SABER APRENDER – A vacinar contra a pandemia silenciosa

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Aïcha é uma francesa muçulmana que leu na internet que a vacina contra a Covid continha “produtos suínos” e decidiu não vacinar-se por esse motivo. Como precisava de um certificado de vacinação soube que o podia obter por 200 euros. Mais tarde, contraiu a doença e como dispunha de um certificado de vacinação, os médicos aplicaram procedimentos de acordo com o protocolo adequado para quem estava vacinada, logo, sem saberem, desadequado para Aïcha. Ela acabou por falecer de uma pandemia, mas não a da Covid. Morreu da pandemia silenciosa da desinformação.

Foto de ThisisEngineering RAEng em Unsplash

A desinformação espalha-se mais rapidamente do que um vírus e, como o caso acima exemplifica, pode levar à morte das pessoas. A forma de travar esta pandemia silenciosa está no desenvolvimento do pensamento crítico em relação ao que lemos ou ouvimos. Por isso, uma das frentes de combate à pandemia da desinformação tem sido fortalecer a confiança na ciência e nos cientistas, que devem comunicar cada vez mais e melhor o modo de compreender as coisas com metáforas simples e próximas da vida das pessoas. Mas a nuance da experiência acima está na influência que os preceitos religiosos podem ter sobre o pensamento crítico das pessoas.

No caso cristão, muitas pessoas argumentaram que a vacina da covid continha células de fetos abortados. Será verdade? No final de Agosto de 2021, um artigo; do Nebraska Medicine esclarece que não, mas explica a origem dessa ideia. Há 50 anos foram criadas linhas de células com base em fetos abortados que têm alimentado a investigação e desenvolvimento de diversos medicamentos, incluindo vacinas. Ou seja, as células usadas no desenvolvimento destas vacinas são descendentes dessas originais, mas não são células provenientes directamente de fetos abortados. É como se tivessem usado células estaminais do meu avô há 50 anos para desenvolver culturas de células que hoje são usadas para investigação. Quanto do meu avô existe nessas células hoje? Nada. Por essa razão, a própria Congregação para a Doutrina da Fé afirma em comunicado; que

«A razão fundamental para considerar moralmente lícito o uso destas vacinas é que o tipo de cooperação para o mal (cooperação material passiva) do aborto provocado do qual derivam as mesmas linhas celulares, por parte de quem utiliza as resultantes vacinas, é remota . O dever moral de evitar esta cooperação material passiva não é vinculativo, se houver um perigo grave como a propagação, de outro modo incontornável, de um grave agente patogénico: em tal caso, a difusão pandémica do vírus SARS-Cov-2 que causa a Covid-19. Portanto, considere-se que neste caso podem ser utilizadas todas as vacinas reconhecidas como clinicamente seguras e eficazes, com a consciência certa de que o recurso a tais vacinas não significa uma cooperação formal para o aborto do qual derivam as células com que as vacinas foram produzidas.»

Não se pode confundir pensamento crítico com ser contra o pensamento do outro. O facto de acreditarmos naquilo que nos dizem ou lemos pode depender do modo como nos é dito ou está escrito.

Em 1999, Rolf Reber e Norbert Schwarz da Universidade de Michigan publicaram um estudo; que analisava os efeitos da fluência perceptiva nos juízos que as pessoas fazem daquilo que é verdadeiro ou não. Concluíram que se a verdade for apresentada com cores mais vivas, ou de um modo mais audível, o seu acolhimento aumenta. Não chega a uma pessoa que lhe digam o que é a verdade, importa também o tempo e a facilidade com que processa o que lhe dizem ou lê. Ora, como nas redes sociais a propagação de videos, imagens e frases feitas é extremamente fácil, não tendo qualquer fricção, a “verdade” aceite corresponde à que dá menos trabalho a processar quando confrontada com o que acreditamos.

Esta situação torna o combate ao vírus da desinformação dependente dos comunicadores mais aptos. É nesse aspecto que os cientistas precisam muito de melhorar. Mas seria injusto se não colocássemos o ónus desta pandemia silenciosa também em quem escuta. Há uma grande diferença entre ser céptico e ter um pensamento crítico, sendo o último uma parte intrínseca a um acto de intelecção. O que é um acto intelectivo, isto é, de quem pensa bem sobre as coisas para as compreender profundamente? O teólogo jesuíta Bernard Lonergan dividiu este acto intelectivo em quatro fases.

A primeira corresponde a fazermos uma experiência. Pode ser escutar a ideia de alguém, ler alguma coisa na internet, ou participar de algo em primeira pessoa. E a última fase é o juízo. A razão de ter referido a última em vez das intermédias é porque muitas pessoas, como aquela senhora muçulmana, passam da experiência ao juízo sem passar pelas fases intermédias e, por isso, podem pagar caro por esse salto, incluído — como aconteceu — com a própria vida. As fases intermédias correspondem ao pensamento crítico. A segunda fase é a da compreensão, isto é, compreender bem a experiência feita observando o maior número de detalhes possível e confrontando a compreensão desses detalhes com experiências passadas, nossas ou de outros. E a terceira fase é a da crítica propriamente dita, onde procuramos fazer um contraponto relativo às nossas convicções e compreensão, de modo a consolidar o que compreendemos sobre a experiência que fizemos.

A razão pela qual esta pandemia silenciosa da desinformação é dos maiores perigos enfrentados pela humanidade e dos menos considerados na vida quotidiana está na enorme distorção da realidade que gera à nossa volta, de tal modo que deixamos de saber em que/quem acreditar. Por vezes, até são pessoas da nossa confiança que desafiam aquilo em que acreditamos e isso pode deixar-nos muito confusos. Podemos chegar ao ponto em que deixamos de saber em que acreditar ou como orientar a nossa vida.

A solução do pensamento crítico como vacina para combater o vírus da desinformação é uma onda cultural contra-a-corrente da Grande Aceleração, ou seja, da elevada velocidade com que consumimos informação e natural incapacidade de a processar convenientemente. Não precisamos de aumentar (nem artificialmente) a nossa capacidade cognitiva de processar informação. Pois, processar informação permite criar relações entre as coisas, mas não gera, necessariamente, uma compreensão correcta das mesmas. A compreensão induzida pelo pensamento crítico leva tempo. Não tenhamos medo de perder tempo a perceber as coisas confrontando-as com os outros, incluindo (e sobretudo) com os que acreditam em visões do mundo (incluíndo espirituais) diferentes da nossa. Dessa diversidade virá a unidade do conhecimento e a verdade.


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