SABER APRENDER – Que a realidade é relacional

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Em 2005, o modo como eu compreendia o mundo iria alterar-se radicalmente. Encontrava-me em Itália para um congresso do EcoOne, uma iniciativa cultural do Movimento dos Focolares dedicada às questões ecológicas, e um dos fundadores desta iniciativa, o filósofo Sérgio Rondinara, perguntou — «qual a marca de Deus na criação?» Ocorreram-me algumas coisas, mas não esperava a sua resposta— a relacionalidade. E a partir daquele momento, o mundo era totalmente diferente para mim.

Foto de Priscilla Du Preez em Unsplash

A ideia de que tudo está em relação com tudo na natureza vem do tempo do explorador Alexander von Humboldt. Depois, durante aquele encontro, lemos juntos uma carta que Chiara Lubich, a fundadora dos Focolares, tinha escrito como manifesto do EcoOne, onde acrescentava — «tudo está em relação de amor com tudo» — E, finalmente, o Papa Francisco na Laudato Si’ torna esta ideia fundacional da nossa compreensão da natureza, uma ideia-chave da leitura cristã para a vida espiritual. Outra coisa não seria de esperar quando a experiência de Deus é a de um Deus-Trindade. O que me levou a não ficar admirado com a linha interpretativa que está a emergir na Mecânica Quântica.

Há algum tempo que Carlo Rovelli tem disseminado uma visão relacional da mecânica quântica partilhada por outros físicos como Lee Smolin e a portuguesa Marina Cortês. Nessa visão, os objectos não existem se não estiverem em relação entre si. Apesar de não haver ainda um teste para verificar esta teoria, a intuição dos físicos alinha-se com a de Alexander von Humboldt, Sergio Rondinara, Chiara Lubich, o Papa Francisco, e tantos outros das mais diversas áreas do saber humano. A ideia principal é a de uma visão relacional do mundo. Quer isso dizer que posso percepcionar a minha existência ao relacionar-me com a porta de um carro?

Esta questão foi-me feita pelo filósofo Manuel Curado em 2009. Na altura, não sabia se estava a gozar com a visão relacional que havia partilhado numa comunicação no âmbito de um congresso dedicado a Darwin, ou estaria a fazer-me, seriamente, a questão. Acho que estava a gozar… Mas a orientação que Rovelli e outros estão a dar aos desenvolvimentos da mecânica quântica aponta para a resposta — Sim.» — que dei ao Manuel Curado. Porém, da mesma forma que o relacionamento que tinha com a minha filha bebé não é o mesmo, agora, que entrou na fase adulta, também os relacionamentos possuem diferentes graus de vivência e não podemos reduzi-los ao mesmo tipo.

Num mundo em que empresas como a Meta, pretendem voltar o nosso olhar e existência para realidades virtuais, se temos dificuldade em distinguir a realidade-tal-qual-é sem a digitalização, temo que esta última possa agravar a ténue percepção que temos da realidade física experimentada através dos relacionamentos. Do mesmo modo que uma casa precisa de bons alicerces, a percepção da realidade precisa de alicerces assentes na relacionalidade. Eu, por mim próprio, sou muito limitado naquilo que conheço e compreendo daquilo que conheço, mas ao relacionar-me com outras pessoas, assento o que informa a minha visão do mundo na partilha dessa visão com os outros. Por esse motivo, é de extremo valor termos relacionamentos com pessoas que pensam de forma diferente de nós. Um desafio, certamente.

Recentemente ouvi os argumentos do teólogo e filósofo Luis Manuel Pereira da Silva sobre as razões que fazem da lei da eutanásia, uma lei má. Revi-me na lógica e nos argumentos. E quando percebi que a primeira pessoa que interagiu com o Luis era a deputada Isabel Moreira, pessoalmente, fiquei logo de pé atrás por discordar em muito sobre a forma de argumentação desta deputada que me parece mais fechada sobre si mesma, do que aberta à visão dos outros. Realmente, a intervenção de Isabel Moreira começa por salientar as clivagens e daí não passou. Isso não deveria acontecer quando vivemos a realidade como relacional, assim como eu não devia estar de pé atrás em relação a pessoas que têm visões diferentes da minha.

Saber aprender que a realidade é relacional implica estar atento à opinião diferente da minha porque dessa diferença surgem compreensões novas e impensadas. A mecânica quântica assenta muito do papel que a observação de algo na decisão sobre o que existe ou não. Assim, se a visão relacional estiver correcta, e a existência depender antes da interacção das coisas entre si, os relacionamentos abertos à mudança (nem que seja de opinião) seria um elemento chave para a transformação do mundo. Contudo, o que é mesmo a realidade? Honestamente, não sei. E neste não saber abre-se uma via relacional de aprofundamento recíproco entre o meu saber e o saber dos outros. Aliás, quando criticamos o valor das opiniões por serem subjectivas, na relacionalidade, as opiniões tornam-se inter-subjectivas e mantêm uma cultura de abertura à visão da realidade que o relacionamento com o outro revela.

O facto de Rovelli reconhecer que não existe teste ainda para esta visão relacional da mecânica quântica poderia demover qualquer um de a explorar melhor. Mas Rovelli diz que — «a ciência não se restringe às coisas directamente testáveis. Procura, também, a estrutura conceptual certa, uma que funcione.» — mas quando na entrevista fala sobre as realidades últimas, afirma que — «deveríamos sair da atitude mental de que a realidade última é matéria ou linguagem ou Deus ou mente ou espírito.» Eu percebo a ideia de quem não acredita em Deus, ao considerá-Lo como uma coisa entre outras coisas, ou uma explicação entre outras explicações, mas aqui a visão relacional deveria procurar entrar mais em diálogo com a teologia. Pois, a realidade última não é, também, mais uma entre várias realidades.

A intuição presente na experiência cristã de um Deus-Trindade é a de que a Realidade Última não passa de um construto humano que nos mantém abertos ao novo. Isto é, dizer — «Não sei.» — perante aquilo que pensamos ser a Realidade Última é muito mais do que um reconhecimento humilde. É uma demonstração de quem tem uma atitude mental aberta que reconhece a importância dos relacionamentos para não se fechar na omnipotência das suas opiniões. E dessa douta ignorância se abrem vias criativas relacionais que revelam como sozinhos, há quem chegue mais rápido, mas que juntos, todos chegaremos mais longe.


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