Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
O caminho sinodal orienta-se para uma eclesiologia de comunhão. Foi esta a impressão que tive ao recordar um livro que li há algum tempo de Dennis Doyle publicado há 22 anos com este título. Uma eclesiologia de comunhão poderia ser interpretada como o sentido de ser da Igreja focado nos relacionamentos, sobretudo entre as pessoas da Trindade por inspirarem todos os outros tipos. Nesta visão centrada numa compreensão profunda dos relacionamentos trinitários apercebemo-nos de como a Igreja pode ser um entrelaçar em rede de relacionamentos.
Segundo Doyle, em — «eclesiologia de comunhão promove um jogo dinâmico e saudável entre unidade e diversidade na Igreja». Este equilíbrio entre unidade e diversidade no caminho sinodal tem procurado ir ao ponto de acolher neste jogo dinâmico, a experiência de vida e pensamento de todos, incluindo aqueles que estão fora da Igreja. Eu sempre tive alguma dificuldade neste ponto, pois, como pode alguém que está fora dar um contributo útil a quem está dentro? Não correrá o risco de criticar por não compreender o que se vive dentro da Igreja? Seguramente, mas não é essa a diversidade levada ao extremo que se torna riqueza e potencia uma unidade ímpar entre quem dialoga?
Muitas das mágoas que existem entre as pessoas que fazem parte (ou não) da Igreja, ou mesmo entre os fiéis e o corpo eclesiástico composto pelos sacerdotes e bispos, são essencialmente de natureza relacional. E compreende-se essa razão se pensarmos que uma Igreja que não viva à imagem dos relacionamentos trinitários, não é sequer Igreja, mas uma construção humana. Quando assistimos a momentos de tensão nos conselhos pastorais, ou entre membros de uma mesma comunidade de vida espiritual ou Movimento, onde os desacordos podem resultar em danos relacionais, é a visão humana que prevaleceu sobre a divina. Não há quem não queira o que Deus quer, mas quem poderá alguma vez entender, realmente, o que Deus quer? No contexto de uma eclesiologia de comunhão, só na vivência intensa da comunhão poderemos vislumbrar o que Deus possa querer de nós. Não existem pessoas particularmente iluminadas, mas uma experiência comunitária de unidade na diversidade onde é a presença de Jesus entre as pessoas (Mt 18, 20) que ilumina. Algo que me faz pensar como colocamos pouco o nosso pensar, sentir e agir na Trindade.
O jesuíta Karl Rahner no seu livro sobre a Trindade (“The Trinity”, Ed. Herder & Herder de 2005) chegou a dizer algo chocante, mas que passou despercebido por muitos — «os Cristãos são, na sua vida prática, quase meros “monoteístas”. Temos de estar dispostos a admitir que, se a doutrina da Trindade tivesse de ser abdicada por ser falsa, a maior parte da literatura religiosa podia bem manter-se virtualmente inalterada.» Daí que a vivência dos relacionamentos trinitários seja fundamental para percorrer o caminho sinodal ao modo da Trindade, não ao nosso. Nesse sentido, quais seriam as características de um estilo de vida trinitária? Recorro à leitura do P. Enrique Cambón e do livro que escreveu sobre “A Trindade – Modelo Social” (Cidade Nova, 2001) que explora cinco binómios.
Pessoa-relação
«Eu e o Pai somos Um.» (Jo 10, 30)
Segundo Cambón, «na vida trinitária, cada Pessoa é ela própria fazendo a Outra ser.» Recordo-me daqueles casais em que se tornou impossível pensar num deles, sem pensar em simultâneo no outro. Numa relação, nem sempre as pessoas conseguem dar espaço uns aos outros, como verbalizado pelo pedagogo Paulo Freire quando diz que — «ninguém “é” se impede que os outros sejam.» Mas importa perceber que não podemos dar apenas espaço, mas dar tudo o que nos for possível dar, como diria Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares — «quanto mais dás, mais te realizas, mais és tu; porque se tem o que se dá, o que se dá faz-nos ser». Mas sermos um dom recíproco uns para com os outros leva-nos a uma unidade sem perder a distinção.
Unidade-distinção
«Eu estou no Pai e o Pai está em mim.» (Jo 14, 11)
Cambón adapta esta passagem a: «eu sou eu em ti e tu és tu em mim.» Só se pode unir o que é distinto, caso contrário, seríamos o mesmo. A diferença entre nós na opinião que temos das coisas, ou no modo de viver, pode ser uma riqueza quando a partilhamos e, reciprocamente, acolhemos o modo de pensar e viver do outro. Não precisamos de pensar todos o mesmo, ou fazer as mesmas coisas, ou todas as coisas da mesma maneira, mas saber aprender a perder o que pensamos e fazemos para acolher a inspiração proveniente da diferença. Algo que nos leva a uma totalidade.
Totalmente-Totalmente
«Quem me vê, vê o Pai.» (Jo 14, 9)
A síntese de Cambón sobre este binómio é a de que «a plenitude/unidade de Deus encontra-se totalmente na unidade dos Três e totalmente em cada Pessoa.» Cada um de nós é uma totalidade. Existe o mito da alma gémea, como se a coisa mais romântica fosse o complemento que cada esposo é para a sua esposa e vice-versa, mas nos relacionamentos trinitários descobrimos algo diferente e mais profundo: somos seres completos. Não recebemos do outro o que nos falta, mas tudo o que o outro nos quer dar. Assim como não podemos dar o que temos a mais porque já damos tudo. Por isso, faz sentido sermos “totalmente na unidade”. Isto leva-nos a uma visão maior sobre o efeito boomerang.
Altruísmo-reciprocidade
«Tudo o que é meu é teu e o que é teu é meu.» (Jo 17, 10)
O efeito boomerang consiste em dar tudo, sem esperar nada, mas compreender que tudo o que é dado por amor gera amor e, consequentemente, o amor volta, como num boomerang. Cambón diz sobre este binómio que «as pessoas agem em sentido trinitário na medida em que viverem com as outras, para as outras, nas outras e graças às outras.» Mas a vida da Trindade inclui, também, o paradoxo.
Esvaziamento-plenitude
«Que sejam um, como Nós somos Um.» (Jo 17, 22)
Para uma pessoa se unir verdadeiramente a outra, não pode estar cheia de si mesma ou de tanta coisa que não reste espaço para acolher o dom que o outro é para nós. Parece paradoxal que tenhamos de nos esvaziar de nós mesmos para experimentar a plenitude. Porém, é possível encontrar na natureza um exemplo: um corpo negro. Na transmissão de calor por radiação, um corpo negro absorve toda a radiação que for possível absorver, e emite o máximo de radiação que é possível emitir a uma determinada temperatura. Em linguagem do quotidiano, as superfícies dão tudo, acolhendo tudo. Não há filtros.
Por mais que reflitamos sobre como fazer dos nossos relacionamentos, relacionamentos trinitários, só a vida poderá ajudar-nos a traçar este caminho sinodal. Como diria ainda Karl Rahner — «o cristão do futuro ou terá que ser um místico, isto é, uma pessoa que experimentou algo, ou não vai conseguir ser cristão.»
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