo os interiores, e que pensa poder alhear-se dos mesmos através do entretenimento. Mas como dizia Neil Postman no título de um dos seus perspicazes livros — “Entretermo-nos até morrer”. Pelo contrário, o relacionamento pessoal presencial é uma fonte de vida.

Participei em algumas actividades de teor espiritual nos últimos tempos com todos os cuidados e regras sanitárias cumpridas e nada, nada feito virtualmente é capaz de substituir essa experiência. Mas a emergência de novas ondas pandémicas com novas variantes e novos constrangimentos levam-nos a pensar se a via digital continua a ser uma solução. Aparentemente, tudo leva a crer que não. Por isso, vale a pena insistir no desenvolvimento da capacidade tecnológica de proporcionar experiências espirituais?

Uma experiência espiritual é relacional. Seja do ponto de vista da relação com Deus ou com os nossos irmãos na fé ou na ausência de fé (com todos, na verdade), pois, o sentido da presença estravasa o olhar. A presença envolve todos os nossos sentidos físicos e a ligação entre o material e o que está para além desse ocorre na relacionalidade sensorial, aliada a uma dimensão acessível pela consciência que pode dar a uma experiência o seu sabor e significado sagrados.

A vida digital tem virtualizado muito o espaço relacional. Por um lado, as pessoas estão fartas do online e procuram experiências encarnadas (onlife) a partir daquilo que conseguem conhecer. Mas, por outro lado, há algo que se esconde por detrás da nuvem do desconhecido e que nos faz sentir haver algo mais que está para além de tudo o que acontece à nossa volta. Esse lado conduz a nossa procura pelos caminhos que ligam o interior ao exterior, tortuosos, surpreendentes e nem sempre evidentes. De certo modo, o facto da vida digital trazer para a experiência sensível uma visualização de coisas imaginárias, inexistentes, não sei se sacia alguma sede de infinito, ou se nos afasta do Infinito. A vida física é essencial, mas insuficiente para saciar esta sede de Infinito, mas a vida digital, apesar de nos conectar, também se revela insuficiente. E a vida espiritual não se sente sem a física. Por isso, a vida que congrega a física, a digital(mental) e a espiritual parece-me ser a vida profunda.

A vida profunda que une as diversas dimensões da existência humana manifesta-se em quatro sentidos relacionais: comunitário; artístico; corpóreo; e contemplativo.

  • O sentido relacional comunitário está patente, por exemplo, na necessidade que os jovens têm de encontros presenciais para fazerem experiências espirituais profundas.
  • O sentido relacional artístico está no desenvolvimento da capacidade humana de manifestar exteriormente a vivência e compreensão interior das realidades escondidas neste mundo.
  • O sentido relacional corpóreo impulsiona-nos a procurar o equilíbrio das várias dimensões da saúde do nosso corpo, indo para além daquilo que cada um dos cinco sentidos físicos nos oferece, e revelando um todo corpo-mente-espírito que é maior do que a soma das partes.
  • O sentido relacional contemplativo leva-nos a olhar para o céu, as estrelas, as flores, o mar e a intuir como tudo está ligado e como a nossa história pessoal se entrelaça com a história universal.

A visão oferecida pela vida profunda é grande e plena de significado, mas há quem prefira viver as realidades concretas que tem diante de si no “aqui e agora”. Pensa que tudo o que tem é o que tem agora e que se não desfrutar daquilo que possui, perde as oportunidades que as gratificações instantâneas obtidas a partir dessas realidades lhe abrem. Mas isso é efémero, logo, superficial e oposto à vida profunda. A digitalização da nossa vida pode oferecer a gratificação instantânea, mas o aprofundamento da nossa vida através dos sentidos relacionais suscita em nós uma gratidão etérea.

A gratidão move-nos para fora de nós mesmos na direcção da relação que pode gerar novos relacionamentos. Na prática, a vida profunda é fecunda e aquilo que é presencial e, por isso, aparentemente uma experiência passada, acaba por se revelar o desejo do presente e a garantia do futuro.


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