Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
A ligação que temos com o ambiente à nossa volta é mais forte e íntima do que pensamos. Se estivermos rodeados por um ambiente degradado ficamos deprimidos, ao passo que se o ambiente estiver cuidado, repleto de beleza e sorrisos, sentimo-nos bem e seguros. Talvez o ambiente à nossa volta seja, também, uma expressão do estado de espírito que vivemos dentro de nós, como indivíduos e em sociedade, tornando a percepção humana uma das bases para aprendermos a conhecer a realidade. Que percepção temos de quanto o nosso interior é capaz de transformar o exterior? A nossa percepção das coisas depende da percepção dos outros? Há pessoas que confundem a sua percepção das coisas com a autoridade que pensam ter sobre determinados assuntos.
Quando lemos algo impresso numa página (de livro, jornal, ou revista), confiamos na sua veracidade e o conteúdo exerce autoridade sobre a nossa percepção da realidade. Mas se alguém nos disser o mesmo que está escrito nessa página sem o sabermos, a autoridade que tem sobre nós não parece ser a mesma. Por isso, a ligação que estabelecemos com a realidade através do meio exterior, isto é, pelo que lemos com os nossos olhos ou ouvimos da boca dos outros, afecta a percepção das coisas e pode dificultar o acolhimento da aprendizagem que precisamos viver para avaliar quão real é uma percepção. De facto, aprendemos mais sobre a nossa percepção das coisas pela experiência própria do que pela autoridade alheia. Porém, muitas vezes invoca-se mais a autoridade para ir ao encontro da percepção das pessoas, do que se proporciona a experiência para que vivam a realidade na primeira pessoa. E uma das experiências mais fundamentais para desenvolver a nossa percepção da realidade é a curiosidade.
Uma criança que não tem curiosidade por coisa alguma é estranho. E se aceitarmos que a curiosidade é uma experiência fundamental para trabalhar a percepção humana da realidade, não admira que uma criança explore tudo e mais alguma coisa, arriscando. Não deixar de ser curioso como a escola parece murchar a curiosidade de uma criança. Com o passar do tempo e o aumento do conhecimento que pensamos ter da realidade, em vez das experiências estimularem a curiosidade, aparentemente, estimulam a resistência. Depois, justificamos a menor ousadia com a prudência e esquecemos, gradualmente, que as experiências que a curiosidade desperta são, também, interiores. Nesse sentido, as percepções da realidade não provêm só do que está à nossa volta, mas partem, também, do nosso interior que pode fechar-se sobre si mesmo ou abrir-se.
Um colega meu, numa entrevista para a televisão, queria mostrar como neste tempo de pandemia era importante olhar para cada coisa sob diversos pontos de vista. Mostrou um maçã brilhante e vistosa, mas quando a rodou tinha uma dentada e estava a oxidar. A percepção que os telespectadores tinham da maçã mudou imediatamente. Com a percepção da realidade acontece algo de semelhante. Se não existe grande relação entre a nossa experiência e os eventos que nos chegam pelos meios de comunicação, passamos do vislumbre ao juízo num ápice. E a razão dessa passagem imatura deve-se à gratificação instantânea que provém da percepção das realidade com o mínimo esforço possível.
A realidade que mais facilmente aceitamos, sem esforço, é a realidade palpável proveniente da experiência dos sentidos. Se vejo, oiço, cheiro, saboreio ou toco, é real. Nesse sentido, qualquer aspecto relacionado com o meio ambiente que experimentamos na pele, é real. Mas a aprendizagem experiencial que desenvolve a percepção da realidade é a diferença entre conhecer uma coisa e conhecer algo sobre essa coisa. Um aspecto relevante se pensarmos como as notícias falsas nos têm afectado.
Num mundo de desinformação em que vivemos, torna-se difícil ter a percepção do que é real e não é. Quando Donald Trump disse que as pessoas podiam tratar-se da Covid-19 com hidroxicloroquina, muitos americanos acreditaram e sofreram as consequências. Foi a experiência que
mostrou (do modo mais duro) que não funcionava, apesar dos estudos científicos que demonstravam o contrário daquilo que Trump afirmava nas redes sociais. Por isso, não há maior autoridade na percepção da realidade do que aquela que surge da comunhão especial entre as pessoas: uma comunhão de experiências.
Ninguém pode ocupar o espaço da experiência do outro quando essa lhe dá uma certa percepção da realidade. Aliás, a mesma experiência será sempre vivida de modo diferente quando feita por pessoas diferentes porque todos somos únicos. Mas se estivermos cientes de que a nossa percepção da realidade é única, mas não é a única, abrimos dentro de nós o espaço para acolher a percepção do outro sobre a mesma realidade. Como S. Paulo quando fala da Caridade.
S. Paulo disse que de todas as virtudes (fé, esperança e caridade) a maior é a caridade. Muitas pessoas podem interpretar “caridade” como dar esmola, mas não é essa a percepção de S. Paulo quando se refere a essa virtude como “a maior”. A caridade é a maior virtude porque significa comunhão de experiências vividas nos relacionamentos com os outros e na partilha recíproca da diversidade de percepções humanas da realidade. Basta pensar nas muitas divisões no mundo que seriam resolvidas se houvesse uma melhor comunicação, comunhão e relacionamento entre as partes.
Contudo, não poderá a pessoalidade da percepção da realidade correr o risco de tornar a partilha recíproca numa amálgama de percepções, sem nexo, justificando o valor do relativismo onde é melhor cada um saber de si? Por outro lado, se a minha percepção é oposta à do outro, e ambas têm na sua base uma experiência, não poderá o contraditório anular o valor da comunhão de experiências na construção da percepção humana da realidade? E se o normal no mundo fosse ser daltónico, como poderia aquele que vê a infinidade de cores mostrar aos outros uma percepção da realidade com a sua experiência?
A comunhão de experiências não só exige abertura como confiança na percepção da realidade que o outro vive. Podemos não compreender, mas nada nos impede de acolher e estarmos sempre dispostos a mudar e aprender. A vida é um processo em devir. Não posso mudar o outro com as minhas percepções se não estiver disposto a mudar também. A única constante experiencial do mundo é estar sempre em mudança. Estranhamente, por vezes, é o paradoxo que nos impulsiona a saber aprender a conhecer a realidade.
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