SABER APRENDER – A rezar com infinitos

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Alguma vez ficaste hipnotizado a olhar para a chama de uma vela ou fogueira? Nessa experiência existe repetição da mesma coisa vezes sem conta, mas também surpresa pelos padrões que se podem formar. Acontecem tantos eventos ao mesmo tempo que saltamos entre a repetição e a surpresa sem nos cansarmos. De onde vem esse fascínio? Antropólogos como Daniel Fessler dizem que provém de termos conseguido aprender a fazer fogueiras quando éramos crianças, dominando o fogo. Mas a partir do momento em que o fogo faz parte do nosso quotidiano, deixa de nos fascinar. Mas será a falta de domínio da chama que nos mantém em contemplação?

Foto de Prateek Gautam em unsplash

Gaston Bachelard, filósofo francês, escreveu muito sobre como a matéria desperta a imaginação interior que, por sua vez, enche a matéria de memória e valores. A chama de uma vela produz uma luz suave e um calor confortável. Muito diferente das labaredas do fogo de uma lareira. Sem sabermos bem a razão, àquela pequena chama associamos, misteriosamente, uma experiência de vida espiritual. Bachelard diz que — «o que chamamos de Vida na criação é, em todas as formas e em todos os seres, o mesmo e único espírito, uma só chama.» — Por isso, de certo modo, olhar para a chama de uma vela apela à imaginação de uma unidade única e profunda.

Quando se fala hoje muito em inteligência e vida artificial, as pessoas conhecem pouco a realidade e baseiam a ideia que têm nos filmes de ficção científica. Mas em 1970, o matemático John Conway inventou no computador o “Jogo da Vida”. Um jogo sem jogadores com regras simples onde deixamos uma população de quadrados evoluir a partir de uma situação inicial e vemos o que acontece. Imaginem uma grelha de quadrados e cada quadrado tem duas condições: ou está vivo, ou está morto. De geração em geração, cada quadrado interage com os oito quadrados à sua volta. E a cada intervalo de tempo, existem quatro possibilidades:

  1. qualquer célula viva com menos do que duas células vivas à sua volta, morre sem deixar descendência;
  2. qualquer célula com duas ou três células vivas à sua volta sobrevive na próxima geração;
  3. qualquer célula com mais do que três células vivas à sua volta morre por haver população a mais e;
  4. qualquer célula morta com exactamente três células vivas à sua volta, nasce para dar vida a uma nova geração!

Em https://playgameoflife.com; podemos fazer a experiência de criar condições iniciais que levam à extinção, ou a uma dança infinita de populações de quadrados que parecem ganhar vida própria. São como as velas. Impulsionam-nos a mergulhar no infinito. Será esse mergulho uma forma de oração?

A unidade indivisa entre o nosso corpo e a alma leva a que todos os nossos sentidos se envolvam num momento de oração. Como questiona o Catecismo da Igreja Católica — «De onde procede a oração do homem? Seja qual for a linguagem da oração (gestos e palavras), é o homem todo que ora.» (n. 2562) — Ou seja, como nos momentos em que contempla a simples e pequena luz de uma vela. Existem diversas vantagens em usarmos as velas para rezar:

  1. menos distracções;
  2. a dança da pequena chama gera um ambiente sereno;
  3. recorda-nos os tempos antigos, menos acelerados;
  4. sensibiliza-nos para a luz de Jesus que nos quer iluminar interiormente;
  5. e, tal como uma pequena vela pode produzir a luz necessária na escuridão da noite para encontrarmos o caminho, ao rezar com uma vela, acolhemos o sinal que essa representa da procura que fazemos de Deus na nossa vida.

Para além da vela, um outro infinito que nos impele à oração é um rio, ou uma cascata, isto é, um fluir da água. As ondas e remoinhos existem, mas não se repetem. A água que passa não volta a passar. Nesse fluir sentimos uma subtil ligação ao momento presente, um espaço de quietude que escava espaço em nós libertando-nos de algumas coisas, deixando outras. Na contemplação de um rio, o coração tende a reencontrar, de novo, o seu ritmo. Na superfície da água que está sempre a mudar para se adaptar às condições do momento, temos uma imagem de como Deus nos convida a ser flexíveis na nossa oração. Ou até como a mesma oração, por mais que seja repetida, tem um sabor diferente por não sermos os mesmos a cada instante que a pronunciamos. Mas um infinito invisível que também nos pode inspirar à oração é o ar.

A brisa suave e fresca num dia Verão pode ser o suficiente para suscitar em nós um momento de gratidão a Deus. Na brisa experimentamos o movimento de algo invisível, mas que se sente. A oração é um movimento interior de diálogo com Deus.

Quando os não-crentes querem desafiar as crenças dos crentes, o alvo mais fácil é a oração porque a interpretação mais redutora é a da realização de algo extraordinário dado por Deus a pedido do “pedinte”. É difícil um não-crente entender como a imaginação presente na matéria como a chama, a água e o ar são infinitos que podem fazer-nos experimentar a presença de Deus num plano existencial interior e íntimo. E como a ideia mais comum de oração é a do momento vivido individualmente, reservado e privado, menos sensibilidade temos para a verdadeira amplitude da faceta relacional da oração na vida do crente. Será a oração comunitária diante dos infinitos que a imaginação materializa que nos mostra como o diálogo com Deus é uma experiência relacional.

Olhar para a chama de uma vela, o fluir da água de um rio, ou sentir a brisa na pele parecem ser momentos de infinita inutilidade. Saber aprender a rezar com estes “infinitos” desenvolve em nós a capacidade de reconhecermos e dialogarmos com o Infinito que dá sentido e significado a tudo o que existe. A oração é um momento inútil que nos ajuda a perceber que há mais vida para além daquilo que é útil. E, talvez, a utilidade dos momentos com Deus que parecem inúteis seja mais interior do que exterior.

Uma das crises que enfrentamos hoje é a pouca importância que damos à nossa interioridade através da oração. E, depois, sentimos o efeito dessa negligência com os stresses que vivemos e as perturbações da mente que se expressam no corpo pela ansiedade, a violência ou a indiferença. Somos finitos, mas dentro de nós está um aspecto infinito da realidade que a oração com os infinitos nos abre: a gratidão a Deus por nos ter acolhido no jogo infinito da vida.


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