SABER APRENDER – A descobrir o encoberto

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Uma jovem, um índio, um refugiado ambiental e um casal que estuda a vida selvagem. São estes os protagonistas do novo filme intitulado “A Carta” (The Letter) dedicado à questão ambiental que a Laudato Si’ trouxe para a mesa das negociações entre países e para o altar. A inspiração pensamos ser do Papa Francisco, mas estou cada vez mais convicto de que a inspiração (como em todas as Cartas Encíclicas) provém do Espírito Santo. O que quer Deus dizer-nos quando nos convida a olhar para o planeta onde vivemos, pensar naquilo que estamos a fazer e no relacionamento que temos com o mundo natural?

 

«Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo.» (Laudato Si’, 118)

Há algum tempo que escrevo frequentemente quanta impressão me faz ver cartazes a dizer “Salvar o Planeta” por pensar que antes disso seria necessário salvar o nosso relacionamento com o planeta. Mas reconheço a precedência assinalada pelo Papa Francisco que, talvez, só um ser humano novo pode gerar uma nova relação. Na verdade, parece-me que esta dinâmica é semelhante ao equilíbrio nas reações químicas. Não há reacção num sentido e, depois, no sentido inverso. O equilíbrio exige os dois sentidos em simultâneo. Por isso, gerar pessoas novas para renovar o relacionamento com a natureza exige um relacionamento novo com a natureza para gerar pessoas novas. Porém, renovar o nosso relacionamento com a natureza não é somente uma ideia ou desejo, mas uma síntese entre dois aspectos culturais influentes: ciência e teologia.

A um dado momento do documentário “A Carta” , o Papa Francisco diz —

«A Teologia na Laudato Si’ está em diálogo com a ciência. Hoje, e nunca, se pode fazer teologia sem o diálogo com a ciência. Mais do que isso, Deus deu-nos a capacidade da investigação, esta capacidade intelectual de procurar as verdades. Obviamente que, a narração bíblica da criação é uma forma mítica de expressar o que aconteceu.»

Por isso, teologia e ciência podem tornar-se um motor que nos inspira a desbravar o caminho certo para uma recíproca geração de ser humanos novos com novos relacionamentos entre si e o mundo natural. A ciência desenvolve-se num horizonte sequencial em que uma teoria pode generalizar outra ou substituí-la. As “verdades” que a ciência apresenta à compressão da realidade que nos rodeia são provisórias, mas, também, inesgotáveis. Por seu lado, a teologia oferece um horizonte em profundidade, onde o absolutismo de uma verdade deixou de fazer sentido para dar lugar à busca incessante daquilo que a “nuvem do desconhecido” encobre e convida a perscrutar. Porém, apesar dos pensamentos profundos que o diálogo entre a ciência e a teologia suscita, o que dinamiza a nossa acção são as histórias.

Em “A Carta”, conhecemos as histórias de um muçulmano refugiado ambiental do Senegal, um chefe indígena da Amazónia que defende o povo, os animais e a selva, uma jovem activista da Índia, e um casal de cientistas da vida selvagem que estuda o impacto das alterações climáticas nos corais do Havai. O filme é comovente pelas histórias de cada um, mas também pelo momento em que o Papa Francisco se encontra com este grupo moderado pela economista e activista ambiental irlandesa Lorna Gold. Quando reflecte sobre o que se está a passar, usa a história da Torre de Babel de um modo novo para mim. O Papa salientava que se um tijolo caísse enquanto se construía a torre, o trabalhador era severamente castigado, mas se caísse um trabalhador, substituía-se por outro. A Torre de Babel no contexto da Laudato Si’ representa a torre da arrogância humana, e que tudo o que fazemos para sustentar estilos de vida insustentáveis merece um “basta” a todos os níveis.

Se um prédio cair, faz notícia. Mas um massivo bloco de gelo que se quebra e mergulha no oceano, fazendo aumentar o nível da água, não faz notícia. Em muitas partes do mundo e, sobretudo, em Portugal, um incêndio é muito mais do que árvores a arder e o drama de poder atingir as casas das pessoas. Silenciosamente, ecossistemas inteiros são vítimas de um acto irreversível de morte e destruição pelo fogo. O filme “A Carta” mostra o lado da maior beleza à superfície da Terra, ou no fundo do oceano, mas não esconde o resultado de uma natureza que reage aos nossos caprichos, sendo o mais pobre o que mais sofre.

Durante as filmagens, um dos protagonistas soube de mais um desastre ambiental na sua aldeia. Partilha-o com o grupo que só pode assegurar unidade na dor naquele momento de profunda impotência. Para muitas destas pessoas que assumem na vida a missão de usar a palavra para gritar com a linguagem humana o que a natureza está a passar neste momento, o sentimento é de serem pequenas e ignoradas. Mas a Laudato Si’ é a Carta que lhes dá voz e este filme é um testemunho único daquilo que o Papa Francisco chamou de ecologia integral.

Infelizmente, os maiores passos que seriam necessários dar dependem dos políticos e agentes económicos que, dificilmente, põem de lado o seu interesse para acolher e agir na direcção do interesse do outro. Mas a Laudato Si’ convida a não desistir de sermos uma pequena luz humilde que um dia iluminará toda a sala que mergulha na mais irreversível escuridão.

O Chefe Dada da Amazónia dizia a um dado momento que muito daquilo que antes estava a ser encoberto está a ser descoberto. É preciso sabermos aprender a descobrir o que muitos querem encobrir. O próprio Jesus disse-nos que a verdade nos libertará porque essa pode ser expressão da presença do Espírito Santo em quem n’Ele acredita e na semente daquele que possui uma convicção diferente.

Lorna Gold no início fala da Laudato Si’ como uma Carta Pessoal de Francisco para cada ser humano. No final deste filme fica a impressão de como isso traduz a experiência de ter sido o único documento pontifício (salvo erro) que foi acolhido por crentes de todas as religiões e pessoas de boa-vontade sem convicções religiosas. A unidade na diversidade de experiências é, para um cristão, o sinal visível de Deus-Trindade invisível. Talvez ler de novo esta carta com a noção de ter sido escrita pessoalmente para todo o que a lê, possa ajudar-nos a saber aprender a descobrir tudo o que em nós deveria mudar, e encontra-se encoberto, sem nos darmos conta disso.


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