Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Na quaresma privamo-nos de doces, carnes, redes sociais (segundo uma investigação da DecisionData em 2019), e tudo para examinarmos o que tem mais valor espiritual na nossa vida. Porém, o que a quaresma sempre representou para um cristão, começa a revelar-se uma verdade universal humana. Por exemplo, existem estudos que procuraram perceber melhor que experiência fazemos quando nos privamos de algumas coisas. Pensemos no chocolate que sabe melhor depois de um tempo de privação. Ou quando se diz que a espera aumenta o desejo significa que a dificuldade sentida com a privação interessa menos do que o efeito que essa tem sobre a nossa felicidade. A finalidade da privação quaresmal é sermos e experimentarmos mais com menos. Como os minimalistas.
O minimalismo é uma ferramenta para nos ajudar a encontrar a liberdade. Os receios que temos, as preocupações, a culpa, a depressão, são o resultado da acumulação de coisas materiais. A liberdade que o minimalismo oferece à cultura do consumo que usa e descarta, não implica não possuir coisas, mas possuir as coisas essenciais que trazem real valor à nossa vida e nos fazem experimentar a liberdade. E o que abunda na liberdade? Jesus disse — «Eu vim para que tenham vida e a vida em abundância.» Logo, na liberdade abunda a vida. Por isso, não precisamos de mais coisas, mas de menos para criar o espaço interior que acolhe a vida que provém do essencial.
Esse menos que cria espaço interior pode não se referir somente a coisas, ou actividades, mas também ao que flui pelo espaço e pelo tempo. O naturalista Sir David Attenborough disse numa recente entrevista que uma das coisas que poderíamos fazer para restaurar o nosso relacionamento com a natureza é, naturalmente, parar. Sentar. Ficar quieto. Esperar 10 minutos. A tendência de tudo o que se move é manter-se em movimento. Mas a vida interior não se move da mesma maneira que a vida exterior. Enquanto não soubermos parar e deixar os pensamentos e emoções interiores fluírem, a vida interior continua à espera do nosso sinal para caminhar em frente.
A facilidade com que estamos presentes em todo o tipo de reuniões e encontros por Zoom, parados, sentados, a ouvir ou a falar, acabam por preencher muito do nosso tempo, enquanto fechados no mesmo espaço. E quando as sessões necessárias terminam, mantemo-nos conectados, com o olhar fixo no ecrã de cores saturadas. Será que isso nos ajuda a reflectir e a examinar a nossa consciência? Talvez. Podemos estar a ver um vídeo em jeito de meditação. Ou a escrever uma mensagem para alguém como manifestação do desejo de proximidade. Mas fico sempre intrigado como Jesus deixa tudo para peregrinar pelo deserto onde abunda a escassez dos ritmos frenéticos advenientes dos fluxos de informação. No deserto vive-se do essencial e do momento presente.
O menos que nos ajuda a ser mais pode viver-se nos momentos analógicos da nossa vida. Por exemplo, quando é necessário arrumar a cozinha, fazer a cama, estender a roupa, ou dar uma arrumação geral numa divisão da casa, não é que seja uma actividade que exija muito da nossa atenção. Por isso, são oportunidades analógicas para pensar na vida interior, e nas escolhas que fazemos do modo como alimentamos, ou não, a nossa vida de oração e de união com Deus. Confesso que devia aproveitar melhor estes momentos.
Uma outra forma analógica de criar momentos de reflexão pode ser quando escrevemos num caderno o que passarei a chamar de páginas pessoais. Há alguns anos que pratico as “páginas matinais”, onde escrevo três páginas, diariamente, de tudo aquilo que me passa pela cabeça. Porém, como o matinal por vezes não se proporciona, comecei a escrever à tarde, ou até à noite, pois, o que importa é escrever. Depois, nem sempre consigo ter força para escrever as três páginas, mas, no mínimo, uma página é possível. Por essa liberdade de escrever em qualquer momento do dia, e no mínimo uma página até um máximo de três, em vez de páginas matinais, passei a designar este hábito por páginas pessoais. E um modo de criar este hábito diário, até por menos do que uma página que, para muitas pessoas, ainda é muito, basta começar com uma frase. Uma frase dedicada à gratidão. Como se respondêssemos à pergunta simples: “hoje, por que estou grato?”
Há quem argumente que a tecnologia possui todos os traços de quem ganha vida própria. Penso na obra de Kevin Kelly intitulada What Technology Wants (O que a tecnologia quer). Mas George Dyson no seu livro Analogia, dedicado à emergência da tecnologia para além do controlo programável, refere que, no universo analógico, o tempo é um contínuo. E, por isso, quaisquer dois momentos, não importa quão próximos estejam um do outro, possuem uma infinitude de outros momentos entre si. Porém, no universo digital, por contraste ao analógico, o tempo não é um contínuo, mas feito de contagens finitas de eventos, sem quaisquer outros eventos entre si. São momentos pontuais.
A tecnologia vive de momentos contados, sem um contínuo entre si. Nós, humanos, é que introduzimos a noção de tempo no universo digital com os relógios (clock) no interior dos dispositivos que marcam a obrigação de realizar operações com uma determinada velocidade. De facto, um computador conta mais os eventos do que o tempo em que ocorrem. Pois, para as máquinas, que importa o tempo? Por isso, diz Dyson que — «para os observadores no nosso universo, o universo digital, regulado por “ciclos temporais” cada vez mais rápidos, parece estar a acelerar, a fazer mais e mais num dado intervalo de tempo contínuo. Para os observadores no universo digital, o nosso universo, a fazer cada vez menos num dado número de incrementos, parece estar a desacelerar.» Em síntese, nós sentimos que a tecnologia cresce na sua capacidade de processar informação, enquanto do ponto de vista da tecnologia, o ser humano é cada vez mais lento a processar informação. É um sinal da necessidade de parar para pensar e equilibrar.
Quem pensa que não tem tempo para se dedicar à dimensão analógica da vida, porque tem demasiadas coisas a fazer, ou a atender, na dimensão digital, pode não ver o valor que tem o tempo dedicado a fazer menos. Sente que se atrasa nos seus propósitos, mas precisa de se dar conta de que, assim, vive para o tempo, em vez de viver o tempo que lhe é dado.
Fazer menos com o tempo contínuo que nos é dado, abre o espaço interior para pensar sobre as coisas que trazem real valor à nossa vida e a tornam profunda. E uma vida profunda é o sinal concreto de como podemos aprender a ser mais com menos.
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