Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
A Plataforma de Acção da Laudato Si’ foi lançada — https://plataformadeacaolaudatosi.org. Um convite a mudar os nossos estilos de vida com acções concretas. Mas como diz a teóloga Isabel Varanda — e bem — em entrevista ao Sete Margens, as medidas que muitos consideram mais concretas podem ser realizadas por qualquer pessoa, independentemente da sua experiência de vida cristã. Logo, pergunta Isabel Varanda — «Como Igreja de Jesus Cristo, onde é que está a singularidade da atitude, de um estilo de vida?» É uma questão que me faço desde que a Laudato Si’ foi lançada.
A Laudato Si’ pode assentar sobre o melhor conhecimento científico do que qualquer outra Encíclica; e inspirar os cristãos na sua vida pessoal, bem como as instituições a que pertencem, a alterar os padrões de consumo, e a optar por tecnologias mais sustentáveis, mas nada disso distingue o cristão de uma pessoa de boa vontade. Numa outra entrevista feita a Luisa Schmidt, socióloga do ambiente, aquilo que o olhar sociológico considera como inovador na Laudato Si’, sinceramente, não me parece distinguir-se de outras inovações ao nível dos movimentos ecológicos, ou de apelos de outros Papas, anteriores a Francisco, em relação à ligação entre o grito da Terra e o dos pobres. Porém, numa entrevista à Ecclesia, Juan Ambrósio reconhece que nenhuma Encíclica trouxe tanto o tema da ecologia como esta para o centralidade da experiência cristã, mas demorou tempo a ser acolhida pelas nossas comunidades.
Uma das novidades talvez seja a expressão ”Ecologia Integral” que sintetiza a crise ambiental à social, mas já S. João Paulo II acenava a essa ligação na noção de ecologia humana, ou o filósofo Felix Guattari com as suas três ecologias, com uma terceira ligada à identidade da própria pessoa que, em Bento XVI, na sua Caritas in Veritate, assumia contornos mais profundos de uma ecologia espiritual. Existe, então, algo de radicalmente novo na Laudato Si’?
Em 2009, num artigo para a Communio, explorei a noção de “Ecologia de Comunhão” como — «(…) uma filosofia ecológica que envolve os ambientes social, mental e natural orientada para a sua comunhão.» Em causa estava a procura de uma nova compreensão da relação entre o ser humano e a natureza a partir de uma visão centrada nos relacionamentos, em vez dos habituais pólos (homem, vida, planeta, cosmos, etc.) que davam origem aos vários “centrismos”. A inspiração provinha do pensamento de Chiara Lubich quando escreveu uma carta à iniciativa cultural EcoOne ligada ao Movimento dos Focolares por ela fundado, onde dizia que — «sobre a terra tudo estava em relação de amor com tudo: cada coisa com cada coisa.» Mais tarde, na biografia de Andrea Wulf sobre o naturalista, Alexander Von Humboldt (1769-1859), fiquei a saber que a sua experiência de observação das plantas nos Alpes, montanhas suíças e Andes levava-o a concluir como tudo na natureza estava conectado e de como havia unidade na biodiversidade. Logo, a novidade de uma visão relacional da natureza não é uma originalidade de Chiara, e menos ainda do Papa Francisco. Onde está, então, a novidade?
Depois de escrever sobre estes temas há mais de uma década, percebi que a novidade da Ecologia Integral está no reconhecimento que o Papa Franscisco faz da centralidade da questão ecológica na experiência cristã. — «Finalmente!» — é o que muitos de nós dissémos e a alegria sentida foi imensa. Reconheço uma outra novidade no pecado ecológico. Isto é, unindo-se ao Patriarca Bartolomeu no n. 8, se confessamos a nossas faltas de amor para com os outros, deveríamos a partir desta Encíclica incluir as faltas de amor para com a natureza. O significado disto é profundo e não sei se o leitor se deu conta: a natureza é um “outro” que Deus me convida a amar. Posso amar uma pedra?
Se a pedra for um diamante, há quem morra de “amores” por essa, mas seria uma experiência utilitarista e longe da experiência de amor em Deus que, do pouco que sabemos, se revela como amor. Podemos amar um basalto? Uma oliveira? Uma formiga? Sim, podemos amar se soubermos viver a fraternidade universal por via da relação que possui vários níveis.
O relacionamento que tenho com uma pessoa numa caixa de supermercado não é o mesmo que tenho com um colega, e o que tenho com o colega é diferente do que tenho com um familiar, mesmo se todos podem ter a mesma idade. Logo, nada nos impede o relacionamento com uma pedra se soubermos reconhecer a diferença no nível de relacionamento. Mas que influência tem o relacionamento com uma pedra na experiência de vida cristã?
Um escultor cristão que faz uma imagem de um santo, Cristo, ou Maria, não vê, seguramente, a pedra, mas a figura nela contida que ele revela ao mundo com a sua arte, assim dizia Michelangelo. Mas a pessoa comum como tu e eu, talvez sejamos incapazes de ver para além da pedra. Muito do relacionamento com a natureza provém da observação. E através da capacidade de observar, a própria natureza suscita em nós um espontâneo louvor a Deus-Criador de todas as coisas. Partindo da experiência cristã de um Deus que em Jesus revela ser comunhão, a comunhão que podemos experimentar com o mundo natural é um sinal do quanto nós, feitos à imagem de Deus, somos-como-comunhão. Numa experiência cristã, ninguém ama uma pedra por si mesma, ou somente pela sua utilidade, ou pela figura que esconde, mas ama a experiência de beleza que provém da oração suscitada pela misteriosa comunhão que pode fazer com Deus através daquela pedra.
O mundo enfrenta desafios ecológicos sérios e pensar em amar as pedras parece ridículo e desprovida de significado. Aliás, amar as pedras parece estarmos a amar a matéria e sermos, por isso, materialistas correndo o risco de a colocar acima do ser humano em termos de dignidade. Não é a matéria nada mais do que matéria? Como se pode fazer uma experiência espiritual a partir da matéria? Mas, afinal, não somos matéria? Talvez alguém como o paleontólogo e jesuíta Teilhard de Chardin nos inspire a compreender o caminho que a Laudato Si’ pretende impulsionar na vida cristã. Diz ele neste excerto do “Hino à Matéria” —
«Bendita sejas, áspera Matéria, gleba estéril, duro rochedo, tu que só à violência cedes e nos forças ao trabalho quando queremos comer.
Bendita sejas, perigosa matéria, mar violento, paixão indomável, tu que nos devoras se não te acorrentamos.
Bendita sejas, poderosa Matéria, Evolução irresistível, Realidade sempre nascente, tu que a todo o momento, fazendo em pedaços os nossos padrões, nos obrigas a perseguir a Verdade até cada vez mais longe.
Bendita sejas, universal Matéria, Duração sem limites, Éter sem margens, triplo abismo das estrelas, dos átomos e das gerações, tu que, excedendo e dissolvendo as nossas medidas estreitas, nos revelas as dimensões de Deus. (…)
Sem ti, Matéria, sem os teus ataques, sem os teus assaltos, viveríamos inertes, estagnados, pueris, ignorando-nos a nós próprios e a Deus. Tu que feres e que tratas a ferida, tu que resistes e que cedes, tu que alteras e que constróis, tu que acorrentas e libertas, Seiva das nossas almas, Mão de Deus, Carne de Cristo, eu te bendigo, Matéria. (…)
Saúdo-te, inesgotável capacidade de ser e de Transformação onde germina e cresce a Substância eleita.
Saúdo-te, força universal de aproximação e de união, através da qual se reunifica a multidão das mónadas e na qual todas elas convergem no caminho do Espírito.»
De que fala ele senão da comunhão com Deus que provém de um relacionamento mais profundo com a natureza?
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