SABER APRENDER – A sermos corpo

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Caminhavam juntos para Emaús e partilhavam o seu sentir sobre os eventos em torno de Jesus. Estavam desanimados, mas um estranho colocou-se no seu meio e caminharam juntos. Aqueles discípulos de Emaús tiveram um momento de sinodalidade com Jesus. Da comunhão entre si, da participação na vida quotidiana, depois de um momento essencial desta experiência, momento esse em que reconheceram Jesus, compreenderam a sua missão: partir. O paralelo entre este episódio do Evangelho e aquilo que estamos a viver na Igreja — a busca daquilo que significa um novo estilo de ser Igreja — encontra um ponto de contacto comum na Eucaristia. Mas existe uma diferença demarcada entre esse episódio e o que estamos a viver: os discípulos de Emaús sabiam por onde ir.

Pintura “A Estrada de Emaús”

Parece-me que um dos maiores desafios em todo este processo da Igreja Sinodal é saber por onde ir e como. A palavra “sinodal” que significa “caminharmos juntos” é clara, mas quando nos juntamos para falar sobre alguma coisa em Igreja, o que vamos falar mesmo? Sobre o que está mal na Igreja? E deixamos de parte o que está bem? Como está o mundo e que resposta a nossa vida espiritual com o teor católico pode oferecer? Talvez seja de falarmos mais sobre os aspectos organizativos, nos problemas das “capelinhas” e daquela alma bondosa a quem temos de nos vergar porque é a manda-chuva daquela instituição? Isto é, caminhamos dialogando sobre o sentido de serviço na Igreja hoje? Ou nem sequer deveríamos definir sobre que coisa dialogar e começarmos, simplesmente, por viver o sentir de cada um sobre a vida espiritual na Igreja? Quando são muitos os caminhos por onde podemos ir existe o risco de ficarmos parados no mesmo sítio ou de entrar em conflito entre visões progressistas e conservadoristas do ser da Igreja. É como ir a um supermercado comprar cereais e o muito que há por onde escolher acaba por resultar em escolha nenhuma. Precisamos de um sentido e penso em Viktor Frankl.

No “Homem em busca de um sentido”, Viktor Frankl refere o sentido de responsabilidade como parte da essência da existência. Esse sentido — «convida a imaginar primeiro que o presente é passado e, depois, que o passado ainda pode ser mudado e corrigido. Um tal preceito confronta-o com a finitude da vida, bem como com a finalidade daquilo que faz, tanto com a vida como consigo mesmo.» (p. 111, Lua de Papel, 2012). Por muito que nos debrucemos sobre o passado, tudo o que veio a público sobre o “lado negro” da vida da Igreja Católica é razão suficiente para percebermos que algo não está bem e deve ser corrigido. No passado, dizer aquilo que pensávamos seria um tormento porque temíamos o que poderiam dizer de nós. Hoje, essa é uma atitude vil que, infelizmente, ainda está presente nos corredores dos claustros. Mas dizer o que pensamos sem sentido de responsabilidade e respeito pelo outro, onde a verdade dita sem amor fere, também se revela uma atitude vil. Se não sentirmos como nosso o sentido de responsabilidade por aqueles que não souberam dar testemunho de Jesus, dificilmente compreenderemos o modo como caminhar no espírito da sinodalidade.

Numa conferência com o D. Armando Domingues, bispo auxiliar do Porto, sobre a Igreja Sinodal que ocorreu em Coimbra para a comunidade académica da Universidade, a um dado momento, ele perguntava se nos sentíamos incomodados com todas as notícias que têm vindo a público sobre o tal “lado negro” da Igreja. Houve quem manifestasse que não por estar certo de que a misericórdia de Deus é maior do que a nossa maior miséria, mas o D. Armando tocou-nos no coração ao expressar com parrésia que se não nos sentirmos incomodados é porque não somos o corpo que devíamos ser e nos meus lábios esboçou-se um sorriso. Sermos um só em Deus implica que o pecado do outro é meu, assim como os seus momentos de graça. A sua dor é a minha, assim como a sua alegria. Se o mundo volta o dedo da culpa contra a Igreja aponta também para mim. E só num sentir profundo de sermos um só corpo em Jesus encontramos o próximo passo a dar no caminho sinodal e daí a peça essencial para compreender este puzzle que é a Eucaristia.

A Eucaristia é o sinal visível da realidade invisível de sermos um só corpo. Todos os que comungamos do corpo ressuscitado, ou do corpo abandonado (no caso dos que não comungam a hóstia), não comungamos uma parte de Deus, mas Deus por inteiro. E, por essa razão, n’Ele somos um só se nos amarmos até às últimas consequências. Não foi por acaso que, na fracção do pão, os discípulos de Emaús reconhecem Jesus, mas porque na Eucaristia nos reconhecemos Jesus. Penso que este aspecto unitivo e profundo da Eucaristia é fundamental no caminho sinodal.

Na peregrinação que intuo ser longa para vivermos bem esta sinodalidade, muitos receiam qual será o resultado de toda esta abertura e convite ao diálogo porque estão habituados a fazer o que o bispo manda. Eu percebo essa atitude porque o leigo reconhece no bispo uma graça especial dada por Deus, mas a realidade crua é que este modo de ser Igreja dá calafrios aos bispos, tanto quanto pude perceber. E quem diz os bispos diz, também, os sacerdotes ou leigos responsáveis por algo na Igreja.

Nas caminhadas onde não sabemos muito bem por onde ir é preciso estar atento aos sinais que encontramos na leitura de fazemos da paisagem cultural que nos circunda. Cada experiência partilhada desenha uma curva de nível no mapa da realidade por onde queremos caminhar com Jesus. Um caminhar onde cada um reconhece Jesus que habita dentro de si e do outro, logo, todos os relacionamentos são de Jesus para Jesus. E se o outro está a dizer um disparate, só me alivia pelos disparates que certamente direi também. É isto que significa saber aprender a sermos corpo, onde não posso ferir-te sem me ferir — como diz Gandhi — nem amar-te, sem ser como amo a mim mesmo. Se nos amarmos profundamente, Deus está em nós. E mesmo que demore tempo até perceber o que Deus quer de uma Igreja Sinodal, penso que o sinal desse passo será quando nos olharmos como Corpo e nos reconhecermos como uma só Alma.


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