Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Existem artigos científicos onde as descrições dos resultados parecem-se com a música do tiro-liro-liro — cima, baixo, sobe, desce, sobe outra vez, etc. O que não esperava é que a homilia da Ascensão do Senhor soasse da mesma maneira — o Senhor desce à terra, depois sobe ao céu, mas antes desce de novo para subir, definitivamente, para o céu. Senti que tanto na ciência como na fé seria benéfico para quem escuta pensar-se um pouco mais neste tipo de linguagem, talvez com um sentido e significado mais explicativos e exploratórios.
Usar as imagens em que Deus sobe ao Céu e desce à Terra pretendem ser metáforas, mas do mesmo modo que em ciência as metáforas podem mudar, em religião não me parece que seja diferente. As primeiras metáforas para um átomo de hidrogénio eram semelhantes às de um sistema solar com o electrão à volta do núcleo, mas com a mecânica quântica a imagem muda e assemelha-se mais a uma nuvem que representa a probabilidade de presença do electrão. Não sou teólogo, por isso, não tenho uma imagem pensada para a Ascensão que seja diferente e válida, mas como cristão e cientista, parece-me mais profundo que estas manifestações de Deus ocorrem em determinados tempos e lugares na história, mais do que no espaço e com uma direcção em particular. Assim, em vez de um “sobe” ou “desce”, seria mais um “aqui” e “ agora”, ou “ali” e “outrora”.
A Ascensão num caminho espiritual não tem propriamente uma altura (lugar ou tempo), mas revela-se como manifestação experiencial de um sentido mais “interiorizável” de realidades que estarão sempre a puxar pela nossa criatividade. A Ascensão de Jesus é um sinal de que existem transformações profundas no íntimo que afectam o nosso corpo-mente-espírito do modo que Deus quer. Alguém “subir ao Céu” é visualizável (como na sétima arte), mas estranho para um cientista. Porém, se pensar antes do desapego da realidade física para revelar aspectos da realidade que estão para além da física, então, a experiência da Ascensão torna-se algo que reporta a uma dimensão espiritual a-temporal na sua dinâmica, o que pode apontar algumas pistas.
Cada um de nós alimenta o caminho árduo de cada dia com esperança e sentido de pertença ao lugar onde está. Em vez de Jesus “descer”, quando nos amamos, parece-me que nos tornamos mais sensíveis à presença de Jesus no meio de nós. Pois, Ele disse que estaria sempre connosco, logo, quaisquer palavras que confiram um movimento físico a uma realidade espiritual serão sempre limitadas (ou obsoletas) no seu significado. Quando rezamos o Pai Nosso dizemos — «… que estais nos céus». Recordo as palavras de uma amiga quando me dizia que esses “céus” eramos nós, pelo que a Ascensão de Jesus aos “céus” visto desta forma significaria um entrar na intimidade do “pequeno céu” que Deus convida cada um a ser para os outros neste mundo e tempo.
Muitas vezes escutamos nas homilias o sacerdote a recordar que «somos templos do Espírito Santo», pelo que se abrirmos o coração (que significa todo o nosso ser, aquilo que conhecemos dele e o que desconhecemos) e deixarmos que Ele entre e transforme o nosso íntimo, crescerá em nós a visibilidade que Deus quiser dar ao mundo de Si mesmo através do modo como amamos ao ponto de suscitar no outro a vontade de amar. A Ascensão parece-me ser, hoje, a “Excensão” (uma palavra nova?) da presença de Deus que se manifesta exteriormente a partir da nossa interioridade nos mais diversos aspectos da nossa vida. E como a nossa vida precisa da experiência da intimidade com Deus para pensarmos, agirmos e sentirmos as coisas de um modo mais aberto e humano, só acolhendo a realidade da Sua presença dentro de nós, poderemos permitir que Ele se manifeste fora de nós.
Quando Deus “sobe” e “desce” no discurso de alguém, o tiro-liro-liro dessa linguagem leva-me a pensar num Deus distante e que nem sempre está presente quando não parece ser essa a experiência que muitos fazem de Deus. Isto é, a experiência de um Deus próximo, sobretudo quando passamos mais dificuldades por questões de saúde corporal, mental e espiritual. Se a linguagem teológica mantiver algumas das suas metáforas, e não as adaptar à literacia actual, creio correr o risco de tornar obsoleto o seu discurso.
Não sou teólogo e não tenho o sacramento da ordem, pelo que esta impressão proveniente da escuta de uma homilia na Celebração da Ascensão pode ser considerada como uma divagação inconsequente de um cristão como outro qualquer. Mas não é “divagar” que se vai ao longe? Talvez sim. Talvez não.
A Evangelização é essencial para responder à vocação de todo o cristão. Comunicar a mensagem do Evangelho é uma necessidade que todo o cristão sente no seu interior, impelido, certamente, por uma inspiração de Deus que nos habita. Mas o mundo evolui nos modos de falar e compreender que exigem uma actualização da nossa linguagem e das metáforas que usamos. Quando os Evangelhos foram escritos, os autores usaram a linguagem com as metáforas do seu tempo, mas dentro da linguagem de cada tempo existem as sementes das realidades universais e, por isso, transversais ao longos dos tempos. Quando ciência e teologia entram em diálogo, descobrem novos modos de explorar melhor e com mais sentido e significado essas realidades universais. Realidades através das quais Deus caminha connosco pela história. Mas há muito tempo que sinto alguma ausência do aprofundamento deste diálogo entre ciência e teologia, feito através da filosofia como campo comum onde o cientista e o teólogo encontram um espaço dialogal. Porém, nada dispensa o tempo gasto em saber aprender a actualizar estas realidades universais, de modo a que mudanças na nossa linguagem não sejam modas, mas momentos de claridade que nos impulsionam a viver o que comunicamos. Hoje, parece-me que a divulgação teológica é tão importante quanto a divulgação científica, mas são raros ainda aqueles que trabalham pelo diálogo de ambas. Diálogo que implica saber aprender a actualidade a linguagem.
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