Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Um das qualidades do ser humano é esta capacidade que tem para auto-transcender-se. Isto é, alguém que consegue ir para além de si próprio. O que estamos a assistir com a guerra na Ucrânia é o contrário disso. Assistimos a algo que não tem sentido para a maior parte das pessoas. O sentido é algo que cura quando o descobrimos, tal como na logoterapia de Vitor Frankl. Para sairmos de nós mesmos nesta auto-transcendência é preciso ir ao encontro do outro, no qual nos descobrimos a nós mesmos. Mas quem é este ser humano que se auto-transcende?
Os logoterapeutas colocam a visão que têm do ser humano assente em três pilares: 1) a liberdade de querer; 2) a vontade de um sentido; 3) e o sentido de viver. Liberdade, vontade, sentido e vida são palavras deste caminho que a visão logoterapêutica parece seguir. Mas o modo de sermos humanos que todos vivemos inclina-se mais para o que fisicamente experimentamos e o que mentalmente pensamos. Ir para além do que é material e mental implica abrir o corpo e a mente à consciência, e imaginar o que poderia estar para além de nós mesmos e de tudo o que nos rodeia. Essa é a dimensão noológica (sentido da consciência) e, por isso, é uma dimensão espiritual. Mas nem todos estamos sensíveis a acolher a existência dessa dimensão. Talvez seja por vivermos muito quantitativamente.
Muitas pessoas dizem — «Eu cá acredito no que vejo.» ou «Se não sentir, não acredito» — como se os sentidos fossem qualidades da existência humana quantitativas. Não é tão evidente como se quantifica o pensamento, e menos ainda quando se trata da faceta espiritual de cada pessoa. É como se acreditar numa dimensão espiritual fosse uma questão de escolha. Porém, eu não escolho a vida física ou mental, e o mesmo acontece com a vida espiritual. Isto porque a conotação religiosa da palavra “espiritual” é muito marcada. Nesse sentido, penso valer a pena pensar se o seu significado é mais amplo. E para isso recorremos a um cilindro.
Um cilindro é um circulo esticado. Um espaguete, lata ou bolacha. Por isso, pode estar muito ou pouquíssimo esticado. Se imaginarmos que esticar corresponde à dimensão humana sensível, e o raio do círculo corresponde à dimensão cognitiva, onde está a dimensão espiritual? No eixo. Sem um eixo central, um cilindro perde a sua tri-dimensionalidade. E quando reduzido à bi-dimensionalidade, olharemos para o ser humano com inconsistência pelos pontos de vista diferentes darem-nos a entender coisas diferentes sobre a mesma pessoa. Experimentem o seguinte com uma lata.
Qual a sombra que a lata produz quando iluminamos de lado? Um rectângulo. E se iluminarmos de topo? Um círculo. Logo, para quem apenas toma a perspectiva lateral como verdadeira, um rectângulo pode representar uma caixa e não um cilindro. E quem assume como verdadeira apenas a perspectiva de topo, um círculo pode representar uma esfera ou a base de um cone. O eixo retira o cilindro da bi-dimensionalidade e revela-o tal qual é. É essa a perspectiva de auto-transcendência que a dimensão espiritual da nossa existência oferece.
A dimensão espiritual que todo o ser humano possui, independentemente daquilo em que acredita, leva-nos a reconhecer duas coisas:
- quando o ser humano é projectado bi-dimensionalmente, fora da tri-dimensionalidade que a espiritualidade dá à sua vida, diferentes pontos de vista podem levar a imagens contraditórias (rectângulo visto de lado, círculo visto de cima);
- quando reduzimos o ser humano a uma dimensão menor do que a tri-dimensional que o completa, podemos obter uma imagem dele ambígua (o círculo visto de topo poderia ser um cilindro, esfera ou cone).
Na prática, a dimensão espiritual chama a nossa atenção para a necessidade da unidade do ser humano apesar da multiplicidade de corpo e mente que as pessoas mais experimentam na sua vida. É possível desenvolver a percepção do eixo correspondente à dimensão espiritual sem se ser uma pessoa com sensibilidade religiosa? Por muito que custe a crer aos que possuem essa sensibilidade, eu creio que sim. E aí está o drama da Evangelização.
Se a Boa Nova do Evangelho passa pela experiência de Jesus na vida das pessoas através de um amor incondicional, onde entram as Igrejas, os sacerdotes, e as instituições religiosas? Quando são um anti-testemunho deste amor incondicional, não entram e mais: tiram aos outros a possibilidade de experimentarem o valor unitivo que o eixo da espiritualidade nos dá. No coração de algumas pessoas está a crítica à religiosidade, separando-a da vida espiritual quando, na realidade, deveriam ser uma só, mas talvez aqui seja de recordar o primeiro pilar da visão logoterapêutica do ser humano: a liberdade de querer.
Uma vez ouvi que “querer” e “apetecer” são coisas diferentes. Pode-nos apetecer o que é bom e o que é mau, mas o querer está sempre associado ao que nos faz bem. Por exemplo, quando as pessoas dizem — «eu quero um papo-seco cheio de manteiga» — na prática, o que estão realmente a dizer é — «apetece-me…». Acontece que no caso da dimensão espiritual, a questão não é uma de “apetite”, mas de “querer”. E há quem não queira pela simples razão de não lhes termos ajudado, com o nosso testemunho, a perceber que a espiritualidade faz-nos bem. Por exemplo, olham para nós e não nos vêem felizes.
Neste período quaresmal onde falamos de oração, jejum e abstinência, ou, então de renúncia, poderíamos também pensar no caminho quaresmal como uma oportunidade de saber aprender a desejar descobrir o eixo da nossa vida espiritual. Pois, há uma imagem que não estou certo da sua universalidade, mas partilho: enquanto no mundo existem comprimentos e raios diferentes, o eixo é uma só dimensão, uma só realidade, um só eixo que nos une a todos, ainda que tenhamos ritmos e sensibilidades diferentes. Por isso, quando procuramos juntos o eixo, descobrimos aquilo que nos une como mais forte do que aquilo que nos divide. E que a grande renúncia da existência humana será sempre à descrença da realidade da dimensão da espiritualidade.
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