SABER APRENDER – A sincronizar

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Estava a vigiar um exame quando recebi a notícia de que o irmão de um grande amigo teve um acidente enquanto estava de férias e faleceu. Com o coração cheio de dor telefonei-lhe para dizer o quanto estava com ele neste momento de dor, mas no fundo pensava comigo próprio — «quantas vezes não gostaríamos de voltar atrás no tempo e escolher um outro caminho.» Mas o tempo não volta atrás. Porém, o escritor britânico Eric Russel dizia que «a tua mente pode viajar no tempo». Logo, questionei-me o que poderia querer isso dizer.

O filósofo Henri Bergson colocava em questão o tempo dilacerante dos físicos que divide a vida das pessoas em horas, minutos, e segundo, fazendo-nos experimentar o tempo como uma prisão. A sua visão do tempo relacionava-se mais com a noção de fluxo, processo, um tornar-se que não se resigna à incapacidade de voltar atrás. Por isso, Bergson não consegue separar a visão do tempo da experiência que fazemos dele através de um entrelaçar de estados mentais que nos dão a impressão de duração. Nesta visão, o tempo é como uma maré de momentos que se revelam a essência da consciência daquilo que vivemos, libertando-nos da prisão dos relógios. Pois, o momento presente de uma pessoa pode não ser o momento presente de outra.

O cardeal John Henry Newman escreveu

«o tempo não é uma propriedade comum
Mas o que é longo é curto, e o rápido é lento
O próximo é distante, enquanto recebido e agarrado
por esta mente e por aquela,
e todos são padrão da sua própria cronologia.»

Não existe a perfeita simultaneidade quando cada um vive o seu momento presente. Não podemos voltar atrás pelo outro porque o seu momento presente é diferente do nosso. E quando o momento presente para um de nós é o último momento da nossa vida, somos alvo da contingência fatal que nos deixa impotentes, sem nada poder fazer, instalando-se o drama. A incerteza pode gerar uma vida como levá-la ao seu termo.

Ao contrário de Bergson que abraçava a incerteza e o fluxo do tempo cujo centro é a consciência humana, Einstein não via qualquer lugar para o espírito numa ciência que dependia de relógios e luz. Por isso, a perfeita simultaneidade seria um sonho impossível, mas se pensarmos nos desenvolvimentos tecnológicos a partir da emergência da internet, o mundo está mais interconectado do que nunca favorecendo a consonância dos momentos presentes. A esta chamamos: a experiência da sincronização.

Podemos não viver os mesmos momentos presentes, mas temos a possibilidade de sincronizar os nossos momentos presentes. Sabemos que o tempo não volta atrás porque há sempre uma parte da energia que usamos em cada acto de amor que se liberta sem recuperação possível. É o que chamamos de entropia cuja etimologia da palavra — en + trope — significa transformação interior. Quando o matemático e engenheiro electrotécnico Claude Shannon associou a entropia à transferência de informação, subtilmente, revelou que a comunicação e a memória são processos entrópicos, isto é, que nos transformam por dentro.

Quando comunicamos, comunicamo-nos. É a tentativa de sincronizar os nossos momentos presentes para que a transformação interior daquilo que damos de nós mesmos, uns aos outros, pela comunicação, permeie o mundo de reciprocidade. Quando telefonei ao meu amigo, comunicando-me a ele, fi-lo pelo impulso de querer sincronizar os nossos momentos presentes. Mas quando aquele que parte deste mundo deixa de comunicar-se, fisicamente, connosco, estaremos perante o colapso do seu tempo? É aí que entra o segundo processo entrópico da memória.

Heráclito de Éfeso era um filósofo grego a quem se atribui a frase — «Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.» — mas, de acordo com James Gleick no seu livro ”Time Travel – A History”«ninguém sabe exactamente o que Heráclito disse, porque viveu num tempo e lugar onde não havia escrita». Mas o essencial da ideia que ele pretendia transmitir é: tudo está em mudança. O mundo está num fluxo permanente. As memórias ajudam-nos a ter uma percepção mais clara dessas mudanças, acabando por tornar-se elementos, também, transformativos.

Só quem se isola totalmente dos outros e do mundo não cria as memórias que ao longo dos tempos mudam a narrativa da nossa história. Aqueles a quem o tempo colapsa, improvisamente, deixam de ser intervenientes directos na criação de memórias, mas podem, indirectamente, continuar a criá-las. Pois, a memória de uma experiência passada pode ser a luz que ilumina o nosso momento presente, influenciando-o e criando uma nova memória.

Muitos vêem o tempo como um rio, ou algo que passa, ou o que está relacionado com os climas exteriores e interiores, mas são apenas metáforas que escolhemos pelo efeito que produzem no sentido que damos à realidade que vivemos. A consciência da importância de saber aprender a sincronizar os nossos momentos presentes requer mais que vivamos o tempo que nos é dado, do que corramos atrás do tempo. Será essa sincronização que fomenta a relacionalidade de momentos presentes e forma novas memórias para transformar o mundo a partir daquilo que é profundo e interior.

Houve um tempo em que as pessoas andavam fascinadas com as cápsulas do tempo. Isto é, aparelhos onde guardavam o que gostariam de relembrar passadas muitas décadas às pessoas do futuro, mas isso não faz sentido quando evoluímos com uma metodologia que guarda a informação sobre as nossas vidas e tempos, de modo a transmitir às gerações futuras: a cultura.

O irmão do meu amigo não pode mais comunicar com a sua esposa, ou criar novas memórias presenciais com os seus filhos, mas deixou gravado nos seus corações uma cultura única associada ao seu próprio modo de ser e estar. Diz a escritora Ursula K. Le Guin que «a história é o único barco que temos para navegar no rio do tempo.» Imagino como cada um de nós navega pelo seu rio, mas, um dia, todos desaguaremos no mar imenso do amor de Deus onde todas as histórias se encontram, e onde, também um dia, o meu amigo encontrará de novo o seu irmão.


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