Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
«Chegou a hora.» — diz Jesus a André e Filipe (Jo 12, 20-33). Chegou o momento de viver uma verdade difícil para Jesus. O caminho do calvário aproxima-se. Talvez Jesus não soubesse bem os detalhes, mas não era preciso saber. Porém, a hora de que Ele fala clarifica-se depois de fazer a analogia com o grão de trigo que, lançado à terra, se não morrer, fica só, mas se morrer, dará muito fruto. É um sinal misterioso do sentido daquela “hora”, a hora de partir para junto do Pai. Uma hora semelhante à que viveram nas últimas semanas o meu tio Luis e a minha prima Palmira.
O exemplo do grão de trigo é o de que a morte não acontece no fim do caminho, mas no momento de transição para um outro tipo de caminhar. À morte corresponde uma transformação, como o grão de trigo que deixa de ser grão para se tornar planta e produzir fruto. A morte é uma fase transformativa da nossa vida e essa é uma faceta importante da Boa Nova. Não desaparecemos quando partimos deste mundo e o que somos transforma-se com a morte. A morte como fim é somente uma impressão que pode não corresponder à realidade. Tudo depende da sensibilidade de cada pessoa para a dimensão espiritual da vida humana.
A vida plena não esconde ou recusa os sacrifícios que temos de fazer para crescer. E o crescimento não está isento de dores que resultam da transformação que o nosso corpo, mente e espírito experimentam. Antes, reconhece essas dores como parte do caminho. Aquele «chegou a hora» de Jesus e o que nos revela sobre o amor à vida que passa pela sua entrega, ensina-nos algo sobre o modo de acolher o fim (como finalidade) da nossa vida. É mais um ensinamento para o momento presente, do que um ensinamento para o futuro. É um ensinamento a acolher a história que acontece em cada momento presente, mesmo o seu momento mais transformativo, como é a morte de uma pessoa.
Deus convida-nos a transformar a nossa vida em cada momento presente, e a acolher o sabor de cada hora, doce ou amarga, como modo de treinar o acolhimento de cada hora. Por vezes sinto que muitas pessoas, eu inclusivé, acolhe o lado bom da vida, mas tem muita dificuldade em acolher o lado doloroso da vida. Ninguém possui o tempo ou a história. — «Por que razão me acontece isto?» — é a pergunta que tantas vezes fazemos quando o sucedido não é do nosso agrado. Pois, quando é agradável o que nos sucede, raramente oiço as pessoas a fazer a mesma pergunta. Simplesmente, acolhem.
Sabemos que não foi fácil para Jesus acolher a perspectiva de sofrimento que se avizinhava. Só uma pessoa que não está bem ciente de si, ou tem problemas psicológicos, é capaz de gostar de sofrer. Podemos não gostar, ou querer sofrer, mas, interiormente, podemos desenvolver a capacidade de acolher todo e qualquer sofrimento. Sofrer não é bom, mas recusar o sofrimento é pior. Quando alguém parte deste mundo, e transforma-se, deixa de sofrer, mas nem isso é razão para desejar morrer. Não sei se foi algo semelhante que esteve na génese da intuição humana daqueles que pertencem ao Tribunal Constitucional e que recusaram a lei da eutanásia.
O processo de aprendizagem subjacente à hora que chega é o do acolhimento dos eventos previstos e imprevistos da nossa vida. A criatividade e os rasgos de génio das pessoas não são previsíveis, mas, precisamente, deslumbram e deixam-nos perplexos por serem imprevisíveis, vindo seja de quem for. Parece fácil acolher a imprevisibilidade proveniente da criatividade, mas difícil de acolher a imprevisibilidade proveniente do sofrimento.
Muitos artistas realizam verdadeiras obras-primas nos períodos de maior sofrimento. Não porque seja preciso sofrer para se criar algo de novo, mas porque criar pode ter um efeito terapêutico sobre aquele que sofre, ajudando-o a lidar com as emoções e as situações. O artista que aprendeu a lidar com o sofrimento, reconhece-o como um impulsionador de criatividade para exteriorizar a dor que interiormente vive. Acolhe o sofrimento e usa-o para o ultrapassar.
Os tempos que vivemos são difíceis. Fala-se de depressão por via do confinamento, e se esse é o momento presente, parece ser ofensivo propôr que aprendamos a acolher a hora e o que essa nos reserva. Poder-se-ia interpretar como um efeito placebo que nos afasta da dura realidade que se vive, e que a morte é mesmo o fim. Nada a fazer. Não admira que seja difícil acolher a hora da ressurreição.
Ao pensar, cada vez mais, nas palavra de Jesus — «chegou a hora» — questiono de que hora estará Ele, realmente, a falar. Será a hora da morte? Será a hora da ressurreição? Mas voltando ao grão de trigo penso, novamente, na hora de transformação. Logo, será essa a hora? Talvez sim. Talvez não. E recordo, de novo, o meu tio e a minha prima.
A hora que chega é a hora de acolher. Pois, quem aprender a acolher aquilo que vive em cada hora, aprende a acolher aquilo que é convidado a viver em qualquer hora. Deus não levou o meu tio, ou a minha prima, mas acolheu-os no seu regaço de amor. Quem aprender a acolher a hora, aprende a viver as transformações da vida como oportunidades criativas de sentido e significado que ajudam a lidar com os momentos mais obscuros da existência. Ninguém parte deste mundo, mas transforma-se. Só acolhendo com profundidade a realidade escondida no mistério que essa hora representa, é possível crescer e amadurecer para a vida plena a que Deus nos chama desde que baralhou a nossa compreensão do mundo com a ressurreição. Ainda bem que continua a baralhar nos dias que correm. Caso contrário, como nos licores, depois da amargueza inicial seríamos incapazes de sentir o doce final que nos apanha de surpresa e deslumbra.
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