Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Celebramos no dia 1 de Setembro, de modo especial, o Tempo da Criação, uma iniciativa ecuménica dedicada à oração pela relação entre nós e o mundo natural que nos rodeia com toda a vida que contém e da qual fazemos parte, como família da criação. Creio que este tempo vai para além das iniciativas pró-ambiente e atinge a nossa vida profunda. Essa vida pauta-se pela nossa união com Deus que passa pela manifestação da Sua presença na natureza que nos rodeia. Quando interiorizarmos esta essência serão muitos os horizontes de significado que se abrem diante de nós e nos darão a esperança para lidar e ultrapassar os tempos difíceis que se avizinham. É fácil rezar pela beleza da natureza, a dificuldade está quando no meio do caminho aparece um cão.
Em criança tinha medo de cães, por isso, tenho muito respeito por todas as crianças que partilham desse receio por ter passado por essa experiência. Hoje tenho menos medo, mas se puder evitar um cão cujo ladrar desconheço, prefiro. Estas férias, com a minha família quisemos fazer uma caminhada e tudo estava a correr bem até que no meio do caminho aparece um cão. Ele abanava a cauda, indicando ser manso, mas nada podia fazer por dois dos meus filhos que começaram a ficar muito nervosos com a situação (como eu os compreendo…). Parámos, pensámos em voltar para trás e o cão, em silêncio e com a língua de fora, parecia estar contente com a nossa visita. Mas como hesitámos e reagimos, o cão rosnou um pouco de desprezo pela nossa falta de interacção e acabou por se meter “chateado” pela vinha como que a dizer — «não quero nada convosco.» A natureza, cuidar da criação, o amor pela beleza natural é sempre inspiradora e orante até que nos confrontamos com a faceta do relacionamento com o mundo natural que nos põe nervosos.
Por todo o mundo se multiplicam as iniciativas para celebrar este Tempo da Criação em que somos chamados a rever o nosso estilo de vida e a amadurecer a ligação entre a vida ecológica e a vida espiritual. Quando leio como temos sido uma espécie responsável pela extinção de outras, custa sempre matar a formiga, a mosca ou a aranha, mas acontece. E fico a pensar como enquadrar as experiências desse género com a oração que fazemos com a criação. Não se vive uma certa contradição? Ou o nosso relacionamento com a criação se restringe às coisas belas e que não nos repugnam? Mas, também, o que pode significar rezar com a aranha? Talvez não saibamos ainda como rezar a sério com a criação e, por esse motivo o fazemos neste tempo de Setembro a Outubro, especialmente dedicado a esse aspecto.
Rezar é uma experiência fundamental no percurso que fazemos de união com Deus. É o momento em que, mediante as nossas condições de possibilidade, procuramos entrar em diálogo com Ele. Não tanto um diálogo feito de palavras, raciocínios, mas um estar plenamente no momento presente, pensando n’Ele e deixando que Ele pense dentro de nós ao modo que Ele quiser. Quando em silêncio rezamos, o que fazemos senão imergir no ambiente que nos rodeia, abrindo o coração às emoções que o momento suscita, ou a mente a inúmeros pensamentos inesperados. Por vezes usamos uma oração que conhecemos, e outras vezes pronunciamos, interiormente, pensamentos espontâneos dirigidos a Ele. Pedimos conselho, força, coragem, ou agradecemos o gesto de amor que nos fizeram, o sustento, ou uma amizade. Porém, quando rezamos com a criação, por exemplo, através de um pôr-do-sol, nada fazemos. Estamos, simplesmente. Por isso, fico a pensar se o que aprendemos mais quando rezamos com a criação não será, essencialmente, a saber estar e acolher.
Acolhemos o canto dos pássaros, o zumbido do abelhão, o ranger do tronco das árvores ao sabor do vento, o toque suave da brisa que refresca o calor recebido do sol. Acolhemos porque nada podemos fazer de modo a parar uma chuva que inunda as nossas casas, ou um vento que solta as telhas. A natureza mostra-nos que somos uma parte inextricável dela, mas apenas uma parte, não o todo. E se estivermos atentos e nos deixarmos maravilhar pela beleza ao nosso redor, brota do coração e, por vezes, dos lábios, um louvor espontâneo a Deus por nos ter dado a vida. O que sentimos de belo é fácil associar a Deus, mas estar na natureza pode ser duro.
O gelo ou frio intenso que queima o nariz e os dedos das mãos. O calor que sufoca. O mosquito ou lacrau que mordem. Os mosquitos a zumbir à volta da nossa cabeça. O pó que nos faz tossir, a chuva que gela, e quantas outras situações — como aquele cão no meio do caminho. Situações em que sentimos medo e nos apercebemos da nossa fragilidade. Também aí podemos rezar com a criação por ser um oportunidade de nos abandonarmos totalmente à misericórdia de Deus.
Há muito caminho a percorrer ao nível individual, nas nossas famílias e comunidades. Por isso, no espírito de pormos a Encíclica do Papa a Laudato Si’ em prática, surgiu do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral uma Plataforma de Acção — https://plataformadeacaolaudatosi.org; — que pretende ajudar todo o cristão (e não só) a conformar a sua vida a uma harmonia maior com o ambiente que o rodeia, trazendo o relacionamento com o mundo natural para o processo interior de amadurecimento da nossa relação com Deus. A plataforma propõe um percurso concreto com vários passos que durante os próximos tempos serão revelados. Mas podemos pensar que esta é mais uma actividade no meio de muitas. E talvez seja, mas com uma diferença.
No Catolicismo, Deus revelou um modo particular de se relacionar connosco que passa por uma espiritualidade humanística orientada pela experiência com Jesus vivo e ressuscitado, presente no meio de nós sempre que nos amarmos. Por isso, saber aprender a rezar com a criação passa pelos actos de amor concretos que realizamos no relacionamento com o mundo natural. Actos que podem ir da contemplação à limpeza, do comer menos ao dar de comer. Actos que abrem o nosso coração e entendimento para aquilo que Deus nos quiser dizer no momento porque, na simplicidade natural, Deus manifesta-se sempre no amor se estivermos atentos.
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