SABER APRENDER – Chamados a um Monasticismo Doméstico?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

O facto de estarmos confinados em casa sem podermos sair fez-me lembrar os monges de clausura e questionar como pode a vida monástica ajudar-nos a viver este período de pandemia.

Na vida monástica vivemos somente para a união com Deus. Por esse motivo, o monasticismo procura desenvolver a capacidade para a renúncia, o silêncio, a oração, o aprofundamento da fé e a vivência da cruz na vida quotidiana. Todas estas características são semelhantes às que vivemos nestes tempos de pandemia. E, apesar da vida monástica estar centrada na vivência de um profundo desejo de Deus, essa estimula o ser humano a procurar um modo totalmente novo de ser e estar no mundo. E esse é o desafio que temos diante de nós.

O desenvolvimento tecnológico permite hoje estarmos juntos de um modo imperfeito, mas real e autêntico. Porém, a tecnologia que nos mantém em contacto serve, também, para nos manter distraídos da busca por uma vida profunda, como no caso monástico. Por isso, um monasticismo doméstico não está ausente dos desafios colocados pela tecnologia.

O acesso à informação tornou-se banal e o consumo exacerbado, de tal modo que corremos o risco de sermos acríticos em relação à informação que nos chega e uniformizamos nas opiniões que temos sobre as coisas. Quando o consumo é o que nos identifica, o pensamento uniformizado torna-nos superficiais e afasta-nos da vida profunda. Como dizia o monge trapista Thomas Merton sobre o ser humano nesta situação, «não se encontrará a si mesmo por não ser capaz de se procurar a si mesmo. Ele irá, simplesmente, ouvir seja quem for e o que esperam que ele seja.»

Se todos partilham nas redes sociais, também partilho. Se todos reagem, também reajo. Se todos usam emojis, também uso. Um comportamento assim massificado aproxima-nos mais da manada de gente à mercê das modas da época, do que daqueles que procuraram uma atitude, modo de ser e de estar diferentes. O silêncio torna-se insuportável, bem como o não atendimento de uma chamada, ou a resposta a uma mensagem que enviei. Ao longo dos últimos tempos, a sociedade tem-se tornado um pouco intolerável aos comportamentos monásticos que possamos ter em alguns momentos da nossa vida.

Um dos sinais mais evidentes desta intolerância é a dificuldade que muitas pessoas sentem com a situação de “clausura” que nos pedem para bem da nossa saúde e dos outros, de modo a mitigar a propagação do coronavírus pelos mais frágeis e desprotegidos.

Mas há uma curiosidade. Antes da pandemia, quanto mais conectados online estávamos, mais nos isolávamos daqueles que estavam à nossa volta. E agora, quanto mais isolados estamos com os outros, ou dos outros, mais sentimos a sua falta porque o ser humano é relacional, mas uma relacionalidade face-a-face, não de Facebook.

Temos, por isso, um motivo autenticamente humano para viver um monasticismo doméstico e esta é a nossa oportunidade de aprender a viver com maior profundidade e, quem sabe, recuperar algo da nossa identidade humana desvirtualizada.

 

Identidade do monge doméstico

A identidade pessoal depende das nossas escolhas, do tempo que dedicamos ao que traz valor à nossa vida, e do tipo de relacionamentos que geramos, independentemente das circunstâncias incertas em que vivemos.

«Identidade é o testemunho da verdade de cada um na sua vida pessoal.» (Thomas Merton, Contemplation in a World of Action)

Tudo o que nos divide afasta-nos daquilo que somos e nos tornamos (seres-em-relação). E a criatividade de uma espiritualidade da unidade (com os outros e a natureza) é o que nos mantém inteiros e com coragem suficiente para superar cada dificuldade.

Nesse sentido, será a capacidade para a solitude, em tempos de pandemia, que levará à afirmação da nossa identidade, aceitando as circunstâncias de cada momento presente como uma oportunidade de viver a Vontade de Deus, amadurecendo.

Quem tem mais dificuldade em viver esta solitude em família, ou sozinho, se for imaturo, cede à comunicação com os outros, sem filtros, incluindo todas as banalidades, por sentir que essa diversão preenche o vazio da solidão que não consegue ser solitude.

Mas se dedicarmos tempo a algum trabalho manual (para nós ou para os outros), ou à leitura de um livro para estimular a mente, ou à oração em família (nem que seja por Zoom) ou online (como tem acontecido com as Eucaristias), o todo corpo-mente-espírito do “monge doméstico” mantém-se saudável, encontra a paz, profundidade na oração e até o resultado dos trabalhos manuais feitos melhora. Se essa é a experiência dos monges (no sentido clássico do termo), poderia ser a nossa também.

O objectivo de uma vivência monástica doméstica será reencontrar a nossa identidade através de uma transformação interior da consciência que toda a vida contemplativa requer. Se tudo o que era normal fazermos deixou de o ser, se todos os nossos conceitos de um dia normal são inadequados, significa que os actos diários devem ser feitos com um sentido mais profundo do que alguma vez foram e a perspectiva da normalidade da vida será totalmente renovada. Mas isso requer alguma disciplina.

 

Disciplina monástica doméstica

A disciplina significa encontrar na vida contemplativa doméstica os hábitos que enformam a nossa vida até atingir uma profundidade maior e crescente. De todos os hábitos, os que favorecem a compreensão da realidade actual são os essenciais.

Poderíamos pensar que estar informado é um dos hábitos que se enquadraria na vida monástica doméstica, mas não creio. Estar informado ajuda-nos a entrar na realidade, mas não a compreendê-la. Para isso, não servem as análises dos outros, mas antes o nosso pensamento sobre o que se passa. E o nosso pensamento não se faz apenas de ideias sem forma, mas de ideias que se conectam à experiência do quotidiano. O problema é que o consumismo excessivo de informação, gradualmente, afecta a nossa capacidade de ter ideias. É preciso recuperá-la, e isso é possível graças a um hábito que traz uma disciplina e valor cognitivos à nossa vida. É um hábito que alimenta a mente em tempo de pandemia e, recentemente, percebi fazer parte de uma terapia proposta no início do século XX.

O cronista do The Atlantic Samuel Crothers, em setembro de 1916, no meio da Primeira Guerra Mundial, escreve uma sátira sobre uma Clínica Literária com um diálogo entre um médico dedicado à biblioterapia e um amigo sobre o seu ”Instituto Bibliopático”. Vale a pena ser a sátira na íntegra, mas deixo apenas alguns sublinhados que aguçam o apetite e demonstram como este é o hábito por excelência que disciplina uma vida monástica doméstica.

A motivação é muito simples. Se quisermos cuidar da nossa saúde mental em tempos de crise pandémica como este, deveremos procurar os pensamentos certos e focarmo-nos neles, de modo a purgar a mente dos pensamentos que nos adoecem. Pois, os bons pensamentos curam tanto o corpo, como a mente e o espírito na sua unidade indivisa sem contradição ou confusão.

Porém, o que é um bom pensamento se não for interessante? Em primeiro lugar, importa reconhecer que pensamentos interessantes só podem provir de pessoas interessantes. Em segundo lugar, quando nos confrontamos com esses pensamentos, algo acontece. Eles deixam de ser a substância inorgânica presa no meio de uma de muitas páginas encadernadas na forma de um livro, e passam a uma existência orgânica quando assimilados na nossa mente. E serão estes pensamentos individualizados e humanizados que nos curam. É esse o sentido da literatura terapêutica. Pois, o nosso estado mental antes de ler será diferente depois da leitura.

Um livro é uma prescrição literária que cura quando as ideias se unem numa verdadeira reacção química cerebral como glóbulos brancos de sabedoria que fortalecem o nosso sistema imunitário cultural. E os livros mais estimulantes não são tanto os que nos fornecem pensamentos quanto os que nos põem a pensar. Esses despertam em nós faculdades que estavam adormecidas pela cultura do consumo de entertenimento e, depois de lermos e adquirirmos o hábito de leitura, sentimo-nos diferentes e agimos de forma diferente. Por isso, diz Crothers – «um livro é um evento espiritual.»

Seguramente que haveria muito mais a explorar neste caminho de descoberta por um monasticismo doméstico que pode, verdadeiramente, renovar a nossa interioridade, levando-a a valorizar o essencial de uma vida cada vez mais profunda.

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Agência ECCLESIA

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