Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Será que as pessoas têm medo de que a ciência lhes retire a fé ou diminua o que sentem sobre a criação de Deus só por a compreenderem melhor? Quando ao fim de 30 anos de catolicismo, um grande amigo partilha-me ter perdido a fé por causa da ciência, compreende-se a razão da questão que coloquei. Por outro lado, quando depositamos a nossa confiança no progresso científico, quer dizer que deixámos de confiar na acção de Deus? Por exemplo, um outro grande amigo tinha um problema grave no pâncreas, e quando soubemos da situação geraram-se várias correntes de oração a pedir a Deus por ele. Ele precisava urgentemente de ser operado. Quando finalmente foi possível realizá-la, além de ter corrido imensamente bem, os médicos verificaram não haver rasto de qualquer metástase, oferecendo esperança. Semanas depois, começou a sentir-se menos bem e há dias acabou por partir para o Pai. Serão os nossos limites razão para desconfiar da ciência e até de Deus?
Numa correspondência que li na revista Nature de setembro de 2019, o filósofo de ciência Stephen Webster do Imperial College of London falava da necessidade de encontrarmos tempo para contemplar através de três ideais práticos: reticência, intimidade e inocência. Achei estranho estes ideais.
Ser reticente é fazer uma pausa para apreciar o que fizemos. O próprio Darwin dizia que depois de um longo tempo, o ser humano pode criticar o seu trabalho com se tivesse sido outra pessoa a fazê-lo. Ser íntimo em relação ao que fazemos significa ir para além daquilo que são os instrumentos que usamos e os dados que obtemos. Implica envolvermo-nos com o objecto de estudo de tal como que se torna um sujeito para nós. Ser inocente significa que o centro daquilo que fazemos não é o reconhecimento ou o dinheiro, mas o valor das próprias ideias, mantendo-nos abertos a novas perspectivas e abordagens à compreensão do mundo ao nosso redor. Não é da pausa, intimidade e genuinidade que vive aquele que não deixa o horizonte físico limitar o metafísico?
A metafísica como palavra que expressa o que está para além (meta-) da física é um campo do saber humano explorado pela filosofia que se relaciona com a natureza da realidade. Não podemos separar qualquer pensamento de Deus do modo como concebemos o mundo através de uma reflexão metafísica. Porém, como Deus precede o momento em que nasceu a consciência humana e até a existência do mundo, a metafísica terá sempre dificuldade em apreender a ideia de Deus. Pois, não encontra pontos de apoio sensíveis no corpo, acessíveis ao pensamento físico, mas somente apreende através da mente e essa é subjectiva. E como as pessoas podem ter pensamentos e visões diferentes sobre a realidade, ligar ciência e Deus estará sempre sujeito a essa subjectividade que desafia a compreensão universal da realidade. Por exemplo, neste contexto, a pergunta sobre a prova científica (das ciências naturais) da existência de Deus está mal formulada porque a percepção que temos de Deus é metafísica e as ciências naturais lidam apenas com a -física. Por isso, ao contrário do que habitualmente se pensa, a ciência e a fé não são duas estradas alternativas para pensar Deus, mas uma (ciência) está ao nível da interpretação do caminho enquanto a outra (fé) está ao nível da percepção. Por exemplo, quando surgiu a mecânica quântica interpretámos que a incerteza faz parte da realidade das ínfimas coisas, e percepcionámos esperar que a toda a hora podem estar a criar-se coisas novas neste universo (creatio continua), mesmo que não nos demos conta disso.
Os momentos concretos da vida e as experiências que fazemos parecem estar longe destes raciocínios complexos associados à relação entre ciência e fé. E se a nossa literacia científica ou teológica/religiosa não for a melhor, menos interessante se torna pensar nestas coisas. O risco que corremos pela preguiça intelectual — perdoem-me — é reduzirmos a profundidade de significado da realidade revelada por este diálogo de saberes, a uma visão superficial do entrelaçar entre ciência e fé, de tal modo que recorremos ao sentimento quando experimentamos a tensão presente nesta relação. Por exemplo, quando criticam a nossa fé com ciência, ou quando se critica a ciência com a fé.
Na formação em idade escolar, damos mais valor à parte científica por causa da base física, do que à parte teológica por causa da base metafísica associada à visão do mundo que varia entre as pessoas. Normalmente ligamos as duas coisas com a filosofia, mas essa pode gerar um discurso com um grau elevado de elaboração que a pessoa pouco habituada perde-se. Será possível encontrar um modo mais abrangente e sensível de ajudar cada um a crescer na literacia científica e na teológica relacionada com a fé, independentemente daquilo em que crê?
A três práticas ideais contemplativas básicas que referi — reticência, intimidade e inocência — podem abrir um espaço interior para crescermos nesta estrada da vida feita de compreensão (ciência) e amor (fé) ao mundo criado. Quando algo parece gerar um conflito interior proveniente de uma dissonância entre ciência e fé, franzimos o sobrolho porque achamos que alguma coisa não está certa. É o sinal claro para parar e reconhecer que diante de nós se abre uma porta para aprender alguma coisa de novo. A reticência impede que tiremos conclusões precipitadas.
Quando não conhecemos bem uma pessoa sabemos que uma intimidade maior pode mudar completamente a nossa perspectiva sobre ela. Quantas pessoas que nos pareciam arrogantes, deixaram de o ser quando as conhecemos melhor e compreendemos o sofrimento que as levava a ter determinadas atitudes. Com o mundo não é diferente. Temos medo da chuva porque fugimos dela. Temos medo da floresta porque raramente lá caminhamos. Temos medo do conhecimento científico e tecnológico porque não percebemos patavina daquilo e temos vergonha que os outros saibam disso. A intimidade com o mundo abre-nos humildemente à possibilidade de conhecer coisas novas.
O olhar daquele que genuinamente tem uma grande sede de saber e interessa-se pelas coisas é de uma inocência incomparável. É um olhar aberto, humedecido e fascinado. É um olhar feliz. E quem não pode olhar, pode ouvir ou sentir com a mesma inocência pelas apuradas capacidades da escuta atenta e do tacto através das quais nos sentimos por essas acolhidos, aceites e amados.
É tudo muito bonito, mas Jesus poderia alguma vez ter nascido de uma virgem? É com questões como esta que muitos “iluministas” tentam usar ciência para ridicularizar a fé. — Se Deus é tão bom por que razão o meu filho morreu num desastre natural? Quer isso dizer que Deus salva uns e não salva outros? Muita tinta escorreu pela caneta dos filósofos e teólogos, ou muito teclam nos dias que correm, mas será sempre difícil construir o texto ou a ideia perfeita que faz um esclarecimento universal sobre estes assuntos. Será razão para desistir da procura e cada um vai à sua vida?
Um ribeiro que nasce na montanha e desagua no mar deixa um rasto de vida por onde passa o seu leito. Mas o leito não passa, naturalmente, por toda e qualquer parte. Está limitado pelo sulco escavado na terra e segue um caminho, mas a vida que gera não se limita e propaga-se a partir das suas margens. Quando não existem limites, como num deserto, não se distinguem caminhos, e se não fosse o Sol estaríamos absolutamente perdidos. Quando nos fazem perguntas com a pretensão de questionar as nossas convicções, importa reconhecer que nos movemos através dos nossos limites e não devemos recear as perguntas difíceis, mas saber aprender a contemplá-las com reticência, intimidade e inocência. Pois, há perguntas que não servem para gerar respostas, mas vida.
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