Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Pedem-nos para ficar em casa. Uns ficam sozinhos começam a falar com as paredes, as janelas, os móveis e só existe problema se algum dia estes responderem, certo? Outros vivem uma grande azáfama em casa, com crianças a trepar por tudo o que é sítio ou a exigir este mundo e o outro.
Pedem-nos para ficar em casa.
Pedem-nos e temos de obedecer. Mas quando pensamos nesta palavra ficamos apreensivos porque nos sentimos obrigados a uma coisa que não é fruto de uma escolha pessoal. Mas talvez o significado da palavra obedecer ajude a dar-nos uma nova perspectiva sobre a situação em que vivemos.
Obedecer é uma palavra com origem latina que contém uma outra: audire, ouvir. Assim, no seu sentido original, obedecer significa escutar atentamente. E por que razão é importante neste momento da nossa história aprender a obedecer, ou seja, a escutar atentamente? Eu penso que seja pela possibilidade de descobrirmos o valor real de tantas coisas para as quais, antes, não havia tempo.
Por outro lado, nas nossas cabeças passa o pensamento do PORQUÊ? de tudo isto e onde está o amor de Deus no meio de tanto sofrimento que qualquer pandemia traz.
Não há uma resposta por uma razão muito simples, e que talvez se compreenda bem com uma metáfora que ouvi de um bispo americano nos últimos dias. Todos os acontecimentos, dos mais pessoais, aos mais sociais, ao mundiais são como ter milhares de milhões de tabuleiros de xadrez com jogos simultâneos entre dois jogadores: Deus e o Mundo. E, ainda por cima, se pensarmos que se trata de um xadrez mais avançado em que o movimento de uma peça num dos tabuleiros afecta o jogo de todos os outros, procurar uma razão para um acontecimento como é o caso da COVID-19 é negligenciar que esse se enquadra num tecido de acontecimentos que perfaz o manto da narrativa histórica.
Em síntese, é impossível dar uma razão para esta pandemia sem perder a visão do todo universal que a mente humana não possui a capacidade de abarcar. Quando pedimos a Deus a luz para entender a razão de tudo isto, estamos a pedir algo a Deus que não temos capacidade de acolher com a nossa inteligência. Porém, para santos como John Henry Newman, entender o alcance verdadeiro da nossa inteligência não passa por iluminar todo o caminho de uma só vez, diz ele num poema lindíssimo ”O Pilar da Núvem”
«Guia-me, amável Luz, entre a escuridão que me rodeia. Guia-me! A noite está escura e eu estou longe de casa. Guia-me!
Cuida de meus passos; não posso ver a paisagem distante. Um passo é o suficiente para mim.»
Não estamos longe de casa, mas parece estarmos presos dentro de casa e se centrássemos os passos, gestos, actos a realizar em cada dia no amor, tudo o que poderíamos pedir a Deus é a luz para dar o próximo passo. Concretamente, qual o passo de amor que posso dar a seguir?
Pode ser fazer a cama, arranjar-me (em vez de estar o dia todo de pijama), preparar uma boa refeição, arrumar a cozinha, escutar a história contada por uma criança, ou algo que alguém tenha aprendido ou lido; pode ser fazer um telefonema a alguém que está longe, ou perto, mas sozinho em casa. Se o ser humano imagina ao sonhar, acordado, também a sua imaginação não tem limites.
E quanto às pessoas que estão literalmente sozinhas em casa. Que passos podem dar? Recorda-me história da médica de origem Húngara Edith Bone que esteve presa durante sete anos na Hungria após a Segunda Guerra Mundial, acusada injustamente de espionagem pelo regime comunista. Esteve sete anos numa prisão solitária e quando foi libertada tinha uma série de jornalistas que a aguardavam à saída da prisão. Queriam ser os primeiros a ver o estado físico e mental em que estava porque, seguramente, daria uma boa notícia de jornal. Mas ficaram desiludidos.
Edith saiu com um aspecto físico e mental normal. Sobretudo o mental foi o que mais impressionou os jornalistas. Como pode alguém sobreviver ao isolamento durante tanto tempo e conservar a sua sanidade mental?
Não deixou de exercitar a sua agilidade mental e mãos engenhosas.
Revia na sua cabeça conceitos de geometria, dizia poemas que havia memorizado nas diversas línguas que conhecia, reconstruiu os enredos de todos os livros que tinha lido, fez uma lista de todas as personagens que se lembrava das peças de Shakespeare e construiu, inclusivé, letras de pão endurecido pelo tempo e com estas compunha poesias. Conta que durante algum tempo conseguiu remover o pedaço de uma unha e, afiando-a no chão, escavou um pequeno buraco ao longo de semanas para deixar a luz do exterior entrar na sua escura cela.
Com Edith Bone aprendemos que se mantivermos a nossa mente estimulada por pequenos e simples projectos, com objectivos específicos, conseguimos manter a nossa sanidade mental em tempo de isolamento, ou distanciamento social como o nosso.
Precisamos apenas da luz para saber o passo seguinte a dar no amor para que, com o tempo, deixemos crescer em nós aquela capacidade para a escuta atenta que faz da obediência um acto de libertação interior e exterior.