SABER APRENDER – A lidar com a catástrofe educativa

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Se muito tempo a navegar pela internet influi sobre a vulnerabilidade das crianças, sujeitando-as a uma cultura da distracção e de perigos psicológicos, o que pensar agora quando essa se torna essencial para prosseguir com a educação em tempo de pandemia? O famoso físico Isaac Newton viveu, também, num período de pandemia e foi graças a essa que ele, em casa, desenvolveu algum do trabalho científico mais criativo que veio a revolucionar o mundo. Ele não tinha internet. De onde vêm, então, os receios que levaram o Papa a dizer, recentemente, ao Corpo Diplomático da Cidade do Vaticano — «assiste-se a uma espécie de ‘catástrofe educativa’ face à qual não se pode permanecer inerte; exige-o o bem das futuras gerações e da sociedade inteira»?

Foto de MChe Lee em Unsplash

A necessidade de computadores e internet para manter activo o processo de aprendizagem dos nossos filhos e alunos, veio evidenciar as fragilidades do sistema educativo que há muito se deseja reformar, mas que ninguém — creio — sabe bem como fazê-lo, e (atrevo-me a dizer) porquê. Na crítica feita ao sistema educativo, há quem dê como exemplo a posição das mesas. Ao serem dispostas em fila, transmitem a ideia de um ensino de estilo fabril onde todos devem fazer o que o professor manda, fabricando profissionais em série, onde as pessoas são obedientes ao chefe e não questionam o que ele diz. Por oposição a isso, as aulas em que os alunos se encontram por grupos, e o professor orienta mais a busca de conhecimento de cada aluno, parecem estimular mais a criatividade e ajudam a enfrentar as incertezas do futuro, como já experimentámos com esta pandemia. Mas há quem pense que esta abordagem não garante a aquisição de conhecimentos. Será este o verdadeiro problema da educação?

Com o ensino on-line não há disposição de mesas ao estilo fabril, cada aluno está em casa, ou numa sala de computadores da escola e escolhe a mesa, podendo explorar o mundo que a internet lhe abre, sem tantas barreiras à busca de conhecimento, e — pelo menos no meio universitário — com a possibildiade dos alunos poderem assistir à mesma aula por dois professores diferentes se tiverem horário para isso, beneficiando de diferentes métodos de ensino. Porém, mantém-se justa a preocupação do Papa por uma catástrofe educativa, mas, curiosamente, não tanto pelas injustiças de condições de acesso à internet ou equipamentos para acompanhar as aulas, mas pelo excesso de internet. Será a catástrofe educativa uma questão meramete digital?

A minha experiência no ensino universitário é a de que os alunos continuam a defraudar-se, copiando uns dos outros em exame; os professores estão mais disponíveis para os acompanhar, mas eles não nos procuram senão para se queixarem de que já estão a fazer esta disciplina há muito tempo, e não conseguem; e os resultados com o acesso a tudo e mais alguma coisa não demonstram uma maior profundidade nos conhecimentos adquiridos, ou sabedoria para os usar criativamente. É a este ponto que volto a pensar em Newton que não tinha internet e, não só aprendeu coisas novas por si mesmo, como desenvolveu, também, conhecimentos novos.

O processo de aprendizagem associado à educação de cada pessoa contribui para o seu amadurecimento como ser humano. Deus não nos deu a inteligência com um propósito ou finalidade que não seja a de viver plenamente. Pensar não é uma obrigação humana, mas algo natural a cada pessoa. E a formação dos nossos conhecimentos só entra em catástrofe se desligarmos o pensamento da vida, e da procura incessante por uma vida plena. Ora, uma das características mais importantes de uma vida plena é a mente aberta à curiosidade. Newton, por exemplo, não precisava da internet por ser incrivelmente curioso, arriscando um responsório dos pais por fazer rasgos nas cortinas para estudar e compreender o comportamento óptico da luz. Mas a abordagem de Newton tinha um defeito.

Se a solução para o sucesso de todo e qualquer processo de aprendizagem fosse desenvolver a curiosidade, arriscar e fazer experiências, ou pesquisas, por conta própria, por que razão existem professores? Se a internet dá a cada jovem um acesso a uma fonte quase ilimitada de conhecimento, por que razão insistimos no papel dos professores? Será somente por ser necessário orientar os estudantes na busca do conhecimento no mar imenso de informação disponível? Pela minha experiência, um professor traz a relacionalidade para o interior do processo de aprendizagem. E o defeito na abordagem de Newton à aprendizagem era esse, reflectindo-se na sua personalidade. Isto é, ele tinha muita dificuldade em se relacionar com as outras pessoas, e partilhar o que fazia, como descreve James Gleick na biografia que escreve de Isaac Newton.

Ao Corpo Diplomático, o Papa dizia que — «a crise dos relacionamentos humanos, [é] expressão duma crise antropológica geral, que tem a ver com a própria concepção da pessoa humana e a sua transcendente dignidade» — e quando nos apercebemos de que a educação não é instrução, mas abrange a pessoa toda, dignificando-a, incluímos os relacionamentos como um dos aspectos mais importantes de todo o processo de aprendizagem. O despertar da curiosidade faz parte do modo como um professor pode estabelecer um relacionamento com os seus alunos. Foi o que aconteceu ao jornalista David Owen do The New Yorker.

O Sr. Whitson ensinava ciência quando Owen frequentou o sexto ano. No primeiro dia de aulas, o professor Whitson deu uma aula sobre uma criatura chamada cattywampus, um animal nocturno mal-adaptado que foi extinto por uma Era Glaciar. Enquanto falava sobre o animal, passou pelas mãos dos alunos um crânio do espécime. Todos tiraram notas e fizeram um teste a seguir. Quando receberam os resultados do teste, Owen viu uma cruz vermelha em todas as suas respostas. Teve zero. Ele e todos os seus colegas. Como foi possível quando haviam respondido de acordo com tudo aquilo que o Sr. Whitson lhes tinha ensinado?

A razão daquelas notas era simples: o animal não existia. O professor Whitson inventou tudo sobre o tal cattywampus, logo, tudo o que responderam estava errado. Mas que raio de teste foi aquele e que raio de professor faz uma brincadeira destas? Seria uma brincadeira? Nem por isso. Ninguém fez, ou teve a coragem de fazer, o que devia ter feito: questionar o professor e dizer-lhe que está errado naquilo que diz, quanto mais não seja, no dia seguinte. O ensinamento a extrair da experiência era o de que os livros de texto, assim como os professores, não são infalíveis. Mas as mentes estão demasiado adormecidas e aí está o maior perigo da internet que, pessoalmente, acrescentaria às preocupações do Papa e de todos nós. Estamos demasiado habituados a acreditar em tudo o que encontramos na internet, sem questionar.

As pessoas, sobretudo muitos professores, pensam que os alunos não devem questionar o que estão a ensinar. Alguns, aliás, ficam profundamente ofendidos com os reparos dos alunos em relação ao que dizem, ou ao modo como explicam as coisas. É um sinal de insegurança, mas talvez o mais triste é a oportunidade que perdem de estimular a curiosidade nos seus alunos.

No ”Fim da Educação”, Neil Postman refere a experiência, como professor, de ter criado a Academia da Precisão. Os alunos que são os membros desta academia têm uma missão: assegurar que nenhum dos erros cometidos pelo professor durante uma aula escapa ao seu escrutínio. Assim, se o professor tiver cometido algum erro ou imprecisão numa aula, na aula seguinte, estes alunos têm o mandato investido pelo professor de os apontarem.

Imaginem o cenário. Durante as aulas, estes alunos acabariam por estar atentos a tudo o que o professor diz e faz, para apanhá-lo ao menor erro e imprecisão. Conseguem-se dois resultados positivos: 1) o professor melhora o seu ensino; 2) e os alunos passam a estar mais atentos. Por outro lado, para saberem que erros ou imprecisões o professor cometeu, são inspirados a serem curiosos em relação à matéria ensinada, estudando mais e, provavelmente, melhor. Teriam, ainda, de confrontar uns com os outros para terem a certeza daquilo que irão dizer ao professor. Porém, tudo depende de uma certa atitude mental que o professor precisa. A atitude mental de saber aprender algo para poder crescer com uma tal experiência relacional: ser humilde.


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