Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
No número 116 da Laudato Si’, o Papa Francisco termina com «a interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável.» Esta frase faz-me muita confusão. Já é difícil conceber o ser humano como senhor de si mesmo, quanto mais ser senhor do universo. Depois, não é Deus o Senhor do Universo? Será que começar esta expressão com letras minúsculas faz alguma diferença? Por fim, não entendo bem o sentido do ser humano como administrador responsável. Aparentemente, esta ideia vem de um colóquio promovido pela Federação das Conferências Episcopais da Ásia em 1993, por isso, depreendo que se refira aos bens relacionados com a criação. Mas, como cientista, não percebo como pode o ser humano administrar o clima, uma falha geológica, ou até o ecossistema de uma planície africana, nem para quê. Há qualquer coisa estranha naquela frase.
A linguagem do senhorio é medieval e a sua utilidade para compreender qual o nosso papel no universo através dos diversos domínios da acção humana merece uma actualização para a cultura actual. Hoje, a palavra ”senhor” usa-se mais como referência respeitosa a uma pessoa do sexo masculino, do que num contexto de hierarquia social como antigamente. “Senhor do universo” é uma expressão usada no sentido de posse, como “senhor da quinta” ou até “senhor de si mesmo.” Por isso, faz sentido que o ser humano possua o universo onde ele não passa de um grão de poeira cósmica apesar de ser consciente de si mesmo? O que somos nós em relação ao universo? Depois, nós só podemos ser administradores se houver uma cultura corporativa de bens ou serviços a administrar. Por isso, a natureza como bem carece de uma adequada interpretação para evitar a sua objectivação, e como serviço carece, também, de algum cuidado na interpretação para evitar uma noção subserviente desadequada.
Por que razão questionar esta frase em particular, sem correr o risco de diminuir o valor desta insólita e inspirada Carta Encíclica? Se pensarmos bem, estamos no quinto ano após o lançamento da mesma, e em muitos sectores da Igreja desde as Dioceses, Paróquias e Movimentos, procura-se reflectir que impacte essa teve sobre a nossa vida quotidiana e o modo de ser cristão no mundo. Pelo facto de reflectir sobre as questões ambientais e espiritualidade há algum tempo, senti um florescer de iniciativas como a plataforma Cuidado da Casa Comum, conferências nacionais e internacionais, maior sensibilidade nas homilias à relação do ser humano com o mundo natural, e também senti algumas alterações práticas. Nos encontros vi um maior cuidado com o lixo produzido, uma preocupação com o uso de materiais recicláveis, e uma maior sobriedade na alimentação. Mas será suficiente?
Correndo o risco de fazer um juízo injusto, a minha experiência é a de que a verdadeira alteração climática sobre a qual podemos agir mais é a que diz respeito ao clima interior. Quando o desejo de mudar parte do nosso interior, encontramos a criatividade para criar as experiências transformativas que produzem efeito no ambiente exterior e significado no ambiente interior. Não basta falar sobre o assunto, mudar as lâmpadas dos edifícios, separar o lixo ou até apanhar o lixo. Tudo isso vale, mas será que as pessoas se interessam pelas razões de fazerem o que fazem?
Nem todos os plásticos são recicláveis, reduzir seria melhor. Consumir menos carne não é aderir ao vegetarianismo, mas promover a redução das emissões de gases com efeitos de estufa e ter uma alimentação mais saudável. E ao contrário do que o Papa escreve no n.55, investir numa bomba de calor, commumente conhecido como ar condicionado (não “condicionador de ar” como está na tradução para português do Brasil que usamos em Portugal da Encíclica) é uma opção energeticamente mais eficiente, do que uma caldeira, por exemplo, pelo que não sei quem aconselhou o Papa a esse respeito. Ou seja, há tanto ainda para saber e que compreendemos pouco que o ser humano é tudo menos senhor do universo e não tem ainda qualquer competência para ser um administrador responsável em relação à Casa Comum. O que somos então? Meramente pó das estrelas?
Desde S. João Paulo II que a espiritualidade cristã faz um apelo ao desenvolvimento de novos estilos de vida. E refere que a pessoa humana criada à imagem de Deus é um ser feito para a relação, para a comunhão e para o serviço. A humildade é uma das características da vida cristã profunda, que o mundo secular reconhece cada vez mais como um valor da liderança responsável. Por isso, o ser humano deveria descobrir como é humilde perante o universo, não “senhor”.
Depois, se há algo que podemos e devemos administrar com responsabilidade são os nossos comportamentos. Andamos depressa demais na estrada em vez de extrair da lentidão o detalhe que a beleza da natureza oferece. Consumimos demasiados produtos com elementos descartáveis em vez de os produzir (por exemplo, iogurtes). Pensamos que ter um estilo de vida sustentável é fazer uma checklist de boas práticas, em vez de conhecermos as razões para realizar as pequenas mudanças que fazem as grandes diferenças (por exemplo, usar guardanapos de pano, ou purificar água com carvão activado em vez de a comprar engarrafada). Os exemplos que dei foram alguns que gradualmente entraram na nossa vida familiar e percebi como o grande desafio da Laudato Si’ se enfrenta no concreto da vida.
Para que a natureza não sofra mais com os nossos comportamentos, basta que a deixemos em paz. E se ir ao encontro do pobre e marginalizado não significa dizer-lhe o que deve fazer, mas escutá-lo e cuidar dele, também podemos fazer o mesmo em relação à natureza que habita connosco a Casa Comum.
A frase que gostaria de ler na Encíclica Laudato Si’ seria que ”a interpretação correcta do conceito de ser humano como relação no universo é entendê-lo no sentido de cuidador responsável.” Pois, quem cuida dos relacionamentos, cuida daqueles com quem se relaciona. E imprime à narrativa cósmica um sentido e significado com as experiências relacionais concretas que faz, de modo a que o estilo de vida seja um testemunho de que existe um processo de amorização a acontecer e a transformar subtilmente o universo.
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