SABER APRENDER – O valor ilimitado das escolhas limitadas

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Ter de ficar em casa limita as nossas escolhas, e quando temos menos por onde escolher, estudos afirmam que se facilita a escolha. Então, por que razão é tão difícil quando temos tão pouco por onde escolher? É tudo uma questão de discernimento.

Quando discernimos não nos restringimos apenas ao que fazemos, mas envolve também o que somos e pensamos. Daí a dificuldade em discernir.

«É fundamental que pensemos o que sentimos e fazemos; sintamos o que pensamos e fazemos; façamos o que pensamos e sentimos. Temos de usar a linguagem da cabeça, do coração e das mãos.» (Papa Francisco)

Discernir é, assim, um acto que envolve a interligação entre:

  • a cabeça: que nos dá uma percepção das coisas tal como são;
  • o coração: que envolve a confiança que temos naquilo de que somos capazes e no caminho a seguir;
  • as mãos: que são expressão do nosso comportamento no quotidiano e sinal de coerência de vida.

Na prática, trabalhar a interligação entre a percepção (cabeça), confiança (coração) e comportamento (mãos) implica criar os hábitos saudáveis que permitem um contributo positivo de todos estes elementos em qualquer escolha ou processo de discernimento durante este período desafiante.

Nutrir a cabeça

Ler aguça a mente. Não há melhor hábito a criar do que o da leitura para manter a nossa mente saudável. Muitos resistem à leitura pela visão da grossura do livro, pelo preconceito do gosto ou pelas responsabilidades que continuam a querer preencher a totalidade do nosso tempo. Mas as boas práticas para criar qualquer hábito implicam torná-lo:

  • evidente: por exemplo, deixar o livro em cima da almofada para nos lembrarmos dele ao deitar;
  • atractivo: escolher um livro pequeno para começar;
  • fácil: ler apenas por 5 minutos usando um temporizador e não ter receio em gastar mais uns segundos para terminar um parágrafo. Aumentar gradualmente esse tempo.
  • e gratificante: com o tempo, o nosso cérebro parece compreender melhor aquilo que lê, e não há cheiro como o das páginas de um livro para respirarmos conhecimento ou imaginação.

Mas ler não chega para aprimorar o aguçar a mente.

Ser crítico. Numa era em que as armas de desinformação em massa proliferam através das redes sociais e dos noticiários online, é fundamental ser crítico, examinando tudo a partir de diversas fontes e não de uma só, ou da primeira que encontramos. Use it or lose it – se não usarmos a cabeça, não desenvolvemos uma autêntica percepção das coisas. Porém, não se pode confundir ser crítico com criticar. As palavras que usamos irão afectar o coração.

Sensibilizar o coração

Quando nos referimos ao coração pensamos nos sentimentos. A capacidade de gerir as emoções é mais importante nesta situação do que alguma vez foi na nossa história. E o modo como sentimos influi sobre a confiança que temos nas nossas capacidades de lidar com situações em que nos encontramos limitados nas nossas escolhas. Assim, o coração precisa da prática de algo simples e acessível a todos.

Gratidão. Os gestos mais simples que podemos ter em casa são uma oportunidade de praticar esta gratidão. Quando alguém faz as refeições, ou arruma uma parte da casa, ou se oferece para ir às compras e arrisca a sua saúde, ou vai a casa de alguém levar mantimentos ou algo que precisa (por exemplo, alguns frades e sacerdotes oferecem um ouvido para escutar), tudo é motivo para praticarmos o quanto estamos gratos.

Quando respiramos não notamos a importância que isso tem. Mas aqueles que estão a sofrer com o coronavírus SARS-CoV-2 podem ter sérios problemas respiratórios e o que damos por descontado é o que faz alguns viver no limbo entre a vida e a morte. Estar gratos por respirar bem tem um valor especial nestes dias.

Treinar as mãos

Há quem faça muito em casa e há quem faça pouco. Há quem viva sozinho e tem tudo para fazer. Há quem viva com tantas pessoas que acaba por nada conseguir fazer. Mas treinar as mãos não é fazer, mas discernir o que ser.

Estar atento. Por vezes ficamos tão absortos em saber a última notícia, ou ver as reacções às nossas mensagens, que ficamos presos ao imenso fluxo de informação do presente, perdendo uma importante capacidade humana colectiva de sobrevivência: a procura e compreensão do contexto.

A economia da atenção que prende o olhar e o tempo de muitas pessoas ao rol de mensagens ou notícias no mural das suas redes sociais, acaba por prender a atenção a um contexto particular, arriscando a cegueira em relação ao contexto da narrativa histórica onde determinados fluxos de informação se inserem.

Por outro lado, em vez de estarmos atentos ao que se passa ao nosso redor, somos retirados da realidade física para nos afundarmos na realidade virtualizada, e perdermos o desenrolar dos acontecimentos reais que acontecem à nossa volta.

A longo prazo, e propensão para procurar compreender o contexto, importante para a sobrevivência colectiva, e que pode orientar-nos no modo como usamos as nossas mãos, vai-se esvanecendo na atractividade da gratificação instantânea obtida no momento. Algo que influi sobre os nossos padrões de discernimento e, consequentemente, o nosso comportamento.

Uma boa prática passa por cultivar actividades mais analógicas que envolvam as nossas mãos e alarguem a nossa atenção. Pode ser estender a roupa, aspirar o chão, fazer a cama, ou mesmo tocar um instrumento, pendurar um quadro, fazer um puzzle, isto é, actividades que nos ajudam a trabalhar a atenção de longo-prazo onde as gratificações não são instantâneas, mas relacionais e crescentes com o tempo. No fim, acabamos por desenvolver também a virtude da paciência connosco próprios, com os outros e com o mundo.

Paciência que se desenvolve com a oração, como o sacerdote jesuíta Joseph Tetlow SJ no seu livro Sempre em Discernimento ao dizer que aprendeu «o valor precioso das orações e salmos memorizados, quando as horas da noite são longas e solitárias: nutrem a paciência.»

Paciência que nos permite gerir melhor o tempo exigido pelo discernimento daquilo que traz valor real à nossa vida.

Paciência que nos leva a encontrar o valor ilimitado das poucas escolhas que temos diante de nós.

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