Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Quando era criança, o S representava o símbolo do Super-Homem, um mundo de heróis, fantasia e repleto de imaginação. Quando entrei na Universidade em Engenharia Mecânica, o S passou a representar a entropia de um sistema. Hoje, ao aproximarmo-nos do final do ano mais atípico que alguma vez vivi e, talvez, a maior parte de nós, o S representa um Sim.
Quando era miúdo, muita coisa girava em torno da minha vontade. Quando estava na Universidade, comecei a perceber que existe, também, a vontade dos outros. Mas nesta fase mais adulta da vida, entendo que a única vontade sobre a qual vale a pena assentar os “Sim”s da vida com real valor é a Vontade de Deus. É sobre esse prisma que o “S” pode assumir significados que me ajudam a reflectir sobre o ano da pandemia que muitos desejam esquecer, mas cuja memória das lições que nos trouxe parece-me importante guardar na mente e no coração.
Seria totalmente impensável no final de 2019 imaginar o que viveríamos em 2020. No dia 30 de dezembro de 2019, já sabíamos da existência de uma pandemia, mas estávamos longe de imaginar que essa alteraria o curso da nossa história. Quantos sonhos foram adiados, projectos alterados ou abdicados, modos de ser e estar que se alteraram, e quando a relacionalidade faz parte do núcleo central do viver humano, vimos a necessidade do distanciamento físico como um dos maiores desafios à cultura social. Em 2020, a humanidade teve de se re-inventar e ao pensar no Sim a Deus que podemos dar com a nossa vida, vieram-me à memória três S’s.
De facto, o S representa a entropia de um sistema que na linguagem mais acessível à compreensão humana se traduz no seu estado de desordem. Quanto maior o caos de um sistema, maior a desordem, e maior é a sua entropia. Por isso, como é possível que haja sequer ordem? Pode surgir ordem a partir do caos? Sim.
À ordem a partir do caos que gera vida, o físico Piero Pasolini chamava de Sintropia. É como se houvesse um lado da vida que contradiz a desordem que dela faz parte. Este ano sentimos um aumento da desordem a vários níveis (político, social, ambiental, etc.), mas sobretudo ao nível da vida das nossas famílias com toda a adaptação à nova situação. Mas quanta vida não surgiu daí. Quantos actos de amor para levar pão a quem não o podia comprar, ou um computador a quem precisava para continuar a aprender, e quantos encontros feitos remotamente que, se fossem presencialmente, estariam muito limitados pela difícil consonância de disponibilidades.
Primeiro S: Sintropia.
Uma outra experiência que adveio da fase de confinamento foi a diminuição de alguns ritmos. Antes andávamos de carro de um lado para o outro, sempre sem tempo, a atender isto e aquilo, este e aquele, dando uma dinâmica à nossa vida que entrava no eixo da Grande Aceleração que o mundo tem sentido com a actividade humana desde os anos de 1950.
O confinamento fez com que o carro ficasse a maior parte do tempo na garagem ou exterior, mas parado. Os ritmos em algumas frentes desaceleraram, e quando saímos do confinamento senti uma necessidade inexplicável de conduzir mais lentamente, criando, interiormente, a adesão a um Slow Drive Movement — Movimento da Condução Lenta. E de cada vez que começava a acelerar, lembrava-me da adesão, travava, e o resultado era uma maior calma a falar, a reagir, dedicando mais tempo ao que realmente tem valor. Slow é a palavra em inglês para o que poderia ser um segundo S, mas em português, o segundo S, através da lentidão, revelou-se como Solenidade.
Fazer as coisas com mais calma, e bem, porque desejamos saborear cada momento que temos, por estarmos vivos, por superarmos cada dificuldade quando tantos sofrem com esta pandemia, tornava cada instante um momento solene de gratidão a Deus e à Sua vontade no presente.
Segundo S: Solenidade.
Por fim, penso que durante o período de confinamento, muitos sentiram que o som das nossas cidades se alterou quando deixaram de circular carros como antes. Experimentámos o silêncio.
A azáfama da vida, e a enganadora sensação de realização que as redes sociais nos podem dar, haviam retirado, gradualmente, e sem nos darmos muito conta disso, os espaços de silêncio. Apesar de ser por meio da dor de uma pandemia, na nossa vida, o silêncio voltou a encontrar um espaço. Mas nem todos se deram bem com isso.
De facto, o silêncio revela-nos a nossa maior ou menor capacidade de estarmos junto com os nossos pensamentos em solitude. O silêncio é uma prática de escuta do nosso interior e muitos receiam esse encontro dentro de si por poderem não gostar do que irão encontrar. Talvez mais vazio do que pensavam. Talvez mais confuso do que gostariam. Talvez mais cheio do que devia estar.
Terceiro S: Silêncio
Ao reflectir sobre o ano de 2020, muitos poderão centrar a sua atenção em outros S’s como o Stress, e a Saturação, por não concordarem com todas as precauções que estamos a tomar. Mas todos reconhecemos a importância da saúde, da segurança para os próximos tempos, e da simplicidade para nos mantermos atentos à vontade de Deus e ao que Ele nos quer dizer.
Chegará o tempo de sair e saudar com os abraços e beijos que saciam a saudade do encontro físico, sentido e sincero. Nesse sentido, convém lembrar da importância de tornar mais flexíveis e adaptáveis os nossos propósitos para o Novo Ano de 2021. Por vezes, queremos tanto uma coisa que esquecemos sempre a mais essencial: querer o que Deus quer. Pois, na Sua vontade encontramos sempre, o sentido e significado da esperança que nos move a dar o próximo passo com sabedoria. Aquele passo ritmado pela melodia em Sim Maior escrita em clave de Sol de Deus que nos ilumina por dentro, de modo a que a nossa vida seja cada vez mais plena e profunda.